Prática formal e ajudar o mundo, uma falsa dicotomia Padma Dorje

Um ensinamento tradicional diz que, dentre as seis paramitas – generosidade, ética, paciência, diligência, concentração e sabedoria – a aplicação da subsequente produz 100 vezes mais mérito que a anterior, sendo que a última, sabedoria, produz mérito infinito.

Assim, praticar disciplina ética produz 100x mais mérito do que praticar apenas generosidade, e praticar boa disposição perante contratempos e obstáculos – perante nossas próprias dificuldades ou as que pessoas “difíceis” nos apresentam, ou mesmo perante a dificuldade em entender a vastidão do darma, mantendo “paz” sem esforço ou descontentamento frente a isso tudo –, 100x mais do que apenas praticar disciplina ética, e assim por diante.

De fato, só é considerado possível praticar bem uma paramita quando a anterior está sendo bem praticada, bem como só é possível praticá-las perfeitamente tendo realizado completamente a última, sabedoria. “Sabedoria” tem aqui um sentido específico que implica reconhecimento direto e completo da natureza da realidade, o que é o mesmo que vacuidade, interdependência e inseparatividade.

Por exemplo, na prática de generosidade, caso a pessoa guarde uma concepção de eu, outro e algo que é ofertado ou uma ação sendo realizada, isso é considerado uma prática imperfeita. Segue sendo uma prática meritória, e deve ser realizada do jeito que for possível, com ou sem todo esse reconhecimento – uma vez que mesmo a menor chance de gerar mérito não deve ser negligenciada. Porém, o sentido de “paramita” é algumas vezes traduzido como “perfeição”, e literalmente quer dizer “aquilo que nos projeta à outra margem”, isto é, que vai além de samsara e nirvana, além da insatisfação natural das aflições mentais, bem como de uma sensação de paz pessoalmente conquistada enquanto o mundo segue pegando fogo. Assim, praticar a paramita é ao mesmo tempo realizar o sentido profundo da prática, e executar o que é “perfeito” dentro de nossa possibilidade atual, seja qual ela for.

Com a realização da paramita da sabedoria, Prajnaparamita (que, a partir da prática, a realização final do Buda sobre a natureza da realidade, também deu nome a toda uma classe de textos profundos do mahayana, e foi corporificada como uma deidade feminina no vajrayana), é finalmente possível ser generoso em termos da vacuidade, ou da inseparatividade entre os três âmbitos – não surgindo uma noção arbitrária de eu, outro ou de uma ação que é feita ou objeto que é ofertado. A mente de sabedoria é a própria generosidade sem limites, que por não se fixar a nada, revela tudo como riqueza incessante. E aqui temos uma união dos aspectos de mérito e sabedoria, que são as causas para o reconhecimento do estado natural inato de buda, sempre presente, mas por vidas incontáveis não usufruído plenamente por seres confusos como nós.

Muitas vezes nossa perspectiva limitada produz questionamentos do tipo “por que ficar parado meditando tanto tempo enquanto os seres precisam de ajuda tão urgentemente?” Isto é, separamos a ideia de “ajudar os seres” do aspecto mais formal da prática – da separação de um tempo para se focar no treinamento da mente no contexto de uma prática específica, que pode estar vinculada à quinta paramita, concentração. Há várias considerações a tecer sobre isso, de forma que não caiamos no extremo de acreditar tanto que a prática formal é autossuficiente, bem como não caiamos em acreditar que “ajudar os seres” é algo tão simples quanto sair aleatoriamente pelo mundo em busca de sofrimentos específicos que podemos, talvez, com nossa mente extremamente desfocada, flutuante, estreita e rígida, ser capazes de aplacar.

Quando reconhecemos que não temos os recursos para ajudar os seres, muitas vezes o que se manifestou como boa vontade inicial acaba logo se tornando apenas niilismo e depressão. Mas no caminho que o Buda ensinou não precisa ser assim.

Em absolutamente todo o caso, a prática é feita para ajudar os seres. Mesmo na visão estreita, que algumas vezes é denominada “hinayana”, ajudamos a nós mesmos porque, afinal de contas, somos quem está mais próximo para ajudar. Nada mais lógico. Hoje em dia fala-se muito em “autocompaixão”, mas isso nada mais é que a boa e velha perspectiva estreita, na fundação dos ensinamentos budistas. Essa perspectiva não surge de uma falta de compaixão (pelos outros ou por si), como algumas pessoas podem ter afirmado ao longo da história, mas sim de uma falta de um elemento adicional, algo que talvez possamos chamar de coragem ou ousadia. A compaixão no hinayana é uma simples compaixão comedida, não uma compaixão expansiva, ousada ou intensa. O praticante dessa forma inferior, mas perfeitamente válida, de ensinamento budista, olha para a própria mente e para os males do mundo e pensa: bom, quanto a tudo isto aí, não sei se vou dar conta, mas talvez eu seja capaz de dar conta de dominar minhas próprias emoções aflitivas, e isso sem dúvida será também alguma ajuda, ainda que pequena, para o mundo.

Então, a prática, seja formal ou na vida cotidiana, até mesmo na forma mais autocentrada de ensinamento budista, tem por fim uma melhoria do mundo. A diferença na perspectiva grandiosa, o mahayana, que inclui completamente o hinayana, mas estende profundamente nossa perspectiva, é que desde o princípio assumimos que não há separação verdadeira, e que assim todos os sofrimentos de todos os seres são, no fim das contas, igualmente nossos. Podemos até começar com nós mesmos, e com aqueles que são bem próximos, mas não podemos nunca abandonar a perspectiva de profunda igualdade entre seres próximos e distantes. E, ao contrário da perspectiva usual, em que há um heroísmo forçado, de fazer “algo por alguém e agora”, que inevitavelmente nos leva a desânimo e depressão, aqui lidamos com acessar os recursos inesgotáveis e não-concorrentes da mente.

Recursos não-concorrentes são diferentes dos objetos materiais, que quando uma pessoa tem, não sobra para a outra. Ao contrário do que se pode pensar usualmente, os recursos inesgotáveis da mente, além de terem a característica de não serem concorrentes, são a única causa verdadeira de felicidade – e oferecer esse reconhecimento para si próprio ou para outra pessoa, é a única coisa que, na perspectiva que reconhece samsara como samsara realmente é, vai fazer qualquer diferença.

E é assim que, em meio ao reconhecimento desse infinito “peso” aparente no assumir responsabilidade pelo bem-estar de todos os seres que, pelo repouso nessa mente que confia completamente no potencial de iluminação, surgem simultaneamente recursos extraordinários para lidar com as mazelas do mundo, e que podem ser resumidos nas seis paramitas. Na perspectiva de algumas escolas, a prática das paramitas é nosso estado natural, é a nossa capacidade inesgotável e não-concorrente operando naturalmente e incessantemente – apenas que, por máculas adventícias na forma de hábitos de reificação embasados em aflições mentais, muitas vezes não reconhecemos ou usufruímos essas qualidades inatas. Daí a necessidade da prática, e dos ensinamentos do Buda.

A mente grandiosa que caracteriza o mahayana é aquela que reconhece simultaneamente a profundidade do poço do samsara, com todos os seus incontáveis seres, e a tesouraria da mente do Buda, que é a única coisa que realmente pode fazer diferença para eles. Faltando um dos reconhecimentos, caímos nos extremos de esperança e medo, samsara e nirvana.

Ainda assim, mesmo na perspectiva inferior, o hinayana, não fazemos meditação para ficar “bem”, mas para vencer nossas próprias limitações, o que em si é retirar pelo menos a nossa reclamação, a nossa pequena bagagem e peso, desse vale de lágrimas que é o mundo. Na perspectiva mahayana, então, mais ainda, eliminamos nossas limitações, através tanto da prática formal quanto da prática no cotidiano – e não só para deixarmos de ser um fardo para os outros, mas para efetivamente revelarmos nossas qualidades e nos tornarmos capazes de ajuda-los verdadeiramente, fornecendo o que eles realmente precisam, e usando todos os recursos extraordinários naturalmente presentes, que neste momento se mostram talvez inacessíveis devido a nossa profunda confusão, distração e falta de flexibilidade cognitiva.

É óbvio que existe mérito em digamos, dar dois reais a um mendigo. Porém, existe uma grande diferença entre fazer isso com uma aspiração convencional ou com uma aspiração ampla, irrestrita. A meditação formal implica acostumar a mente para assumir essa posição mental, essa aspiração absoluta, através da profunda inseparatividade da nossa natureza de buda sendo revelada, e da natureza de buda inata do receptáculo de nossa oferenda. Com o cultivo dessa mente ampla, até mesmo a oferenda de uma quantia irrisória gera méritos incomensuráveis. E, é sempre bom lembrar, não geramos mérito para “ficar bem”, ou para botar no banco de mérito e “nos sentirmos virtuosos”: geramos mérito porque é o mérito que escancara as portas da tesouraria do darma, que elimina os obstáculos no treinamento da mente e nos dá livre acesso à sabedoria da linhagem, que é o que enfim nos possibilitará acessar as qualidades inatas profundas e vastas de nossa própria mente. Geramos mérito para reconhecer a mandala absolutamente imaculada, para sempre além de tempo e condições: a expansão detalhada e translúcida de darma, isto é, o que realmente existe além da percepção distorcida aflições mentais e das reificações por hábito em que vivemos. Geramos mérito para encontrarmos e reconhecermos o Buda no centro dessa mandala, a própria mente inseparativa que é a natureza da realidade – e nossa própria natureza.

Não geramos mérito para encontrarmos um samsara melhorzinho, embora os méritos naturalmente produzam menos dificuldades mundanas. Geramos mérito para reconhecer vividamente o que sempre esteve debaixo de nosso nariz, nossa natureza como a natureza perfeita e consumada de um Buda.

Caso entendamos bem o que é “samsara”, sabemos que nenhuma comida, casa ou boas condições nunca ajudaram verdadeiramente nenhum ser. Toda ajuda que pode ser dada nesse sentido é temporária. Existe mérito em prover tudo isso, mas quando nos focamos apenas em melhorar as condições dos seres, ignoramos que “melhorar condições” é, no mais das vezes, apenas prover mais possibilidades de insatisfação. Vemos isto até em nossa própria vida, quando algumas vezes nos esforçamos tanto por uma ou outra conquista mundana, e ela logo, amargamente, se torna nossa maior dor-de-cabeça. E isso acontece vez após vez porque estamos nos esforçando com uma perspectiva tacanha, e almejando o que, por sua própria natureza, não vai e não pode produzir felicidade verdadeira. Oferecer para os outros essas motivações pueris pode se tornar, no fim das contas, apenas ajudá-los a se aprisionar num samsara “melhor”, temporariamente melhor. Como dizem os Sutras, trocar algemas de ferro por algemas de ouro. Novamente, ninguém nega que haja certo mérito nisso, particularmente quando os seres estão em situações tão ruins que não chega a ser concebível para eles considerar algo como praticar o darma e transcender a insatisfação de forma absoluta – algumas vezes isto é tudo que se pode oferecer para seres que não têm mérito nem em reconhecer a virtude, ou a vantagem de não operar aleatoriamente, quanto mais de reconhecerem a natureza além do engano.

A prática mahayana, nesse caso, implica desenvolver sabedoria, o que pelo sentido da inseparatividade significa aspirar que os seres reconheçam sua verdadeira natureza, a natureza imanente e não causal de um buda, indissociável da própria sabedoria. E essa ajuda você só vai conseguir dar ao revelar você mesmo essa natureza em si. Caso contrário, tudo que podemos fazer é, no fundo, não muito diferente do que dar dois reais para alguém comprar uma pedra de crack. Mesmo que estejamos oferecendo educação, casa, alimentação, ou até certas meditações inferiores e práticas religiosas – no fundo, sem o exemplo consumado de um Buda, sem a profundidade da natureza vazia e luminosa da mandala e da linhagem, isso tudo será um pouco melhor que uma pedra de crack. Um barato instantâneo que no fundo nos aprisiona ainda mais.

Caso a pessoa realmente entenda a profundidade do sofrimento do samsara, ela sabe que uma boa vida convencional não é extremamente diferente da miséria convencional. Então ela vê que ela mesma não conseguiu se libertar do samsara, e que ainda não consegue dar um exemplo disso, e, ademais, ela reconhece que está dominada por aflições mentais tais como ansiedade, ressentimento, orgulho, egoísmo, inveja, indiferença e preguiça: assim é evidente que a prática formal, o treinamento da mente, se torna o elemento mais importante, a prioridade número um. Na perspectiva budista, que é além do tempo, e que perpassa várias vidas, domar a própria mente, reconhecer a própria natureza, até ser capaz de dar um exemplo consumado aos outros, é a única ajuda verdadeira que se pode dar aos seres.

Novamente, isso não quer dizer que a pessoa não possa se movimentar para ajudar os outros de forma convencional. Só que, para quem entende o que é samsara – a profunda insatisfatoriedade em todas as coisas compostas –, isso não deveria ser a prioridade. A prática não se dá apenas na almofada, é claro. Ajudar os outros, por exemplo, dando sopa na rua, pode ou não ser uma prática integrada com sabedoria. Se não tem sabedoria, ainda assim é um tanto positiva – talvez só não seja aconselhável que seja tomada como prioridade. É preciso desenvolver a autocompaixão de olhar para as emoções aflitivas brotando em nossa mente e reconhecer que, em meio a elas, nossa capacidade de ajudar ainda é ínfima.

De fato, a ajuda convencional só se torna prioridade quando temos dois defeitos comuns e possíveis: achamos que já estamos resolvidos, ou achamos que não temos jeito. Caso saibamos que temos muito a melhorar, e que não somos um exemplo perfeito de alguém que reconhece a natureza da realidade, nossa prioridade é naturalmente correta. Da mesma forma, se achamos que não temos jeito, o que estamos oferecendo ao outro? Em ambos os casos, com aquela sopa estamos oferecendo apenas soberba ou niilismo – e quem recebe pode até encher a barriga temporariamente, mas no fundo o que está atrelado àquela refeição é só mais um pontapé da vida. O mendigo, com sua natureza búdica inata recebendo e consagrando essa substância, é que pode estar fazendo um favor a você ao receber sua oferta, porque no fundo você não tem nada a oferecer além de duas conchas de sopa. Se não houver a dignidade e sanidade da mente de buda em nenhum dos lados, essa perspectiva pode até mesmo fazer todos os envolvidos ainda mais miseráveis.

Então, pode parecer que a posição mental numa oferenda não seja o ponto, que o que importa é a substância: mas essa é a perspectiva materialista usual, que nunca produziu felicidade verdadeira para ninguém. Na perspectiva do darma, oferecer com uma mente vasta é, efetivamente, oferecer o reconhecimento da mente vasta. E é isso que efetivamente enriquece a todos, até mesmo materialmente, uma vez que a própria substância também depende, no fim das coisas, apenas da mente. [Nota com relação ao texto anterior: esta é uma oferta da perspectiva yogachara como mais elevada apresentação convencional.]

E todos nós sabemos o quanto é comum fazer caridade com soberba, olhando de cima. Fazer caridade reduzindo o “necessitado” a um objeto para alimentar minha própria sensação de virtude e bem-estar, quando não pura vaidade. E, mesmo aí, existe certo mérito. Porém, se somos capazes, devemos fazer melhor que isso. Devemos praticar a generosidade convencional e junto com essa prática vencer a crença habitual em um “eu”, e a reificação das aparências como “realidade” – ajudando a todos os envolvidos, inclusive nós mesmos, a reconhecer a verdadeira natureza além da separação. Então, com essa prática, o mérito naturalmente cresce exponencialmente. E mais mérito significa só duas coisas: maior compreensão do darma, e mais possibilidades para ajudar os outros. E uma coisa significa exatamente o mesmo que a outra, nem mais, nem menos.

De um ponto de vista prático, quando vemos alguém muito ocupado ajudando os outros com o que pode parecer grandioso, ou até mesmo com o que podemos considerar picuinhas, supérfluos ou irrelevâncias, e uma pessoa que fez talvez 50 anos de retiro, não podemos cair no extremo de achar que um praticante é necessariamente melhor que o outro. É tão possível perder 50 anos de tempo em retiro sem realmente praticar muita coisa que importe, quanto é possível uma pessoa se movendo de forma aparentemente, para nós, muito confusa no mundo ser na verdade um bodisatva agindo além de nossa compreensão.

O correto é regozijar com a prática formal e as ações positivas dos outros, sejam elas pequenas ou grandes, mesmo porque não temos acesso a suas motivações, a profundidade de suas aspirações e a posição de suas mentes. Também usamos a mente grandiosa (a união do cultivo do reconhecimento com a própria imanência desta realidade profunda em que todos são, no fundo, budas) para não julgar as ações dos outros, e regozijar com tudo que seja evidentemente positivo, por pequeno que seja. Podemos até julgar nossa prática, mas não a dos outros – não temos acesso à mente alheia. Quando alguém se diz “engajado”, implicando com isso que talvez você não seja, apenas deixe estar. Muitas vezes é apenas uma manifestação do que se chama “culpa branca”, aquilo que a classe média algumas vezes sente diante de causas sociais – não tem nada a ver com darma. Na perspectiva do darma até mesmo o estado meditativo cheio de êxtase de bodisatvas elevados é objeto de compaixão – que dizer os reinos de deuses, as pessoas necessitadas do mundo, animais e reinos inferiores. Porém, a mente que quer se engajar para eliminar sofrimentos é virtuosa, seja ela estreita ou ampla – seja ela externamente vistosa e ativa no mundo, seja ela recatada, presente numa almofada, num lugar quieto – e não é objeto de crítica em qualquer caso. E você sabe que, em qualquer caso, poderia mesmo estar fazendo mais, então aceite a crítica. A prática do bodisatva é aceitar críticas e oferecer louvores, e isso só é possível quando não há um “eu” que se envolve com críticas e louvores. E esse é um recurso que pode ser atingido com prática formal e mérito.

Porém, realisticamente falando, olhando honestamente para nossas mentes agora, reconhecemos que efetivamente não temos muita capacidade de ajudar. Nossa mente é tacanha, desejamos coisas pequenas para nós mesmos e para as pessoas, e mesmo essas coisas pequenas, não somos capazes de prover direito e de uma forma um pouco mais digna. Algumas vezes não somos capazes de obter para nós mesmos essas coisas menores, tamanha é nossa falta de mérito e perspectiva de fuinha. Então a prioridade é atingir a expansão da mente, e assim através da sabedoria abrir a tesouraria do mérito do Buda, e através dos méritos infinitos da linhagem obter recursos mundanos e espirituais para efetuar a ajuda em termos da bodicita – a atitude e aspiração pela iluminação numa perspectiva de igualdade profunda, sem eu-e-outro –, produzindo todo tipo de felicidade temporária, e mantendo a prioridade em produzir felicidade definitiva, o umedecer das sementes de estado de buda para que desabrochem em incontáveis seres. Esta é a prática do bodisatva.

Offerings (Tibetan Water Offering Bowls) in Lamayuru gompa (Tibetan Buddhist monastery). Ladadkh, India
Oferendas de água no Lamayuru Gompa em Ladadkh, India.

Milarepa disse que toda a água que ele bebeu durante a vida nunca conseguiu saciar a sede definitivamente. Ele sempre precisou beber mais água logo adiante. No entanto, quanto ele recebeu o darma, ele saciou a sede de vidas incontáveis, e encontrou um estado de satisfação que não oscila e não se perde. Então, em vez de apenas dar água a um cachorro sedento, nos instrumentalizamos para poder oferecer a interdependência definitiva com os métodos do Buda, que vão produzir os dois benefícios, os temporários e o definitivo.

E, mesmo assim, não há porque, havendo água, não oferecer também água. Novamente, mesmo uma mínima oportunidade de gerar mérito não deve ser negligenciada.

De um ponto de vista também prático, e absolutamente mundano, no entendimento budista as pessoas sofrem devido a suas aflições mentais. Elas encontram circunstâncias de fome ou sede devido a terem treinado uma mente mesquinha por muitas vidas. É por causa disso que surgiu um corpo que o tempo todo necessita de substâncias grosseiras para se manter. Segundo a perspectiva budista, nem todos os seres são assim, alguns deuses no reino da forma, por exemplo, apenas pensam numa fruta e assim ficam saciados. Mas essa é uma condição de um corpo gerado por certo tipo específico de mérito (e que também nem chega a ser um objeto da prática budista, por também ser samsárico!).

Então a melhor ajuda a alguém que tem necessidade, é ensinar a essa pessoa a prática de generosidade, e as outras paramitas subsequentes, que geram mérito cumulativamente. E não só pelo exemplo, de dar efetivamente um pouco de comida e bebida para aquela pessoa, mas efetivamente achando um meio de desenliçar as qualidades prístinas do estado desperto que são a herança inata daquele ser.

Dedicar os méritos significa parar e considerar a virtude que se realizou, perceber que ainda subsiste um senso de conquista pessoal nisso, e então reconhecer que qualquer bem que tenhamos realizado dependeu de causas e condições estabelecidos por incontáveis seres que nos alimentaram com seus próprios corpos ou que nos ensinaram a ler e escrever, ou inspiraram nosso interesse no darma sagrado. Ainda assim, talvez reste uma pontinha de vitória pessoal em sentir ter completado uma tarefa virtuosa, e mesmo esse quinhão minúsculo que consideramos ser nossa contribuição individual para toda essa cadeia de intercausação, paramos por um instante para oferecer a alguém específico – o chinês que colocou os parafusos nesse teclado numa fábrica movimentada alguns anos atrás –, ou a todos os seres. Os ensinamentos dizem que é como devolver uma gota ao oceano – se ela fica sozinha sobre a relva, logo evapora, mas misturada ao mar, mesmo com muita evaporação, é possível que algumas moléculas daquela gota persistam por muito tempo. Da mesma forma, ações virtuosas que são pessoalizadas, tendem a ter o potencial benéfico para nossa própria mente e para os seres evaporado facilmente. Ações virtuosas que são oferecidas, isto é, que são despessoalizadas, permanecem e até mesmo crescem na tesouraria oceânica da mente inseparativa. Dessa forma, é recomendado pelos ensinamentos grandiosos do Buda  encerrar qualquer ação virtuosa – seja prática formal ou no cotidiano – com um momento para refletir sobre o que foi realizado e consagrar isso no escopo da sabedoria.

Que através desse mérito todos os seres-mendigos reconheçam o diamante que, sem perceber, sempre carregaram em suas roupas esfarrapadas.

 

eduardo-pinheiro-1Padma Dorje é praticante budista e autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos.  Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org.

Comentarios:

comments

  • Marcos Dias Coelho

    “E todos nós sabemos o quanto é comum fazer caridade com soberba, olhando de cima.”

    Talvez, o vocábulo caridade em si seja o problema. Que tal se substituíssemos por compartilhamento? Se nossas ações dadivosas forem entendidas como apenas partilhar, talvez a noção de mérito implicitas nestas ações perca o sentido.

    Acho que vale reforçar que a prática nos leva a não reagir de forma atabalhoada e agressiva aos “cuidados” que muitos dos nossos semelhantes nos dispensam todos os dias. Não multiplicar essa violência já ajuda muito!!! Se alguém em um ônibus urbano nos agride com palavras ou gestos e lhe devolvemos um sorriso sincero, essa pessoa no mínimo vai ficar intrigada….

    Por fim, a gratidão é outra dimensão que devemos considerar. Quando sentamos, começamos a perceber que a realidade que nos cerca é uma dádiva e então sentimos uma intuitiva necessidade de agradecer, em vez de reclamar, lamentar e exigir.

    Seus textos sobre o Dharma publicados no PdH foram os primeiros incentivos que me levaram a me interessar pelo Dharma. Daí para a investigação sentado em uma almofada foi outro passo… por isso sou muito grato.

    _/|_