O que muda e o que não muda: uma entrevista com Dzongsar Khyentse Rinpoche

What Changes and What Doesn’t: An interview with Dzongsar Khyentse Rinpoche | Traduzido por Lucas Almeida

Entrevista realizada em novembro de 2000. 

Dzongsar Khyentse Rinpoche é um espetacular mestre budista e diretor do filme “A Copa”, possivelmente o primeiro grande filme de longa-metragem tibetano. Ele é jovem, completamente moderno e profundamente preocupado com distorções do darma. Ele desafia os budistas ocidentais a sustentarem as verdades invariáveis do budismo ao mesmo tempo em que abandonam armadilhas culturais. Muito frequentemente, ele diz, fazemos o inverso. Dzongsar Khyentse é entrevistado pelo Shambhala Sun por seu estudante, Kelly Roberts.

Kelly Roberts: Eu só queria dizer que seu filme, A Copa, me lembrou muito você, particularmente quando a lata de Coca Cola dissolveu Manjushri.

Dzongsar Khyentse Rinpoche: Realmente.

KR: Em muitos lugares no seu filme, você substitui itens tradicionais por modernos. Por exemplo, as tigelas de oferendas no santuário são substituídas por latas de Coca e as bandeiras de oração no teto do monastério são substituídos por uma antena de satélite. Pergunto-me por que você fez isso, porque geralmente você é bastante preocupado sobre o budismo tradicional sendo corrompido.

DKR: Isso é algo que quero dizer aos meus companheiros tibetanos e butaneses – que a tecnologia moderna não é uma ameaça ao dito budismo tradicional. A sociedade deles apenas está começando a ser exposta ao mundo do fax, telefone e internet. Eles podem se sentir desconfortáveis com a mudança, mas o fato é que não podemos mais ir a algum lugar onde não haja tecnologia moderna.

Não podemos evitar a tecnologia – ela já está na entrada de nossa casa, se é que não está dentro dela. Então, em vez de permitir essas coisas nos influenciarem, a coisa sábia a fazer é utilizar-se do poder e da velocidade dela – ser a influência em vez de ser influenciado. Podemos usar o telefone, a web e a televisão para ensinar em vez de eles nos ensinarem. Podemos usar o poder e a velocidade da tecnologia.

KR: Você comparou seu filme a uma versão moderna de uma pintura thangka ou de uma estátua budista.

DKR: Toda cultura tem um jeito diferente de contar uma história, e eu senti que talvez eu devesse contar a história em uma visão tibetana.

KR: Essa seria sua forma de ensinar?

DKR: Não, nem um pouco. O Budismo tem uma longa tradição usando imagens para representar sabedoria e compaixão. Na sua história de 2500 anos, podemos ver que o budismo adotou alguns métodos de expressar o darma – através da pintura, escultura, arquitetura, atuação. Isso existiu mesmo durante o tempo de Buda. O próprio Buda no Sutra de Vinaya discute como pintar os cinco reinos e os doze elos da originação dependente como vemos na roda da vida. Então há uma antiga tradição no budismo de usar imagens e os filmes podem fazer isso também. Por quê não? Pra mim, filmes podem ser o thangka moderno.

KR: Como?

DKR: Bem, o que é uma pintura thangka? É um auxílio para a visualização. Da mesma forma, um filme pode ajudar a visualização, talvez até mais eficientemente. Por exemplo, se você quer mostrar com o que os domínios se assemelham, o filme pode fazer isso muito melhor do que uma simples pintura.

KR: Você não se preocupa, entretanto, que com a modernização certos aspectos da antiga tradição se percam?

DKR: Desde que a visão fundamental budista não se perca, não há problema. Podemos tentar por razões sentimentais preservar aspectos tradicionais o quanto for possível, mas eles irão mudar eventualmente. Não se esqueça que a tradição que estamos tentando preservar um dia foram modernas e progressivas.

KR: No filme, Abbot escreve seu desejo que “Nyima e Palden continuem a seguir os ensinamentos budistas de acordo com os tempos modernos”. O que você está tentando dizer com isso?

DKR: Isso não significa que eles irão mudar a visão fundamental do Buda. Isso nunca deveria ser modificado. Conheci pessoas no Ocidente que são excessivamente apegadas às características externas do budismo. Há todo um apego sentimental aos costumes e cultura tibetanos, e a visão real budista não é considerada. Na verdade, eu ouvi que ao criar o chamado “budismo americano”, algumas pessoas estão dizendo “Okay, talvez a visão do Buda deva ser modificada, agora que o Budismo está na América”. E isso não é bom.

Eu preferiria que os americanos realmente ficassem com a visão do Buda: o vazio da existência inerente, que tudo que é composto é impermanente, e por aí vai. Não importa se eles não levam em conta a cultura tibetana. A coisa realmente importante é que eles devem aceitar o darma. Eles não deveriam se preocupar em tentar projetar algo mais apropriado para os americanos. O Buda foi um ser onisciente. O que ele disse foi bom para todos os seres sencientes, incluindo a nós 2500 anos depois. Nada adicional é necessário agora.

Vejo ocidentais vestindo chubas e mostrando seus malas. Mas acho que quanto mais as pessoas fazem isso, mais elas esquecem a essência, o verdadeiro significado do ensinamento budista. É surpreendente ver quão ansiosas algumas pessoas ficam para adotar o que não é essencial e jogam fora o essencial!

KR: Eu fiquei um pouco surpresa que Abbot diria algo assim, já que ele é tão apegado à sua terra natal e tradições e não entende muito sobre os hábitos modernos.

KR: Embora muitos desses mestres tibetanos mais velhos e experientes sejam apegados à sua terra natal e possam parecer rígidos, embaixo dessa rigidez há uma abertura. Algumas vezes é bem surpreendente ver alguns lamas incorporando hábitos modernos no pensamento budista antigo, especialmente quando você conhece os tibetanos. Os tibetanos podem ter a mente muito fechada, racista. Eles tem um complexo de superioridade. Alguns deles são como missionários que vão a outros países e exigem que os nativos aprendam a cultura deles. Mas ao mesmo tempo, mestres como Chögyam Trungpa Rinpoche criaram dentro da sabedoria da linhagem tibetana um espaço para acomodar formas japonesas, francesas, britânicas e americanas de ensinar.

KR: Você diz sobre os monges no filme que o budismo é a filosofia deles e o futebol é a religião. Você acha que alguém pode se tornar iluminado por jogar futebol?

DKR: Nunca se sabe. Alguns santos do passado, os mahasiddhas, atingiram a iluminação ao contar mentiras ou tocar flauta. Então se você conhecer o mestre certo, e você tem o mérito, por que não?

KR: Por estar em um filme mundial, você parece ter se tornado bastante famoso e estar vivendo um pouco luxuosamente. Você se apegou a isso?

DKR: Demais. Estou realmente indo morro abaixo! Estou mais e mais me tornado apegado a essa vida confortável. Até uma pequena semente de gergelim na minha cama me incomoda. Eu costumava viajar em ônibus indianos, por toda a noite com filmes e músicas hindus em alto som, e ainda era capaz de fazer várias coisas na manhã seguinte. Hoje em dia, eu posso estar dirigindo uma limusine, mas se as coisas dão errado, eu fico muito irritado. É por isso que realmente acho que eu preciso ir para um retiro num lugar bem distante na Índia.

Veja bem, muitos outros Rinpoches, na minha percepção impura, parecem estar seguindo esse caminho também. Eles estão muito apegados à vida confortável. A vida de simplicidade parece ser menos e menos importante e a vida de distrações parece estar ficando mais e mais popular.

KR: Você se cansa do samsara?

DKR: Não, não. Estou muito apaixonado pelo samsara, nem um pouco cansado. Bem, talvez um pouco, graças aos anos e anos de lavagem cerebral quando eu era jovem. A impermanência e futilidade do samsara vem à mente de tempos em tempos. Mas só vem por 9 segundos, e então desaparece por outros 9 meses.

KR: Você sempre tem dito que dos 8 darmas mundanos, sua maior fraqueza são os elogios. Como você lida com os elogios desde que seu filme foi lançado?

DKR: O Buda disse que se você sabe que uma armadilha é uma armadilha, você não será pego por ela. O Buda está falando sobre atenção plena. Mas atenção plena é algo que é estranho a mim, então claro que eu caio muito na armadilha do elogio e da crítica. Tendo dito isso, meus gurus são muito especiais e eu sempre digo que se eu tenho um pouquinho de qualidade espiritual, é por conta deles.

Lembro-me de algo que Sua Santidade Dilgo Khyentse me disse uma vez. Eu costumava ser muito selvagem, e às vezes as pessoas iriam relatar minhas atitudes a ele na esperança de que ele iria me repreender e me disciplinar. Mas em vez disso, ele me dizia quem havia dito algo sobre mim, e fazia disto uma brincadeira. Ele costumava dizer: “Não se preocupe. Você deve se lembrar que sempre que houver uma pessoa lá fora que não gosta de você ou que pensa que você é doido, haverá uma centena de pessoas que vão gostar de você. E da mesma forma, sempre que houver uma pessoa que gosta de você, você não deve ficar muito animado com isso, pois vai haver uma centena de pessoas que não suportam a sua presença.” Então, gostar e não gostar são completamente irrelevantes.

KR: Falando de ser selvagem, você falou no “The Roseanne Show”, bem como no “NPR”, sobre visitar clubes de strip. Eu não sei quantas pessoas iriam ver isso favoravelmente. Porque você foi?

DKR: Eu não tive nenhuma razão profunda. Mas isso mostra que você não deve vir até mim se está procurando por inspiração.

KR: Por que às vezes você veste trajes de monges?

DKR: No budismo, falamos sobre alguns diferentes estágios de degeneração. Há um tempo degenerado que o Buda chamou de tagtsam zinpey du, o tempo no qual os trajes monásticos são mantidos apenas como marcas ou símbolos. É onde estamos agora. Ao menos estou tentando me agarrar a esse símbolo.

KR: Você tem algum arrependimento sobre o seu filme?

DKR: Muitos arrependimentos. Mas eu acho que vou usar o arrependimento como fonte para continuar o meu aprendizado.

KR: Parece que um dos seus objetivos no filme era desmistificar a ideia ocidental do Tibet e sua cultura. Por que isso era tão importante?

DKR: Pré-conceitos não são tão bons porque eles sempre te desviam.

KR: Então você tentou mostrar o lado comum da vida monástica e como isso é profundo.

DKR: O que quer que eu faça, não tenho nenhuma grande motivação. Eu só queria fazer um filme.

KR: Mas seu filme contém ensinamentos bastante profundos.

DKR: Isso depende da pessoa que o assiste. Nem todos enxergam dessa forma. Talvez o sucesso tenha só sido acidente.

KR: Você diz que seu próximo filme vai ser sobre a vida do Buda.

DKR: Só se eu tiver dinheiro suficiente.

KR: A Copa não rendeu dinheiro suficiente para financiar outro filme?

DKR: Não, nem perto disso. Nem mesmo 10% do que eu preciso pra fazer meu próximo filme.

KR: Então a vida de Buda que você quer fazer está numa escala épica.

DKR: Sim.

KR: Você deve ter feito ao menos uma centena de entrevistas até agora. Há algumas questões que você se surpreende de nunca terem sido perguntadas?

DKR: Estou surpreso que nunca ninguém me perguntou se sou gay ou não.

KR: Você é gay, Rinpoche?

DKR: Tenho uma tendência.

KR: Se você fosse se fazer uma pergunta, qual seria?

DKR: Eu só tenho um grande medo, só isso. Não é uma pergunta.

KR: Qual o seu medo?

DKR: Assim como eu quero ser bem-sucedido, eu também tenho esse medo crescente de me tornar um prisioneiro da fama.

KR: Se você pudesse ter qualquer coisa no mundo, Rinpoche, o que o faria mais feliz?

DKR: Espiritualmente, eu seria muito feliz se eu pudesse ver minhas vinte vidas passadas e vinte vidas futuras. Isso provavelmente me daria uma mente de renúncia. Em um nível comum, eu seria muito feliz se eu pudesse reunir meus textos e finalizar os romances que estou escrevendo.

KR: Eu ouvi que você ofereceu 100.000 lamparinas a Boudhnath Stupa no Nepal. O que o faz mais feliz, fazer isso ou fazer filmes?

DKR: Eu posso dizer que oferecer as lamparinas, definitivamente.

KR: Obrigado, Rinpoche.

DKR: Por nada.

KHYENTSE+NORBU

Breve biografia de Dzongsar Khyentse Rinpoche

Jamyang Khyentse Rinpoche, ou Thubten Chökyi Gyamtso, nasceu em 1961 no Butão, sendo reconhecido por S.S. Sakya Trizin como a emanação da mente de um dos maiores mestres Dzogchen de seu tempo, Jamyang Khyentse Chökyi Lodro (1893-1959).

A linhagem Khyentse, começando com o grande Jamyang Khyentse Wangpo, sempre se caracterizou pela visão não-sectarista. Refletindo essa tradição, Dzongsar Khyentse Rinpoche estudou com professores de todas as quatro escolas do budismo tibetano. Recebeu iniciações e ensinamentos de muitos dos maiores mestres contemporâneos, incluindo S.S. Dalai Lama, S.S. o 16º Karmapa, S.S. Sakya Trizin e seus próprios avós: S.S. Dudjom Rinpoche e Sönam Zangpo. Seu mestre principal foi Dilgo Khyentse Rinpoche. Rinpoche ainda estudou com mais de 25 grandes lamas de todas as quatro escolas do budismo tibetano.

Enquanto ainda era adolescente, foi responsável por publicar muitos textos raros que estavam ameaçados de serem perdidos completamente e, nos anos 80, começou a restauração do monastério Dzongsar, no Tibete.

Dzongsar Rinpoche é famoso pela liberdade descontraída com que se move entre culturas e povos e por sua dedicação incansável em trazer a filosofia e o caminho da iluminação para qualquer pessoa com um coração aberto.

Além de supervisionar sua sede tradicional no monastério Dzongsar e seus centros de retiro no Tibete Oriental, fundou diversas faculdades e centros de retiro na Índia (em Bir e Chauntra) e no Butão. Conforme o desejo de seus mestres, Rinpoche tem viajado e ensinado pelo mundo todo, estabelecendo centros de darma na Austrália, Europa, América do Norte e Ásia.

Em 1989, S.E. Dzongsar Khyentse Rinpoche fundou a Siddharta’s Intent, uma associação de centros budistas de alcance global, cuja intenção principal é preservar os ensinamentos budistas assim como aprofundar a compreensão e consciência sobre os diversos aspectos dos ensinamentos budistas em meio a diferentes culturas e tradições.

Em 2001, Rinpoche também fundou a Khyentse Foundation, uma organização sem fins lucrativos para funcionar como “um sistema de patrocínio para instituições e indivíduos engajados na prática e estudo da sabedoria e compaixão do Buda”.

Rinpoche também fundou a Lotus Outreach, uma organização sem fins lucrativos dedicada a garantir a educação, saúde e segurança de mulheres e crianças vulneráveis nos países em desenvolvimento. Originalmente fundada como suporte para a educação de refugiados, a Lotus Outreach agora também ajuda a reabilitar sobreviventes do tráfico humano e manter estudantes em risco na escola.

Dzongsar Rinpoche também dirige o Deer Park, centros de arte e contemplação no Butão e Índia, o World Peace Vase Program — uma grande iniciativa de alcance global de S.S. Dilgo Khyentse Rinpoche — e a Siddharta School, na Austrália.

Em 2008, Rinpoche fundou a Manjugosha Edition, baseada em Berlim (Alemanha), para publicar textos budistas raros e preciosos sob encomenda. Alunos seus no Rio de Janeiro criaram o grupo de prática Buda de Ipanema. Dzongsar Rinpoche visitou o Brasil algumas vezes, tendo realizado as consagrações rituais do Palácio da Terra Pura de Padmasambhava, no Khadro Ling (Três Coroas, RS), e do templo Odsal Ling (Cotia, SP), além de ensinamentos e palestras.

Dzongsar Khyentse Rinpoche também é cineasta; seus dois filmes principais são “A Copa” (1999) e “Traveller e Magicians” (2003). Ele estudou com o cineasta italiano Bernardo Bertolucci, após atuar como consultor (e breve coadjuvante) de seu filme “Pequeno Buda” (1993). Também é autor dos livros “O que te faz ser budista” (2007) e “Not For Happiness” (2012).

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