A vida como cinema Dzongsar Khyentse Rinpoche

Dzongsar Khyentse Rinpoche usa o filme como uma metáfora para o ensinamento do Buda sobre samsara, nirvana e a vida.

Publicado originalmente em Lions Roar. / Tradução Clara Luz.

Apenas suponha que nascemos em uma sala de cinema. Nós não sabemos que o que está acontecendo na nossa frente é apenas uma projeção. Nós não sabemos que é apenas um filme, apenas uma película, e que os eventos no filme não são reais – que eles não têm existência verdadeira. Tudo o que vemos nessa tela – amor, ódio, violência, suspense, emoções – são na verdade apenas o efeito da luz projetada através de celuloide. Todavia nunca ninguém nos disse isso, então apenas sentamos e assistimos, fixados no filme. Se alguém tenta atrair nossa atenção, nós dizemos: ‘Cale a boca! ’ Mesmo que nós tenhamos algo importante a fazer, não queremos fazê-lo. Estamos completamente absortos e cegos ao fato de que essa projeção é completamente inútil.

Agora, suponha que há alguém na cadeira próxima a nós que diz: ‘Olha, isso é apenas um filme. Não é real. Isso não está realmente acontecendo. É apenas uma projeção’. Há uma chance de nós entendermos que o que estamos vendo é na verdade um filme, que é irreal e não possui essência.

Isto não significa que automaticamente podemos nos levantar e sair do cinema. Nós não temos que fazer isso. Nós podemos apenas relaxar e simplesmente observar o caso de amor, o suspense ou o que quer que esteja passando. Podemos experimentar a sua intensidade. E se temos uma certa confiança de que é apenas uma projeção, então podemos retroceder, avançar ou jogar o filme novamente, como quisermos. E nós temos a opção de deixar sempre que quisermos, e voltar em outro momento para assistir novamente. Uma vez que estamos certos de que podemos deixar a qualquer momento que quisermos, podemos não sentir compelidos a fazê-lo. Podemos optar por sentar confortavelmente e assistir.

Às vezes, uma sequência do filme pode dominar nossas emoções. Um momento trágico pode acertar o nosso ponto fraco e nós somos levados por isso. Mas agora, algo em nosso coração está nos dizendo que nós sabemos que não é real, que não é um grande problema.

Isto é o que o praticante do dharma precisa entender – que toda o samsara ou nirvana, é tão sem essência ou ilusório como esse filme. Até que nós vejamos isso, vai ser muito difícil para o dharma aprofundar em nossas mentes. Vamos sempre ser levados, seduzidos pela beleza e glória deste mundo, por todo o aparente sucesso e fracasso. No entanto, uma vez que vejamos, mesmo que apenas por um segundo, que estas aparições não são reais, vamos ganhar uma certa confiança. Isso não significa que temos que correr para o Nepal ou Índia e tornar-se um monge ou monja. Nós ainda podemos manter trabalhar, usar terno e gravata e ir com a nossa pasta para o escritório todos os dias. Nós ainda podemos nos apaixonar, oferecer aos nossos entes queridos flores, casar. Mas, em algum lugar dentro de você te diz que tudo isso é vazio de essência.

É muito importante ter essa visão. Se temos um pequeno vislumbre em toda a nossa vida, podemos ser felizes pelo o resto do tempo com apenas a memória desse vislumbre.

Pode acontecer de alguém sussurrar para nós, ‘Ei! É apenas um filme’, e não ouvirmos por estarmos distraídos. Talvez naquele momento, ocorre um grande acidente de carro no filme ou uma música alta, então nós simplesmente não ouvimos a mensagem. Ou então, talvez, nós escutamos a mensagem, mas o nosso ego interpreta erroneamente esta informação. Continuamos confusos e acreditamos que existe algo de verdadeiro e real no filme, afinal. Por que isso acontece? Isso acontece porque não temos mérito. O mérito é extremamente importante.  Claro, que a inteligência, ou prajna, é importante. Compaixão ou Karuna, é importante. Mas o mérito é fundamental. Sem mérito, somos como um mendigo ignorante, analfabeto que ganha milhões na loteria, mas não sabe o que fazer com o dinheiro e perde imediatamente.

Mas, suponha que nós temos um pouco de mérito e que a mensagem da pessoa sussurrando chega para nós. Então, como budistas, temos diferentes opções. Do ponto de vista do Budismo Theravada, podemos nos levantar e deixar a sala de cinema, ou fechamos os olhos, para não sermos levados pelo filme. Nós colocamos um fim ao sofrimento dessa forma. No nível Mahayana, nós reduzimos o nosso sofrimento através da compreensão de que o filme não é real, que tudo é uma projeção e vazio. Nós não paramos de assistir o filme, mas vemos que não tem existência inerente. Além disso, estamos preocupados com os outros no cinema. Finalmente, no Vajrayana, sabemos que ele é apenas um filme, não estamos enganados, e apenas apreciamos o show. Quanto mais emoção o filme evoca em nós, mais nós apreciamos o brilho da produção. Nós compartilhamos os nossos conhecimentos com os nossos companheiros de espetáculo, que, nós confiamos, e que também são capazes de apreciar o que nós vemos.

Por outro lado, esta transformação – de sermos pegos pelo filme, perceber o vazio dos eventos, cuidar exclusivamente do bem-estar dos outros – pode levar muito, muito tempo. É por isso que no Vajrayana nos movemos pela a via rápida e acumulamos méritos através da devoção. Nós confiamos na pessoa que está sussurrando para nós e possui um entendimento que o libertou. Não só assimilamos a informação que ele está nos dando, mas também apreciamos a sua liberdade de espírito e a profundidade do seu ser. Sabemos que temos o potencial para a libertação também, e isso nos faz apreciá-lo ainda mais. Um único momento de devoção, apenas uma fração de segundo, apenas um pouco de devoção, traz imenso mérito. Se estamos em sintonia com a pessoa que sussurrou para nós, ele pode nos ajudar a descobrir o verdadeiro interior do amante do filme. Ele pode fazer-nos ver como o resto do público é pego, e como é desnecessário tudo isso.

Sem que tenhamos que confiar em nossa própria luta confusa para entender o caminho, essa pessoa nos leva a uma compreensão do que é que estamos vendo. Nós, então, nos tornamos alguém que pode se sentar e apreciar o show. E talvez nós possamos sussurrar para outros também.

KHYENTSE+NORBU

Breve biografia de Dzongsar Khyentse Rinpoche

Jamyang Khyentse Rinpoche, ou Thubten Chökyi Gyamtso, nasceu em 1961 no Butão, sendo reconhecido por S.S. Sakya Trizin como a emanação da mente de um dos maiores mestres Dzogchen de seu tempo, Jamyang Khyentse Chökyi Lodro (1893-1959).

A linhagem Khyentse, começando com o grande Jamyang Khyentse Wangpo, sempre se caracterizou pela visão não-sectarista. Refletindo essa tradição, Dzongsar Khyentse Rinpoche estudou com professores de todas as quatro escolas do budismo tibetano. Recebeu iniciações e ensinamentos de muitos dos maiores mestres contemporâneos, incluindo S.S. Dalai Lama, S.S. o 16º Karmapa, S.S. Sakya Trizin e seus próprios avós: S.S. Dudjom Rinpoche e Sönam Zangpo. Seu mestre principal foi Dilgo Khyentse Rinpoche. Rinpoche ainda estudou com mais de 25 grandes lamas de todas as quatro escolas do budismo tibetano.

Enquanto ainda era adolescente, foi responsável por publicar muitos textos raros que estavam ameaçados de serem perdidos completamente e, nos anos 80, começou a restauração do monastério Dzongsar, no Tibete.

Dzongsar Rinpoche é famoso pela liberdade descontraída com que se move entre culturas e povos e por sua dedicação incansável em trazer a filosofia e o caminho da iluminação para qualquer pessoa com um coração aberto.

Além de supervisionar sua sede tradicional no monastério Dzongsar e seus centros de retiro no Tibete Oriental, fundou diversas faculdades e centros de retiro na Índia (em Bir e Chauntra) e no Butão. Conforme o desejo de seus mestres, Rinpoche tem viajado e ensinado pelo mundo todo, estabelecendo centros de darma na Austrália, Europa, América do Norte e Ásia.

Em 1989, S.E. Dzongsar Khyentse Rinpoche fundou a Siddharta’s Intent, uma associação de centros budistas de alcance global, cuja intenção principal é preservar os ensinamentos budistas assim como aprofundar a compreensão e consciência sobre os diversos aspectos dos ensinamentos budistas em meio a diferentes culturas e tradições.

Em 2001, Rinpoche também fundou a Khyentse Foundation, uma organização sem fins lucrativos para funcionar como “um sistema de patrocínio para instituições e indivíduos engajados na prática e estudo da sabedoria e compaixão do Buda”.

Rinpoche também fundou a Lotus Outreach, uma organização sem fins lucrativos dedicada a garantir a educação, saúde e segurança de mulheres e crianças vulneráveis nos países em desenvolvimento. Originalmente fundada como suporte para a educação de refugiados, a Lotus Outreach agora também ajuda a reabilitar sobreviventes do tráfico humano e manter estudantes em risco na escola.

Dzongsar Rinpoche também dirige o Deer Park, centros de arte e contemplação no Butão e Índia, o World Peace Vase Program — uma grande iniciativa de alcance global de S.S. Dilgo Khyentse Rinpoche — e a Siddharta School, na Austrália.

Em 2008, Rinpoche fundou a Manjugosha Edition, baseada em Berlim (Alemanha), para publicar textos budistas raros e preciosos sob encomenda. Alunos seus no Rio de Janeiro criaram o grupo de prática Buda de Ipanema. Dzongsar Rinpoche visitou o Brasil algumas vezes, tendo realizado as consagrações rituais do Palácio da Terra Pura de Padmasambhava, no Khadro Ling (Três Coroas, RS), e do templo Odsal Ling (Cotia, SP), além de ensinamentos e palestras.

Dzongsar Khyentse Rinpoche também é cineasta; seus dois filmes principais são “A Copa” (1999) e “Traveller e Magicians” (2003). Ele estudou com o cineasta italiano Bernardo Bertolucci, após atuar como consultor (e breve coadjuvante) de seu filme “Pequeno Buda” (1993). Também é autor dos livros “O que te faz ser budista” (2007) e “Not For Happiness” (2012).

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