O homem é em essência bom? Uma visão clara do altruísmo.

“Perseguir o interesse próprio foi a grande propaganda do último século. Entretanto, ser humano não é apenas seguir os desejos individuais. A ideia de felicidade ocidental falhou. A introspecção, o interesse próprio, perseguir valores que não envolvam o coletivo… Temos a tendência a sentir compaixão uns pelos outros. Somos criaturas empáticas. Há estudos que mostram que compaixão dá prazer. Somos também coletivos. Formamos comunidades de todos os tipos, o tempo inteiro. As pessoas estão, cada vez mais, querendo fazer parte de algo maior do que elas mesmas.”

~ Roman Krznaric – filósofo australiano fundador da School of Life


Os resultados continuam aparecendo, um atrás do outro, é um dos mais antigos dilemas da filosofia ocidental: o homem é, na essência, bom ou mau? Ou a moralidade é um produto social ou natural?

Mais um estudo (já divulgamos inúmeros aqui no blog, inclusive de Darwin), desta vez um mais antigo, do Instituto Nacional de Saúde, dos EUA, (reportagem em inglês, do Washington Post) está descobrindo que a bondade (ou altruísmo) pode estar ligada a um mecanismo químico/biológico do cérebro. Comportamentos altruístas gerariam uma recompensa química no cérebro de homens e animais. Alguns trechos da notícia:

Os resultados estão mostrando que quando voluntários colocaram os interesses dos outros acima dos próprios interesses, a generosidade ativou uma parte primitiva do cérebro, geralmente ativada em resposta a comida ou sexo. O altruísmo, a experiência sugere, não é uma faculdade moral superior que suprime impulsos primários egoístas, mas sim algo básico do cérebro, embutido biologicamente e prazeiroso.

[…] muitos aspectos da moralidade parecem estar embutidos naturalmente no cérebro, provavelmente sendo o resultado de processos evolutivos que começaram em outras espécies.

Isso também acaba se alinhando com a doutrina budista que diz: “ao se retirar todos obscurecimentos e ilusões, a bondade natural é revelada”.


FELICIDADE E ALTRUÍSMOcompaixao

Um homem está deitado no gramado do parque em forma de quadrilátero da Universidade de Manchester, na Inglaterra, perto de um caminho por onde passa muita gente. Ele parece estar doente. As pessoas passam. Só um número muito pequeno entre elas – 15% – se detém para ver se ele necessita de ajuda. Mais tarde, o mesmo “cobaia” está deitado no mesmo gramado, mas agora veste a camisa do time de futebol de Liverpool, rival do Manchester, que tem numerosos fãs entre os estudantes da universidade. Dos passantes, 85% deles (fãs do Liverpool) param para ver se o “seu colega” precisa de ajuda. Mais à frente, no fim do caminho, uma equipe de pesquisadores da universidade aplica um questionário a todos os transeuntes, independentemente de terem parado ou não.  Esse estudo, como muitos outros, confirma o fato de que o sentimento de pertencer influencia consideravelmente a manifestação do altruísmo. As pessoas sentem muito mais inclinação a oferecer assistência a um amigo ou a alguém com quem tenham alguma coisa em comum – grupo étnico, nacionalidade, religião, opiniões – do que a ajudar um estranho com quem não tem nenhuma conexão em particular.

A abordagem do budismo consiste em aos poucos estender esse sentimento de pertencer até que inclua o conjunto de todos os seres. Para essa finalidade, é essencial compreender no nível mais fundamental que todos os seres vivos compartilham o mesmo desejo de evitar o sofrimento e viver o bem-estar. A fim de que tenha sentido, essa compreensão não pode ficar como um mero conceito, mas deve ser interiorizada até tornar-se uma segunda natureza. Por fim, quando o nosso sentimento de pertencer se estende a todos os seres vivos, somos tocados pelas suas alegrias e seus sofrimentos. Esta é a importantíssima noção de “responsabilidade universal” a que o Dala Lama costuma referir-se.

AS ALEGRIAS DO ALTRUÍSMO

O que o altruísmo tem a ver com a felicidade? Em uma série de estudos realizados com centenas de estudantes, descobriu-se que há uma correlação inegável entre o altruísmo e a felicidade. Esses estudos mostraram que as pessoas que se declaram mais felizes são também as mais altruístas. Quando estamos felizes, o sentimento de importância de nós mesmos diminui e ficamos mais abertos aos outros. Os estudos mostraram também, por exemplo, que as pessoas que tinham vivido um momento feliz na hora precedente sentiam-se mais inclinadas a prestar ajuda a estranhos.

Sabe-se a depressão aguda é acompanhada por uma dificuldade de sentir e expressar amor pelos outros. “A depressão é um defeito do amor”, escreve Andrew Solomon em seu livro. O demônio do meio-dia. De modo ainda mais conclusivo: aqueles que passaram por uma depressão afirmam que dar amor aos outros e recebe-lo é um importante fator de cura. Essa afirmação está de acordo com o ponto de vista do budismo, que sustenta que o egoísmo é a principal causa do sofrimento, e o amor altruísta é um ingrediente essencial para a felicidade verdadeira. A interdependência entre todos os fenômenos em geral, e particularmente a que existe entre todos os seres, é tal que a nossa própria felicidade está intimamente ligada à dos outros. Portanto, como sublinhamos no capítulo sobre as emoções a compreensão da interdependência está no coração de sukha, e a nossa felicidade passa necessariamente pela felicidade dos outros.

O trabalho de pesquisa feito por Martin Seligman, pioneiro da psicologia positiva, mostra que a alegria acompanha um ato de bondade desinteressada produz uma profunda satisfação. Para verificar essa hipótese, ele pediu aos seus alunos que fizessem duas coisas – saíssem para se divertir e participassem de uma atividade filantrópica. Depois disso, deveriam escrever um relatório para entregar na aula seguinte.
Os resultados foram notáveis. As satisfações produzidas pelas atividades prazerosas, como sair com os amigos, ir ao cinema ou tomar uma banana split, foram largamente eclipsadas por aquelas trazidas por um ato de bondade. Quando esse ato era espontâneo e envolvia qualidades humanas, o dia inteiro transcorria melhor. As pessoas notaram que, nesses dias, eram melhores ouvintes, mais amigáveis, além de serem mais apreciadas pelos outros. “Ao contrário do prazer, o exercício da bondade é gratificante”, conclui Seligman , no sentido de que produz uma satisfação duradoura e um sentimento de harmonia como a nossa natureza interior. Jean-Jacques Rousseau observou: “Sei e sinto que fazer o bem é a felicidade mais verdadeira que o coração humano pode experimentar”. 

Podemos sentir algum prazer em atingir as nossas metas em detrimento dos outros, mas essa satisfação é passageira e superficial, mascarando um sentimento de apreensão que não tardará a vir à superfície. Passada a excitação, somos forçados a admitir a presença de um certo desconforto. Poderíamos pensar que a benevolência está muito mais distante da nossa verdadeira natureza do que a maldade, mas viver em harmonia com essa natureza sustenta a alegria de viver, ao passo que rejeitá-la leva a uma insatisfação crônica.

SOMOS NATURALMENTE EGOÍSTAS?

Se os biólogos não confiam muito na noção de “natureza humana”, os filósofos não vêem nenhum problema em oferecer opiniões bem definidas sobre esse tema. O filósofo inglês do século XVII, Thomas Hobbes, por exemplo, estava convencido de que os seres vivos são fundamentalmente egoístas e de que o verdadeiro altruísmo está excluído do comportamento humano. Para ele, qualquer coisa que lembrasse altruísmo não seria mais do que mero egoísmo vestido de bons sentimentos. Em certa ocasião, no fim de sua vida, foi surpreendido ao oferecer ajuda a um mendigo. Quando lhe perguntaram se tinha ou não realizado um ato altruísta, ele respondeu: “Não, o sofrimento desse homem me fez sofrer, e ao aliviar o seu sofrimento aliviei o meu”. Não há dúvida de que o conceito de pecado original, que é peculiar à civilização cristã – juntamente com o sentimento de culpa de que está embuído até as entranhas -, não é estranho a essa maneira de pensar. De fato, ele teve uma influência considerável sobre a esfera intelectual do Ocidente, e ainda hoje desempenha um papel que não podemos ignorar, mesmo entre aqueles que não falam a partir de uma perspectiva religiosa.

Muitos teóricos da evolução sustentaram por muito tempo que os genes responsáveis pelo comportamento egoísta teriam mais probabilidade de ser transmitidos para as gerações seguintes. Como os indivíduos portadores desses genes sistematicamente dão prioridade aos seus próprios interesses em vez dos interesses alheios, argumentam, eles teriam maior chance de sobreviver e de se reproduzir do que os altruístas. Essas duras afirmações têm sido abrandadas nos últimos anos e hoje admite-se que os comportamentos de cooperação, aparentemente altruístas, podem ser úteis para a sobrevivência e a proliferação das espécies.

O filósofo da ciência Elliott Sober, por exemplo, mostrou por meio de modelos muito convincentes que indivíduos altruístas e isolados, quando têm contato com indivíduos egoístas e violentos, são dominados e desaparecem com rapidez.  De modo inverso, se esses altruístas se agrupam e cooperam uns com os outros, levam uma vantagem evolucionária inegável sobre os egoístas, que também lutam entre si e, portanto, podem lentamente desaparecer da população.

Segundo o filósofo holandês Han de Wit, a vulgarização das ideias científicas a respeito da seleção natural e os “genes egoístas” levou-nos, em certos momentos, a “conferir um status quase existencial ao egoísmo: ele faz parte do homem […]. O ser humano acaba sempre por dar prioridade ao seu interesse pessoa, apesar de tudo e de todos. Nessa ótica, uma explicação da ação humana só pode ser aceitável se atribuir importância crucial ao interesse pessoal”. 6 Para o sociólogo Garett Hardin, a regra fundamental que decorre disso é: “Nunca peça a alguém para agir contra o seu próprio interesse.” 

UM ALTRUÍSMO VERDADEIRO

As pesquisas contemporâneas da psicologia do comportamento mostraram um quadro bem diferente desse. O psicólogo Daniel Batson escreve: “Nos últimos quinze anos, outros psicólogos sociais e eu conduzimos mais de vinte e cinco experimentos, concebidos para testar a natureza da motivação de ajudar os outros evocada pela empatia. OS resultados desses experimentos dão sustentação à hipótese da empatia-altruísmo. Nehuma das explicações que lança mão do egoísmo como hipótese recebeu suporte significativo”.  O altruísmo genuíno, motivado por nenhuma outra razão senão o bem dos outros, apesar de tudo, é possível.

Para colocar em evidência o altruísmo puro, temos que eliminar várias outras explicações segundo as quais todo comportamento altruísta não seria mais do que egoísmo disfarçado. Os experimentos conduzidos por Batson e sua equipe descobriram que, na verdade, é possível identificar vários tipos de altruístas. Os “falsos altruístas” ajudam porque não conseguem aguentar a sua própria angústia ante o sofrimento das outras pessoas, e se apressam em desanuviar a sua própria tensão emocional. Eles também ajuda porque têm medo de ser julgados, ou a partir do desejo de serem elogiados, ou ainda para evitar o sentimento de culpa. Se não têm outra escolha senão intervir, socorrem a pessoa que está em dificuldades (desde que o preço disso não seja muito elevado), mas se puderem evitar ter que presenciar o doloroso espetáculo do sofrimento, ou puderem se esquivar sem incorrer em nenhuma desaprovação, não intervêm com mais frequência do que os indivíduos em que o altruísmo é pouco desenvolvido.

Os “altruístas verdadeiros”, por outro lado, oferecem-se para ajudar mesmo quando poderiam olhar para o outro lado sem que ninguém notasse. As pesquisas descobriram que esses altruístas verdadeiros somam, no Ocidente, cerca de 15% da população, e que esse altruísmo é, na personalidade deles, um traço duradouro.

Como saber se uma pessoa considerada altruísta não está agindo apenas a partir da motivação de sentir o orgulho que vem de realizar um ato de bondade? Devemos determinar se essa pessoa ficaria igualdade contente se qualquer outro fizesse. Para um altruísta verdadeiro, é o resultado que conta, não a satisfação pessoal de ter ajudado. Isso é precisamente o que foi demonstrado por Batson e sua equipe, em seus complexos estudos. 
No mundo real, exemplos de altruísmo genuíno ocorrem em abundância – quantas mães se dispõem, sinceramente, a sacrificar a vida para salvar a vida de seus filhos? Esse exemplo pode ser ampliado ainda mais, já que, no budismo, o verdadeiro altruísta apende a olhar para todos os seres com a mesma proximidade que teria se eles fossem parente.

Citemos um exemplo. Dola Jigme Kalsang foi um sábio tibetano do século XIX. Certo dia, durante uma peregrinação à China, chegou à praça central de uma pequena cidade onde uma multidão estava reunida. Conforme se aproximava, descobriu que um ladrão estava prestes a ser assassinado de maneira particularmente cruel: seria colocado no dorso de um cavalo feito de ferro, que havia sido aquecido até ficar avermelhado. Dola Jigme abriu caminho na multidão e anunciou: “Sou eu o ladrão!” Fez-se um grande silêncio. O mandarim que governava aquela parte do país voltou-se impassivelmente para recém-chegado e perguntou: “Você está pronto para assumir as consequências do que acaba de nos dizer?” Dola Jigme aquiesceu. Ele morreu no lombo do cavalo, e o ladrão foi libertado. Em um caso assim, tão impressionante e terrível, qual poderia ter sido a motivação de Dola Jigme senão a infinita compaixão pelo condenado? Um estranho, naquele lugar, poderia ter seguido o seu caminho sem que ninguém lhe prestasse a menor atenção. Ele agiu a partir do altruísmo e de uma benevolência incondicional para salvar a vida de um estranho. Este é naturalmente, em caso excepcional de renúncia, feito por alguém que não tinha família ou qualquer outra pessoa que dependesse dele para seu sustento ou proteção, mas nos diz muito sobre o potencial para o altruísmo presente na mente humana.

Um exemplo mais próximo de nós é o de Maximilian Kolbe, um padre franciscano que, em Auschwitz, se ofereceu para tomar o lugar de um pai de família. Este, juntamente com nove outras pessoas, tinha sido escolhido para morrer de fome e de sede em represália à fuga de um outro prisioneiro. Não obstante a palavra altruísmo ter sido cunhada apenas em 1830 por Auguste Comte, significando o oposto do termo egoísmo, é possível ser fundamentalmente altruísta, ou seja, preocupar-se mais com a sorte dos outros do que com a nossa própria. Tal atitude pode ou não fazer parte da nossa disposição ou caráter desde o começo da vida, mas de qualquer modo podemos desenvolvê-la. Como vimos no capítulo “Felicidade no laboratório”, pesquisas feitas com meditadores experientes apresentam evidências de que o amor altruísta e a compaixão são habilidades que podem ser treinadas ao longo dos anos.


É interessante notar que, segundo vários outros estudos, as pessoas que sabem lidar melhor com as suas emoções se comportam de maneira mais altruísta do que aquelas que são demasiadamente emotivas. 10 Confrontadas com o sofrimento dos outros, as emotivas ficam mais preocupadas em administrar as sua próprias emoções, dominadas pelo medo, a ansiedade e a angústia, do que em fazer alguma coisa quanto ao sofrimento alheio. Isso é considerado lógico pelo budismo, já que a liberdade interior, que nos livra do aprisionamento trazido pelas emoções conflituosas, só é obtida minimizando-se o amor obsessivo por si. Uma mente livre, vasta e serena, está muito mais apta a considerar uma situação dolorosa a partir de uma perspectiva altruísta do que uma mente assediada por conflitos interiores. Além disso, é interessante ver como certas pessoas que testemunharam uma situação de injustiça ou agressão acabam se prendendo mais ao malfeitor – perseguindo-o, agredindo-o ou molestando-o – do que em ajudar a vítima. De modo nenhum isso é altruísmo, mas, sim, raiva.

OURO É OURO

O budismo considera as emoções destrutivas como construções mentais, que surgem no fluxo da nossa consciência, mas não pertencem à sua natureza fundamental. Se voltarmos o olhar para o nosso íntimo e examinarmos a mente a longo prazo, perceberemos que essa natureza primordial é a faculdade cognitiva básica que “ilumina”, no sentido de que lança a luz da atenção, da percepção, sobre fenômenos exteriores e eventos mentais interiores – sobre tudo o que conhecemos. Essa faculdade é subjacente a todos os pensamentos, mas ela própria não é essencialmente modificada por eles, assim como a superfície de um espelho não se modifica intrinsecamente pelas imagens refletidas nele.

Podemos perceber também que as emoções negativas – a raiva, por exemplo – são mais periféricas e menos fundamentais do que o amor e a ternura. Elas surgem na maioria dos casos como reações a uma provocação ou outro evento específico, não tendo estados mentais constitutivos ou permanentes. Mesmo se temos um caráter irascível e muitas vezes nos deixamos dominar pela raiva, ela sempre é desencadeada por um incidente particular. Excetuando-se os casos patológicos, é muito raro vivenciar um estado prolongado de ódio que não seja dirigido a um objeto preciso. O altruísmo e a compaixão constituem, por outro lado, estados muito mais fundamentais, que habitam a nossa mente como um modo de ser e têm uma duração que independe dos objetos a que se dirigem ou dos estímulos específicos que os desencadeiam.

É possível que a raiva nos ajude a superar obstáculos, mas ela pode e deve ser limitada. As pessoas com uma personalidade hostil, predispostas a sentir raiva contra qualquer obstáculo, por menor que seja, são disfuncionais na sociedade e sofrem muito. Já o amor e a ternura são, de longe, essenciais para a sobrevivência a longo prazo. O recém-nascido não duraria mais do que algumas horas sem a ternura e o cuidado da sua mãe, o idoso incapacitado logo morreria sem a atenção daqueles que estão ao seu redor. Temos necessidade de receber amor para podermos dar amor, e para sabermos como fazê-lo. Esse reconhecimento está de acordo com a investigação da natureza da mente e o sentimento de estar em sintonia com a nossa natureza profunda. Muitas vezes dizemos, depois de um acesso de raiva, “eu estava fora de mim” ou “perdi o controle”. Mas quando agimos com bondade desinteressada, por exemplo ao ajudarmos um ser humano ou um animal a recuperar a sua saúde ou liberdade, ou mesmo a escapar da morte, temos o sentimento de que estamos em harmonia com a nossa verdadeira natureza. Como seria vivenciar esse estado de espírito com mais frequência, sentir que as barreiras ilusórias erigidas pelo eu se dissolvem, e que o nosso sentimento de comunhão com os outros reflete a interdependência essencial de todos os seres?

Os fatores mentais destrutivos são desvios que aos poucos nos afastam da nossa verdadeira natureza, chegando ao ponto de nos esquecermos de que ela existe. No entanto, nada se perde para sempre. Mesmo recoberto pela imundície, o ouro permanece outro em sua natureza essencial. As emoções destrutivas são apenas véus que a recobrem. O padre Pierre Ceyrac, renomado missionário jesuíta que nos últimos sessenta anos cuidou de trinta mil crianças na Índia, disse-me: “Apesar de tudo, fico assombrado com a bondade das pessoas, mesmo aquelas que parecem ter o coração e os olhos fechados. São as outras pessoas, todas as outras, que criam o tecido das nossas vidas e formam a matéria da nossa existência. Cada uma delas é uma gota no ‘grande concerto do universo’, como dizia o poeta Tagore. Ninguém pode resistir ao chamado do amor. No fim, sempre acabamos nos abrindo para ele. Acredito de verdade que o homem é intrinsecamente bom. É preciso, a cada dia, ver na pessoa o bem e o belo, e nunca destruir – procurar sempre a grandeza do homem, sem distinção de religião, casta, crença ou pensamento.”
A relação entre ter um bom coração e a felicidade fica ainda mais evidente. Um engendra e reforça o outro, e ambos refletem harmonia com a nossa natureza profunda. A alegria e a satisfação estão estreitamente ligadas ao amor e à ternura. Quanto à miséria e à infelicidade, andam lado a lado com o egoísmo e a hostilidade. Shantideva escreve:

Todos os que são infelizes o são por terem procurado a própria felicidade,
Todos os que são felizes o são por terem procurado a felicidade dos outros.
De que servem tantas palavras?
Basta comparar o tolo que fica apegado ao seu próprio interesse
E o santo que age no interesse dos outros.

Gerar e expressar a bondade dessa maneira dissipa o sofrimento, deixando em seu lugar um sentimento duradouro de plenitude. Do mesmo modo, a realização progressiva de sukha permite que a bondade se desenvolva com o reflexo natural da alegria interior.

Trechos do livro ”Felicidade – A pratica do Bem Estar”

Em defesa do Altruísmo

Entrevista com Matthieu Ricard. 

Ricard

Existem evidências de que não somos seres humanos egoístas guiados apenas por nossos próprios interesses. Além disso, a sociedade de hoje não é mais violenta que no passado. Sim, nós podemos mudar o jeito como somos e, então, cooperar mais, não apenas em um nível individual, mas em um nível comunitário também.

Se isso está relacionado com economia, meio ambiente, nosso bem-estar ou nossos relacionamento com os outros, todos nós nos beneficiamos por aceitarmos e desenvolvermos o altruísmo.
Essa ideia não é sustentada apenas pelo monge, mas também pela ciência. Evolução, neurologia, psiquiatria, assim como estudos de caso em conflitos, todos mostram que o altruísmo não é apenas um comportamento que nasce com as pessoas, mas que pode ser desenvolvido. Tornar-se uma pessoa melhor é realmente algo possível, a medida em que aceitamos alguns fatos óbvios que esquecemos.

HuffPost: A ciência prova que o altruísmo é um comportamento nativo, tanto em crianças, como em animais… Então, por quê você decidiu escrever esse livro?

MR: Porque nem todo mundo pensa desse jeito. As pessoas, frequentemente, tendem a pensar que são egoístas. Quando eu comecei a trabalhar nesse livro, eu pensei que não havia necessidade de provar que o altruísmo existia. Eu acreditava nessa ideia. Mas eu não esperava descobrir que grandes pensadores como o filósofo do século 17, Hobbes, psicólogos da primeira metade do século 20 e economistas neoclássicos para quem o altruísmo é um conceito desconhecido. Eles simplesmente não acreditavam nisso. Basicamente, eles costumavam dizer que por trás de gestos altruístas, há um motivo egoísta. Em outras palavras, uma mente esperta e perspicaz sempre achará um motivo egoísta por trás de uma boa ação.

HuffPost: E você discorda disso?

Essa teoria universal do egoísmo é uma ideia pré-concebida. Não existe estudo científico que sustente isso. Mas, desde que a ideia sempre existiu, cientistas decidiram provar através de experimentos que o altruísmo existia. Daniel Batson, um grande psicólogo americano, estudou isso por 25 anos, junto com sua equipe de cientistas. Ele desenvolveu cerca de trinta estratagemas para distinguir o comportamento egoísta dos outros, mas, em maior parte pela empatia, mostrou pessoas relativamente aflitas, o que foi explicado pelo impulso de ajudar as pessoas aflitas porque não podemos seguir em frente vendo o sofrimento delas. Por último, eles perceberam que algumas pessoas são capazes do altruísmo genuíno, sem se importar com as circunstâncias. De qualquer forma, não há evidências para sustentar a ideia de que as pessoas são egoístas. Essa era uma porta aberta para a minha teoria e, dessa vez, era a ciência que me apoiava.

O que nos impede de sermos altruístas?

Existem várias coisas. Em primeiro lugar, o equívoco de que somos egoístas e, sendo assim, tentar ser diferente é perda de tempo. Mas, se você analisar as ações das pessoas diariamente, você perceberia que 70% delas poderiam ser consideradas gestos de boa vontade: pequenas coisas como segurar a porta para alguém. As boas ações simples estão mais presentes em nosso dia a dia do que fomos ensinados, e essa é uma ideia encorajadora. Em segundo lugar, todos nós sabemos que aprender a ler, escrever ou jogar xadrez requer um mínimo de esforço. Então, como outros aspectos da nossas existência, como atenção ou altruísmo poderiam não requerer esforço nenhum e serem desenvolvidos desde o começo? Isso é um absurdo. Todas as nossas habilidades são desenvolvidas até atingirem um certo nível. Sendo assim, desenvolver nossa capacidade de altruísmo requer uma exposição constante a um certo jeito de pensar que possa mudar nosso cérebro.

E você também mencionou que há uma técnica que ajuda as pessoas a desenvolverem seu altruísmo: é através de meditação…

O termo “meditação” é místico, exótico, mas seu significado é educar a si mesmo, tornar-se familiar a um novo meio de pensamento e desenvolver suas qualidades. Vamos considerar o comportamento altruísta. É óbvio que durante toda a nossa vida nós sentimos um amor incondicional por nossos filhos, por outra pessoa, ou até mesmo por um animal, e esse sentimento não requer nenhum esforço em mostrar altruísmo: desejar que eles sejam saudáveis e felizes em suas vidas. O problema é que esse sentimento não dura. Desenvolver altruísmo significa gastar mais tempo, digamos, 10 minutos por dia, sentindo nosso espaço mental com amor altruísta, e se nos distrairmos, nos concentrarmos nisso novamente. Isso é meditação.

Como a meditação pode nos mudar?

Experimentos mostram algumas mudanças em um nível pessoal. Foi provado cientificamente e validado pela neuroplasticidade. O cérebro se submete a algumas mudanças quando é exposto a qualquer tipo de treinamento, seja o malabarismo ou a meditação. É o caso de pessoas que meditaram cerca de 50.000 horas ao todo, mas também pessoas que meditaram cerca de 20 minutos ao dia durante um mês. Depois de 4 semana de meditação diária, elas notaram mudanças funcionais no cérebro humano, mudanças de comportamento – cooperação, comportamento pró-social, auxílio mútuo -, assim como mudanças estruturais. Por exemplo, percebeu-se que as partes do cérebro humano responsáveis pela empatia, pelo amor maternal e pelas emoções positivas aumentou seu volume, o que mostrou que a meditação funcionou.

Isso significa que a meditação deveria ser ensinada em escolas, faculdades e universidades?

A medicação deve ser ensinada sempre desde o jardim de infância, mas sob um nome diferente e totalmente contrário a qualquer significado religioso, sem trazer a doutrina budista. Meditação é uma técnica. Por 30 anos, o doutor Kabat Zinn ensinou como reduzir o estresse através de meditação mental em 300 hospitais pelos Estados Unidos. Inspirado pela religião budista, se tornou um conceito não religioso. Um outro exemplo é o programa de Richard Davidson na Universidade de Wisconsin que promove a ideia do treinamento de comportamentos pró-sociais e de compaixão de crianças de 4 ou 5 anos. Depois de dez semanas de três sessões de 30 minutos de medicação semanais, pesquisadores foram bem sucedidos ao estimularem comportamentos pró-sociais e altruístas nas crianças. Os resultados foram incríveis.

De fato, seus estudos provaram que inclusive os animais podem ser altruístas.

O comportamento de jovens chimpanzés que ajudaram suas velhas mães a beberem água porque elas não conseguiam se mover prova que os animais podem ser altruístas, não? Se chimpanzés são capazes de tal comportamento, por que nós não poderíamos? Existem centenas de exemplos de gestos altruístas na vida de animais selvagens, assim como de laboratório. Darwin também fazia referência a evolução dos emoções e ele provou que os animais eram capazes de possuírem esses sentimentos.

 

Reconsiderar nossa relação com os animais poderia ser uma porta aberta para o altruísmo…

Humanos sofrem de algum tipo de esquizofrenia: nós somos capazes de ter empatia e altruísmo com nossas crianças, amigos, familiares ou outros seres humanos através de ações humanitárias. Por outro lado, quando chegam os animais, os humanos se tornam relutantes em pensar neles como criaturas sensitivas. Certamente, eles não manifestarão contra sua exploração; animais são desprovidos da nossa capacidade de fazer um compromisso político… Mas seria absurdo acreditar que emoções, altruísmo ou empatia seriam criações divinas específicas para seres humanos e não considerar milhões de anos de evolução. Não existe atalho entre as diferentes fases da evolução.

O que devemos fazer, então?

Nós devemos reexaminar nós mesmos. Hoje, nós mantemos os abatedouros fora de nossa vista: longe da vista, longe da mente. Na realidade, nós não queremos reconhecer que um bilhão e meio dos animais terrestres são mortos todos os anos para as nossas necessidades alimentares. Esses animais não são robôs. É completamente ridículo tratá-los como objetos. Gandhi disse que o declínio da civilização é medido pela forma que as pessoas tratam os animais. Obviamente, eles não tem projetos a longo prazo, mas nossa falta de empatia com eles coloca a humanidade em perigo de psicopatia de massa. Kafka disse isso “guerra é uma monstruosa falha de imaginação.” Ele eventualmente se tornou vegetariano e um dia, enquanto olhava um tanque de peixes, ele disse: “agora, eu posso olhar para vocês em paz; eu não como mais vocês.” (rindo)

Mas como tornar-se vegetariano pode ter um impacto altruísta em nossas necessidades alimentares pessoais?

Eu sou vegetariano por opção porque é melhor para os animais e para nosso meio ambiente. Países desenvolvidos usam 775 bilhões de toneladas de milho e soja para alimentar os animais das fazendas industriais nos países altamente desenvolvidos. O retorno é zero! Isso requer 10 quilos de proteínas vegetais para produzir 1 quilo de proteína animal. O mundo está de cabeça para baixo.

Então, há o custo humano, porque as pessoas pobres estão privadas desses vegetais. A também o custo ambiental, por causa do gás metano da pecuária e seu estrume, o que é uma das principais causas das mudanças climáticas.

Para concluir, há um código ético relacionado aos animais, saúda humana, pobreza e meio ambiente. De acordo com as Nações Unidas, comer menos carne pode ser uma das melhores formas de reduzir a desigualdade e solucionar os problemas ambientais… Isso não implica em tornar-se um vegan fanático, mas balancear as coisas para que os massacres dos animais terminem permanentemente.

E quanto a economia baseada no lucro? Como o altruísmo pode ser compatível com tal conceito?

A teoria de homo economicus é baseada na ideia de que os seres humanos são sensatos e que eles tentam maximizar seus interesses. É um modelo reducionista do ser humano. A maioria dos economistas sabe que os seres humanos não podem ser reduzidos a tal imagem; mesmo assim, essa imagem serviu como uma fonte para muitos modelos econômicos. No entanto, muitos economistas, como Amartya Sem, Joseph Stiglitz ou Dennis Snower, enfatizaram o problema dos ativos comuns: qualidade do ar, reservas de água pura, democracia – essa é a preocupação de todo o mundo.

De fato, se você considerar apenas seu interesse pessoal, você não tem nada para se importar. Então, tirando a razão, os únicos economistas consideraram em seus cálculos, você precisa se importar, um termo muito melhor que altruísmo ou compaixão porque, se as pessoas dizem “Eu não me importo,” isso significa que tal coisa não as afeta. Se importar implica em preocupação com os outros. Economistas começaram a aceitar essa ideia e a imaginar um sistema em mais que interesses egoístas. A sociedade funcionaria muito melhor e esse novo sistema corresponderia melhor à realidade porque nem todas as pessoas são maníacos egoístas!

Você vê o altruísmo como o pensamento guia do século 21?

Com certeza! É a linha de Arianna que pode ligar a economia em curto prazo, a satisfação na vida em médio prazo e o meio ambiente em longo prazo. Sem altruísmo, nenhum sistema intelectual poderia reconciliar os três tipos diferentes de preocupações. O economista resistente agarra o momento sem pensar no futuro. Mas se ele se importasse com os outros, ele faria algo para melhorar a qualidade de vida deles. Se ele se importasse mais com os outros, destruir o planeta estaria fora de questão.

Mas ainda existem conflitos, violência…

Violência tem suas causas. É a desumanização do outro. As pessoas veem as outras como vermes, pestes, ratos; elas tratam os outros como animais. Nós temos que entender as causas para combater melhor esse problema. Existem também outras influências que criam uma falsa imagem de realidade. Basta assistir ao noticiário. Existe violência em todo o lugar – Síria, Sudão e Kalashnikovs em Marseilles… E isso não é verdade.

A história mostra que a violência tem diminuído continuamente. Na Inglaterra, durante o século 14, haviam 100 homicídios para 100 000 habitantes a cada ano; hoje em dia, o número de homicídios reduziu em 0.7. Na Europa, a taxa caiu de 100 a 50 vezes comparada com três séculos atrás. Em 1950, o número médio de vítimas de conflitos ao redor do mundo era do 30.000. Hoje, é de 900. O abuso de mulheres e crianças diminuiu. Há muita coisa a ser feita, mas muito já foi feito.

Nós podemos encorajar o diminuição da violência…

Todos nós conhecemos os fatores relacionados à diminuição da violência e podemos encorajar essa ideia: status social da mulher, democracia… Vamos pegar a Europa, por exemplo. No século 14, havia 5000 entidades políticas na Europa; no tempo de Napoleão, havia 250, e, hoje em dia, há cerca de cinquenta, as quais são todas democráticas e fazem negócios juntas… O risco da Bélgica iniciar uma guerra contra a Itália é zero. Países em conflito com outros países têm uma democracia disfuncional. Sem dúvida, a raça humana evoluiu e nós temos que admitir isso porque é encorajador.

Quais você acha que são os sinais mais encorajadores na sociedade atual?

O que mantém minha esperança no alto é perceber que a humanidade evoluiu. Bondade é mais frequente em nossas vidas do que jamais podemos imaginar. Nós podemos educar nós mesmos a esse respeito em um nível individual, assim como em um nível comunitário… Victor Hugo disse assim “nada é mais poderoso que uma ideia que chega no momento certo.” Portanto, eu penso que o tempo do altruísmo chegou.

Entrevista publicada originalmente no Huffington Post.

 

Comentarios:

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  • Cicero Paulino.

    Acredito que eu posso me tornar uma pessoa melhor, e um dos caminhos que tenho usado e a meditação.
    Fica aí a deixa, comesse por você, Boa sorte!