A iniciação de Kalachakra | Padma Dorje

 

Por Padma Dorje.

O Kalachakra será concedido pela segunda vez no Brasil em Brasília, durante o mês de julho. A iniciação foi dada pela primeira vez no Brasil no Rio de Janeiro, em 2001, pelo falecido professor Venerável Kirti Tsenshab Rinpoche, da tradição gelug. Todos os anos Sua Santidade o XIV Dalai Lama a concede em algum lugar do mundo, consistentemente para uma audiência de milhares de pessoas. Dessa vez, aqui no Brasil, ela será concedida por Sua Eminência Chokyi Nangpa Rinpoche, da tradição jonang, que detém uma versão mais antiga e mais elaborada da prática.

            A palavra “iniciação” na língua portuguesa não representa exatamente o que a tradição tibetana vê no termo “wang”, que por sua vez tem uma etimologia diversa do termo original sânscrito da tradição vajrayana indiana, “abhisheka”. A palavra tibetana tem a ver com poder, e daí a tradução mais comum no inglês “empowerment” (empoderamento), que por sua vez ganha conotações diversas ao ser utilizada pelo movimento de autoajuda e no jargão motivacional e empresarial. Já a palavra “abhisheka” tem a ver com unção, isto é, receber através de alguma substância (luz, água, som, etc.) a transmissão de algum vislumbre da realização do professor, e de nosso próprio potencial. Mas o sentido etimológico não é tudo que a palavra representa, é claro.

            A iniciação, no sentido do budismo tibetano, é o momento em que um buda vivo nos revela a essência de sua prática, nos possibilitando praticá-la. Essa cerimônia ou prática é exclusiva do vajrayana – e exclusiva daqueles que encontram um professor que conseguem reconhecer como um buda vivo. Caso estejamos presentes numa cerimônia de iniciação e não vejamos o professor, por qualquer motivo, como um buda, e alguma coisa impeça que a transmissão ocorra plenamente (algum resíduo cármico que nos faça, por exemplo, dormir durante a cerimônia, ou ficar extremamente distraídos) – recebemos apenas uma bênção – fazemos conexão com aquela prática, e através dessa interdependência, e de nossa tentativa de praticar o que entendemos, podemos talvez vir a participar de outras cerimônias e num determinado ponto atualizamos o ponto essencial, e assim a prática avança muito mais rápido.

            Ainda assim, é preciso muito cuidado ao falar desses pontos porque um dos obstáculos possíveis é a própria dúvida. Então a pessoa participa de várias iniciações e talvez fique achando que aquilo “não cola” – por algum defeito que ela vê nela mesma, ou que ela vê no budismo ou no professor. Essa dúvida é em si um obstáculo, e uma quebra de voto – portanto parte da iniciação é também desenvolver essa abertura que reconhece o ambiente todo como uma terra pura, o professor como um buda, e nós mesmos, todos os outros participantes, e todos os outros seres interconectados, como dotados completamente dessa mesma natureza. Na medida em que temos dúvidas, ou se apenas fingimos esses reconhecimentos, surgem dificuldades para a prática. Ainda assim, uma bênção e interdependência forte com aqueles ensinamentos particulares inevitavelmente se forma.

            A iniciação não é o primeiro momento da prática budista. O primeiro momento budista, presente em todas as tradições budistas, é a tomada de refúgio – onde assumimos o compromisso de seguir os ensinamentos do Buda Sakyamuni e não prejudicar os seres, algumas vezes tomando votos específicos ligados a esse não prejudicar. As tradições mahayana incluem um segundo momento, em que fazemos o voto de abdicar da liberação – o nirvana – para trabalhar incansavelmente em benefício dos seres – o que é chamado de “voto de bodisatva”. Essas duas etapas podem ser feitas com conjuntos concisos de votos (apenas dois, um para cada prática, refugio e voto de bodisatva), ou num conjunto de centenas de votos, detalhando muitos compromissos específicos.

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Kālacakra Deity with consort Visvamata

            Como sempre pode haver alguém que está começando no darma, e também para todos refazerem os votos numa ocasião auspiciosa, todas as iniciações – que são exclusividade do vajrayana – incluem também cerimônias de refúgio e voto de bodisatva (geralmente concisas, mas isso depende completamente do tempo disponível).

            É possível praticar o darma apenas com o refúgio, mas não é possível fazer uma iniciação sem refúgio e voto de bodisatva. As práticas do vajrayana incluem todos os compromissos hinayana e mahayana, isto é, a prática de reconhecer a pureza inerente de todos os fenômenos como uma terra pura habitada por budas inclui naturalmente todas as práticas de trabalhar pelo benefício temporário e último de todos os seres, que inclui o compromisso geral com o caminho budista e com não prejudicar nenhum ser.

            O Buda ensinou 84.000 métodos gerais, nos caminhos hinayana e mahayana, mas consta que os métodos do vajrayana são mais diversos, havendo 2.400.000 tipos de práticas elaboradas pela compaixão do Buda para beneficiar os seres em condições específicas. No caminho vajrayana a prática principal, que só é possível com alguma proficiência em meditação, que por sua vez só é possível com um bom engajamento ético no mundo, é a visualização de uma mandala, uma ou várias formas de buda dispostas numa morada de buda e adjacências, numa terra pura. Essa visualização é um método que usa uma ou várias formas puras para eliminar os obstáculos da percepção impura e revelar a vacuidade e luminosidade de todos os fenômenos.

            A iniciação de Kalachakra é talvez a mais famosa iniciação vajrayana do budismo tibetano. Isso se dá pelo fato dela ser a única prática de ioga tantra superior que é tradicionalmente oferecida em cerimônias abertas para muitas pessoas. As escolas vajrayana sarma dividem o tantra em quatro tipos, dependendo da sofisticação das práticas, e o Kalachakra pertence a classificação final, o mais sofisticado, que é chamado de “ioga tantra insuperável” – em que, se a prática é realizada com diligência, se atinge a realização nesta mesma vida, ou no máximo no momento da morte.

            A palavra “tantra” aqui se refere a classe de práticas específica do vajrayana, cuja característica essencial é o uso das emoções aflitivas, tais como apego, aversão ou indiferença, como combustível para a prática. Isso não quer dizer que tais emoções sejam promovidas, mas sim que a prática vajrayana fornece um meio de utilizar positivamente e reconhecer a pureza destas ocorrências. O “Tantra Kalachakra”, cujas instruções somos autorizados a praticar ao receber a iniciação, é um texto dessa classe de ensinamentos – além disso, a palavra “tantra” designa a “tessitura” (é a etimologia da palavra) que liga os seres uns aos outros, professor a aluno, a linhagem de prática desde o Buda, e a natureza de buda como permeando todos esses âmbitos, nos três tempos e na esfera atemporal, e absolutamente inseparável (e portanto acessível) de qualquer estado confuso possível.

            Normalmente o vajrayana é praticado em segredo, ou pelo menos com grande discrição, e as cerimônias não são anunciadas publicamente – algumas exigem muitos pré-requisitos, acumulações de mantras, retiros, sequências de práticas completadas, assim por diante. O Kalachakra é tradicionalmente concedido de forma muito aberta como uma forma da população geral gerar uma interdependência da prática com a melhoria das condições nesse mundo – buscando efetivamente instaurar uma nova era de ouro, em que a paz e a prosperidade atinjam a todos os seres humanos e não humanos.

            A maioria dos tibetanos que participam dessa cerimônia é, como nós, gente simples, sem muita cultura ou educação refinada, e que pratica os ensinamentos na forma popular que consegue. Dessa forma, o Kalachakra possibilita não só que iniciantes se conectem com um ensinamento muito sofisticado, ou pelo menos com a bênção de gerar a interdependência com a prática, mas também que aqueles que anseiam se aprofundar no darma abram o vasto leque dos meios hábeis vajrayana.


  Estas coisas que expliquei aqui, abusando dos limites da minha falta de qualificação, são o mero papagaiar de livros que li e professores que ouvi, sem entender bem. Em português, infelizmente, não há boas traduções sobre o assunto – sendo um tópico relativamente avançado e técnico.

  Se a impermanência não se interpuser, estarei presente na cerimônia em Brasília como tradutor do tradutor ao inglês de Sua Eminência Chokyi Nangpa Rinpoche. Espero encontrar você por lá.

  Página de inscrição e mais informações sobre a iniciação de Kalachakra no Brasil.

  Página do evento no Facebook. 

 

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Padma Dorje é praticante budista e é autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos. Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org. 

 

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