Princípios da ciência contemplativa B. Alan Wallace

B. Alan Wallace
Excerto de “Ciência Contemplativa. Onde o Budismo e a Neurociência se Encontram

PRINCÍPIOS DA CIÊNCIA CONTEMPLATIVA

A simples ideia de propor uma disciplina com o nome de “ciência contemplativa” pode despertar suspeita entre aqueles que prezam as conquistas da ciência, as quais, em parte, devem-se justamente à separação de seu método de investigação de toda e qualquer vinculação religiosa. Essa estranheza tem uma forte base histórica e, portanto, deve ser levada a sério. Mas os princípios da contemplação e da ciência também têm bases históricas que sugerem uma possível reconciliação e até mesmo uma integração das duas abordagens.

O termo latino contemplativo, que deu origem à palavra “contemplação”, corresponde à palavra grega theoria. Ambas referem-se a uma total lealdade para com o revelar, esclarecer e tornar manifesta a natureza da realidade. O objetivo central delas é a busca da verdade e nada menos que a verdade. De acordo com o teólogo cristão Josef Pieper, o principal elemento envolvido no conceito da contemplação é a percepção silenciosa da realidade.  Essa, segundo ele, é uma forma de conhecimento alcançada não por meio do  pensamento, mas da visão. “A intuição é, sem dúvida, a forma perfeita de conhecer. Porque a intuição é o conhecimento do que está realmente presente; a analogia com ver com os sentidos é exata”. Mas diferentemente do conhecimento objetivo, a contemplação não se dirige meramente para o seu objeto; ela já repousa nele.

Embora o termo “ciência” tenha sido considerado unicamente no âmbito da exploração de fenômenos objetivos, físicos e quantitativos – a ponto de apenas eles serem considerados reais por alguns cientistas – existem fundamentos para se considerar a ciência num contexto mais amplo. O Webster’s Ninth New Collegiate Dictionary define método científico nos seguintes termos: “Princípios e procedimentos para a busca sistemática de conhecimento envolvendo o reconhecimento e a formulação de um problema, o levantamento de dados por meio de observação e da experimentação, bem como a formulação e comprovação de hipóteses”. Não há nada nessa definição que impeça a possibilidade de o indivíduo fazer da perspectiva da primeira pessoa observações de fenômenos mentais e sua relação com o mundo como um todo. Exatamente como os cientistas fazem observações e conduzem experimentos com a ajuda de recursos tecnológicos, os meditadores vêm há muito tempo fazendo suas próprias observações e conduzindo seus próprios experimentos fazendo uso do refinamento de suas capacidades de atenção e do exercício da imaginação. Em princípio, não existe, portanto, nada que seja fundamentalmente incompatível entre a contemplação e a ciência. Mas o peso da história continua se opondo a qualquer colaboração proveitosa entre as duas.

A força que a ciência adquiriu ao se divorciar da religião, e mais recentemente da filosofia, impôs um pesado tributo a suas sociedades hospedeiras. É importante observar que o século XX, que gerou o mais vasto conhecimento científico de todo o curso da história da humanidade, também testemunhou a maior desumanidade para com o homem, como também a maior degradação do meio ambiente e dizimação de outras espécies. A expansão do conhecimento científico não trouxe nenhum crescimento comparável em termos de ética e virtude. Em consequência disso, a sociedade moderna adquiriu mais conhecimento e poder, mas não mais sabedoria e compaixão.

A ciência é vista há muito tempo com orgulho, e não sem justificação, como sendo “isenta de valores”. Tenho encontrado frequentemente cientistas que falam do puro prazer da descoberta, sem qualquer relação com as possíveis aplicações práticas de suas pesquisas. Mas não podemos ignorar o fato de a maior parte das pesquisas científicas serem atualmente financiadas por instituições públicas e privadas que têm em mente objetivos específicos. Elas querem bons retornos sobre os investimentos que fazem. Com a moderna dissolução da fusão medieval de religião, filosofia e ciência, ocorreu uma desintegração semelhante na busca da felicidade genuína, verdade e virtude – três elementos essenciais que dão sentido à vida. A ciência contemplativa que tenho em mente procura reintegrar a busca desses três elementos por meios totalmente empíricos, sem submissão dogmática a qualquer sistema de crenças, seja de caráter religioso ou não. Para explorar essa possibilidade, vamos antes rever os elementos essenciais da felicidade genuína, da verdade e da virtude que devem ser integrados.

 

OS ELEMENTOS ESSENCIAIS DE UMA VIDA PLENA DE SENTIDO

Felicidade Genuína

A felicidade é um sentimento de bem-estar que subjaz e permeia todos os estados emocionais, abarcando todas as vicissitudes da vida, e que se distingue do “prazer hedonista”, que é a sensação de bem-estar provocada por estímulos prazerosos. A palavra grega que estou traduzindo como felicidade genuína é eudaimonia, a qual Aristóteles em sua Ética e Nicômaco igualou ao que há de bom no homem. Ela se manifesta como um processo da alma em concordância com a virtude, e se houver mais de uma virtude, com a melhor e mais completa 3. Felicidade genuína não é a simples culminação de uma vida com sentido, mas uma característica da pessoa em processo de desenvolvimento ético e espiritual. Esse é um conceito intencional genérico de desenvolvimento humano que deixa a cada leitor a tarefa de decidir qual é a virtude “melhor e mais completa”. É obvio que esse ideal de felicidade genuína pode ser adotado tanto por pessoas religiosas como por não religiosas e cada uma irá definir  seus atributos específicos de acordo com sua própria visão de mundo. Como veremos a seguir, esse bem-estar é consequência natural do desenvolvimento de um equilíbrio mental que propicia o fortalecimento do “sistema imunopsicológico”, com o qual a pessoa raramente sucumbe a uma vasta gama de aflições mentais. Um estado de presença serena, equilíbrio emocional e clareza mental são característicos dessa felicidade genuína, que naturalmente se expressa num modo de vida harmonioso e altruísta.

Santo Agostinho (354-430 d.C.) levantou essa questão ao declarar que a única coisa de que necessitamos é a resposta à seguinte pergunta: “Como o homem pode alcançar a felicidade?” 4 A felicidade genuína, segundo ele, é um “prazer proporcionado pela verdade”, enquanto as duas causas reais dos infortúnios humanos são “a profunda ignorância” e “o amor pelas coisas vãs e perniciosas”. A busca da verdadeira felicidade, ele declarou, é motivada pelo amor a Deus, que é o desejo de união com ele. Essa ênfase na profundidade da busca de felicidade não se restringe à antiguidade grega ou à teologia cristã. O Dalai Lama escreveu em seu livro The Art of Happiness, que se tornou um best-seller: “Acredito que a busca da felicidade seja o próprio propósito da vida. Independentemente de a pessoa ter alguma crença religiosa, de acreditar nessa ou naquela religião, todos nós estamos buscando algo melhor na vida. Portanto, eu acho que o próprio movimento de nossa vida segue na direção da felicidade”. 

Verdade

A experiência da felicidade genuína não é alcançada como um mero resultado da satisfação de prazeres sensoriais ou de estímulos intelectuais. Tampouco é resultado da mera aprendizagem de pensar em determinada maneira ou da adoção de uma atitude otimista. Ela tem que estar baseada num verdadeiro entendimento da verdade. Mas existem muitas verdades que têm pouca relevância para o pleno desenvolvimento humano. Muitos dos aspectos do mundo natural estudado pelos cientistas parecem extremamente distantes dos valores humanos, e parece não haver razão para se acreditar que os cientistas em geral, apesar de todo seu conhecimento do mundo físico, sejam mais felizes do que os profissionais de qualquer outra área. Conforme já observamos, o enorme crescimento do conhecimento científico no século passado não correspondeu a nenhum crescimento equivalente em termos da felicidade humana, embora os avanços da medicina tenham certamente contribuído enormemente para o nosso bem-estar físico.

Isso quer dizer que as verdades relevantes à plena realização humana não são as mais comumente exploradas com sucesso pela ciência moderna. Embora os cientistas tenham ficado sua atenção particularmente no mundo exterior, não existe nenhum aspecto da realidade mais pertinente à felicidade genuína do que a natureza da identidade humana. O teólogo cristão Joseph Maréchal aborda esse tópico dentro do contexto da investigação contemplativa: 

A mente humana […] é uma faculdade à procura de sua intuição – ou seja, de integração com o Ser, o Ser puro e simples, uno e soberano, sem restrição, sem distinção entre essência e existência, entre possível e real […] Mas aqui embaixo, em lugar do Uno, ela se encontra com o múltiplo, o desconexo. Aqui, no que diz respeito à verdade, a multiplicidade infinita de objetos suspende a afirmação e engendra a dúvida […] A afirmação da realidade não é então nada mais que a expressão da tendência básica da mente para a unificação no e com o Absoluto.

Também na tradição budista, a importância do autoconhecimento não pode ser exagerada, especialmente sob a luz da afirmação budista de a causa principal do sofrimento humano ser a ignorância e a ilusão, especificamente no que diz respeito à própria identidade. De todas as virtudes enfatizadas pelo budismo, nenhuma  é mais importante do que a da sabedoria, que envolve a percepção da natureza última da realidade. Shântideva, um iminente budista indiano do século VII, escreveu: “O Sábio ensinou todo esse sistema para se alcançar a sabedoria. Por isso, com o desejo de se precaver do sofrimento, a pessoa deve procurar alcançar a sabedoria”. 

 

Virtude

Exatamente como a felicidade genuína encontra-se inextricavelmente ligada à compreensão da verdade, ela tampouco pode se compreendida sem levar em consideração a virtude. Apesar das inúmeras diferentes teorias que abundam entre filósofos e teólogos, a breve definição de Santo Agostinho é particularmente notável e universal, por tê-la exposto em termos de “ordem do amor”, o que tem a ver com a prioridade dos nossos valores. Seguindo as palavras de Jesus com respeito à importância central do amor a Deus e a seus semelhantes, o teólogo John Burnaby escreveu: “O amor a Deus, que é o desejo de união com Ele, e o amor entre os homens, que é o sentimento de união com todos os seres capazes de compartilhar do amor de Deus, estão de fato intrinsecamente ligados um ao outro”.  Essa é a base de todas as virtudes dentro do contexto teísta.

No contexto do budismo, que costuma ser considerada uma religião não teísta, uma vida de virtudes é a base necessária para a busca da verdade e da felicidade genuína, ou da plena realização humana. Essas virtudes são de três tipos: social/ambiental, psicológica e espiritual. Apesar de as teorias éticas do budismo estarem profundamente enraizadas na visão de mundo budista, incluindo suas doutrinas com respeito à reencarnação e ao karma, em seu livro Ethics for the New Millennium, o Dalai Lama apresentou uma visão de ética secular que é igualmente relevante tanto para adeptos como não adeptos de qualquer religião.

 

Bem-estar psicológicos

O poder de persuasão do behaviorismo, da psicologia e da neurociência concerne a tópicos como tomada de decisão, atenção e afirmações a respeito do que as pessoas sentem em diferentes situações controladas. Os processos mentais estudados pelas ciências cognitivas são em grande medida aqueles que, de uma perspectiva evolutiva, contribuíram para que a espécie humana sobrevivesse e proliferasse. Todas as ramificações da psicofísica e da psicologia que tratam de aspectos como atenção, cognição, relações sociais e tipos de personalidade dependem das respostas das pessoas e perguntas quanto à intensidade de alguma coisa, como a cor que estão vendo, o volume de um determinado som, no que elas acreditam, quais são suas atitudes e assim por diante. Muitos desses dados foram organizados em termos de princípios coerentes e os conjuntos estruturados de descobertas que os cientistas cognitivos vêm tentando organizar e entender são muito vastos. A neurociência contemporânea veio colocar mais luz sobre o que os psicólogos exploraram em termos de memória, atenção, emoções, atitudes, etc.

Especialmente desde a Segunda Guerra Mundial, a maior parte dos estudos psicológicos, particularmente nos Estados Unidos, tem sido realizada com foco nos processos mentais normais e patológicos. Apenas recentemente, a atenção científica começou a se voltar para o bem-estar mental, mas as verbas para essas pesquisas têm sido limitadas em razão de a natureza do bem-estar e seus efeitos comportamentais não serem bem conhecidos – uma típica situação sem saída! É ai que as tradições contemplativas do mundo, que vêm há muito tempo se ocupando da felicidade humana no contexto da verdade e da virtude, poderiam dar importantes contribuições.

Dentro do vasto contexto da felicidade genuína, pode valer a pena o esforço para identificar os domínios específicos de desenvolvimento. Com base no bem-estar social e ambiental que resulta do cultivo de atitudes éticas, a pessoa pode chegar ao bem-estar psicológico que advém de uma psique saudável e equilibrada. Estou usando a palavra “psique” para designar toda uma gama de fenômenos mentais conscientes e inconscientes estudados pelos psicólogos, incluindo percepções, pensamentos, emoções, memórias, fantasias, sonhos e visões de todos os tipos. Os processos psicológicos são condicionados pelo corpo, pela história pessoal, pelo meio ambiente físico e pela sociedade, além de, a cada momento, estarem em estreita correlação com funções específicas do cérebro. A psique pode ser estudada indiretamente por meio de questionamentos individuais e do exame do comportamento do cérebro e observada diretamente pela introspecção.

Se o bem-estar psicológico resulta da saúde e equilíbrio da mente, ele precisa ser entendido com relação a tipos específicos de desequilíbrios mentais aos quais as pessoas normais – em geral consideradas relativamente saudáveis – estão comumente propensas. Um pressuposto básico por trás da análise seguinte é que o sofrimento mental seja em geral um sintoma de desequilíbrios mentais, assim como a dor física é um sintoma de doença ou ferimento.  Nos próximos tópicos, vamos examinar quatro tipos de desequilíbrios mentais – relacionados com a conação, a atenção, a cognição e o afeto – e em cada um, iremos identificar os desequilíbrios em termos de deficiência, hiperatividade e disfunção.

 

Desequilíbrios conativos

“Conação” é um termo importante, apesar de não ser usado comumente, que tem relação com as faculdades do desejo e da volição. Os desequilíbrios conativos desviam nossos desejos e intenções do caminho da satisfação psicológica e nos causam sofrimento psicológico. Há uma deficiência conativa quando nos vemos diante da perda apática do desejo de felicidade e suas causas, bem como de uma indisposição para aliviar nosso próprio sofrimento e o de outros. Essa deficiência vem normalmente acompanhada de uma falta de imaginação e de uma espécie de estagnação complacente: não conseguimos imaginar nenhuma saída melhor e, portanto, nem tentamos alcançar bem-estar. A hiperatividade conativa ocorre quando nos fixamos em desejos obsessivos que obscurecem a realidade do presente. Estamos tão aprisionados a fantasias com respeito ao futuro – e desejos não realizados – que nossos sentidos ficaram embotados diante do que está acontecendo aqui e agora. Nesse processo, podemos também nos manter cegos para as necessidades e desejos dos outros. Finalmente, a disfunção conativa ocorre quando desejamos coisas que não conduzem a nosso próprio bem-estar nem ao de outros e não desejamos o que possa vir a contribuir para o nosso bem-estar e de outros. É crucial reconhecer que a satisfação psicológica individual não é algo que possa ser cultivado sem qualquer relação com os outros. Nós não existimos independentemente dos outros e, consequentemente, nosso bem-estar tampouco pode ocorrer independentemente dos outros. Temos que levar em conta o bem-estar das pessoas à nossa volta.

Que tipo de coisas (no sentido mais amplo, incluindo coisas e qualidades tangíveis e intangíveis) proporcionam realmente o bem-estar psicológico? Em seu livro, The High Price of Materialism, o psicólogo Tim Kasser analisa a relação entre os valores materialistas que predominam no mundo de hoje e o bem-estar que todos nós almejamos. Ele conclui: 

A pesquisa científica vigente sobre o valor do materialismo revela descobertas claras e consistentes. As pessoas altamente centradas em valores materialistas têm menos bem-estar pessoal e saúde psicológica do que as que dão relativamente pouca importância às conquistas materiais. Essas relações foram documentadas em amostras que abarcam tanto ricos como pobres, adolescentes e idosos, australianos e sul-coreanos.

 

Como já vimos, Santo Agostinho considerou o “amor pelas coisas vãs e perniciosas” como uma espécie de disfunção conativa, enquanto o desejo mais profundo e com base na realidade é o amor a Deus, que é o desejo de unir-se a Ele. Nicolau de Cusa, cardeal da Igreja Católica Romana do século XV, repetiu esse tema ao escrever: “Todo aquele… que busca, busca apenas o bem e todo aquele que busca o bem e se afasta de ti [Deus] se desvia do que está buscando”.  Shântideva tratou da mesma questão de uma perspectiva não teísta: “Aqueles que procuram escapar do sofrimento correm diretamente para ele. E apesar do desejo de felicidade, movidos pela ilusão, eles destroem o próprio bem-estar como se fosse seu inimigo.” 

Apesar de existirem muitas abordagens para restaurar o equilíbrio conativo, umas delas é tratar de sair da apatia pelo reconhecimento da possibilidade de felicidade genuína, curar o desejo obsessivo pelo cultivo da satisfação e reparar os desejos equivocados pelo reconhecimento das verdadeiras causas da felicidade genuína e de nossa vulnerabilidade ao sofrimento. Métodos específicos para contrabalançar os desequilíbrios conativos foram desenvolvidos por diversas tradições psicológicas e contemplativas tanto para pessoas com visão de mundo secular como teísta e não teísta.

 

Desequilíbrios de atenção

Ninguém que sofra de sérios desequilíbrios de atenção pode ser considerado psicologicamente saudável. A atenção deficiente é caracterizada pela incapacidade da pessoa se concentrar num determinado objeto. A mente se retira e se distancia até mesmo de seus próprios processos internos. A atenção hiperativa ocorre quando a mente é excessivamente estimulada, resultando em distração e fragmentação compulsivas. E a disfunção da atenção ocorre quando nos centramos nas coisas de maneira ansiosa, que não conduz nem ao nosso próprio bem-estar nem ao de outros. Por exemplo, uma pessoa que sofre de compulsão sexual só vê os outros como objetos sexuais e um vendedor pode se envolver mentalmente com outros apenas como possíveis compradores. Nesses casos, a mente está propensa tanto aos desequilíbrios de atenção como aos de conação, que comumente andam de mãos dadas.

A atenção deficiente se aproxima do conceito budista de lassidão e a atenção hiperativa corresponde ao de agitação. Esses desequilíbrios podem ser sanados pela prática da atenção – a capacidade de manter voluntariamente a atenção focada num objeto familiar, sem descuido ou distração; e da meta-atenção – a capacidade de monitorar a qualidade da atenção, percebendo rapidamente quando ela sucumbiu ou à agitação ou à lassidão. Shântideva ressaltou a importância da capacidade de atenção para a satisfação psicológica: “Pelo aumento dessa disposição, a pessoa consegue estabilizar a mente em concentração meditativa, uma vez que com a mente dispersa, ela vive entre as garras de suas aflições mentais”. 

Enquanto os praticantes de meditação budistas identificaram e aprenderam a restaurar esses desequilíbrios da atenção, os mesmos problemas foram objetos de interesse de todas as tradições contemplativas do mundo. Um meditador cristão ortodoxo do Oriente escreveu: “Observando atentamente o próprio coração, aumentando a consciência de si mesmo, o aspirante alcança a nepsis (‘sobriedade’ ou ‘vigilância’) e a diakrisis (‘discernimento’ ou ‘discriminação’, a capacidade para distinguir os pensamentos positivos dos negativos)”.  E Joseph Maréchal segue na mesma linha ao escrever:

Não se pode chegar à contemplação sem uma atenção prolongada, pelo menos por alguns instantes; então a atenção atua sobre os elementos psicológicos à maneira dos polos de um magneto, que são limalhas de ferro imantadas. É possível que a característica da contemplação seja mais uma profunda orientação do ser humano numa intuição ou voltada para uma intuição? 

 

Desequilíbrios cognitivos

Uma pessoa que sofre de um grave desequilíbrio cognitivo está radicalmente dissociada da realidade e é, em geral, diagnosticada como vítima de alguma espécie de psicose. Em geral, as pessoas normais também propendem a desequilíbrios cognitivos, que constituem a origem de muitos distúrbios mentais. Esses desequilíbrios são frequentemente considerados como inerentes à natureza humana, mas essa é uma suposição à espera de ser desafiada por estudos empíricos rigorosos.

Prosseguindo a análise dos três tipos de desequilíbrios, a deficiência cognitiva é caracterizada pela incapacidade de perceber o que está presente nos cinco campos da experiência sensorial e na mente. Quando nos encontramos dissociados do que está ocorrendo tanto à nossa volta como em nosso interior, estamos sofrendo do distúrbio da deficiência cognitiva. A hiperatividade cognitiva entra em ação quando confundimos nossas projeções conceituais com a verdadeira percepção – quando não conseguimos distinguir as realidades percebidas das suposições e fantasias sobrepostas. Os psicóticos fazem isso de formas extremadas, enquanto as pessoas normais são mais prudentes, mas a maioria de nós encontra-se no mesmo espectro da hiperatividade cognitiva, o que resulta em sofrimento mental desnecessário. Finalmente, a disfunção cognitiva ocorre quando compreendemos mal as coisas, por alguma falha ou em nossos sentidos físicos ou em nossa capacidade para interpretar o que está acontecendo.

Superar esse desequilíbrio cognitivo é um dos propósitos mais importantes da prática budista e, para isso, uma das principais intervenções é o cultivo da percepção atenta. O primeiro desafio consiste em aprender a dar atenção apenas ao que está sendo apresentado aos nossos sentidos e aos nossos processos mentais internos. Para isso, Buda propôs o seguinte ideal: “No que é visto existe apenas o que é visto: no que é ouvido, existe apenas o que é ouvido; no que é sentido, existe apenas o que é sentido; no que é percebido, existe apenas o que é percebido”. Em seus desdobramentos sobre essa questão, o budismo dá instruções detalhadas sobre como aplicar a atenção a nossa própria presença física e mental no mundo, a relação com os outros seres e com o ambiente inanimado. Existe um volume crescente de pesquisas científicas explorando os efeitos terapêuticos dessa prática de atenção, grande parte delas inspirada pela obra de Jon Kabat-Zinn e seu extremamente bem –sucedido programa de redução do stress com base nessa prática.

 

Desequilíbrios afetivos

Esses desequilíbrios costumam ocorrer em decorrência de desequilíbrios de conação, atenção e cognição e podem ser classificados como de três tipos. A deficiência afetiva apresenta-se em sintomas como de apatia emocional e uma sensação de fria indiferença para com os outros. A hiperatividade afetiva é caracterizada pela alternância entre entusiasmo e depressão, esperança e medo, adulação e desprezo, desejo obsessivo e hostilidade. A disfunção afetiva ocorre quando as reações emocionais são inapropriadas para as circunstâncias, como comprazer-se com a desgraça alheia. Psicólogos e praticantes de meditação de todo o mundo criaram uma ampla variedade de intervenções para sanar esses desequilíbrios, algumas delas aplicáveis à sociedade em geral, outras inseridas em visões de mundo religiosas. Uma abordagem constituída de quatro intervenções extraída do budismo tem profundidade espiritual sem necessidade de vínculo com qualquer sistema de crenças em particular. A essência dessa prática é curar a compulsão com amabilidade, a distância indiferente com compaixão, a depressão com alegria empática e o preconceito pessoal com equanimidade.

O efeito geral dos quatro desequilíbrios mentais acima mencionados é a constante insatisfação, que só é aliviada superficialmente nos momentos de entrega e estímulos mentais e sensoriais prazerosos ou pelo isso de drogas que alteram o cérebro. Com pouca fé em seus próprios recursos internos para a felicidade genuína, muitas pessoas tornam-se dependentes de estímulos prazerosos ou de supressores químicos da insatisfação, mas assim que esses estímulos são removidos, desaparece a sensação de bem-estar. Da perspectiva da ciência contemplativa, o primeiro propósito pragmático da psicologia é explorar os estados da psique para identificar quais levam à perpetuação do sofrimento e quais levam à felicidade genuína. Assim como trocar o uso de combustíveis fósseis por energia solar, nós temos a oportunidade de nos afastar da dependência obsessiva de estímulos prazerosos e adotar o cultivo da perfeita saúde mental como base da felicidade.

Uma hipótese fundamental por trás dessa busca é que em termos de natureza humana, nosso estado habitual é marcado pela angústia e sofrimento, mas nosso potencial é para a saúde e a satisfação. O desequilíbrio não é inerente a nossa mente, mas causado pelo hábito e, portanto, por meio de um esforço apropriado e contínuo, os desequilíbrios podem ser sanados, resultando num estado de bem-estar que não depende de estímulos sensoriais, químicos, intelectuais ou estéticos prazerosos. Esta é uma área na qual a ciência e todas as tradições contemplativas podem colaborar em benefício de todo mundo.

Existe uma profunda complementariedade entre as abordagens científica e contemplativa ao estudo da psique. As ciências comportamentais, a psicologia e a neurociência lançaram luz sobre os processos cognitivos que nos permitiram sobreviver, reproduzir e ter a experiência do bem-estar hedonista. As tradições contemplativas mostram como podemos encontrar a felicidade genuína, ou o bem-estar eudemônico, e explorar as dimensões espirituais de nossa existência. O bem-estar hedonista e o eudemônico não costumam se opor um ao outro. Pelo contrário, sem o bem-estar hedonista, incluindo a boa saúde e comida suficiente, roupa e abrigo, é difícil embora não impossível se alcançar o bem-estar eudemônico. Da mesma maneira, quanto mais cultivamos a felicidade genuína que vem de dentro, mais conseguimos valorizar os simples prazeres da vida. Apesar de o bem-estar hedonista não tem valor intrínseco, ele pode ajudar na busca de uma vida plena no sentido, integrando a felicidade genuína, a verdade e a virtude.

 

AS ORIGENS DA PSIQUE

Os cientistas cognitivos contemporâneos, por limitarem suas pesquisas a comportamentos, atividade cerebral e relatos subjetivos de pessoas normais e subnormais, fizeram fortes suposições a respeito das origens da psique: existe um amplo consenso quanto aos processos mentais não serem nada mais do que funções ou propriedades do cérebro. E enquanto a pesquisa científica se confinar a esses limites, é improvável que surjam evidências capazes de desafiar seriamente esse consenso. Os métodos científicos com base em pressupostos materialistas aplicados ao estudo da mente provavelmente só servem para reforça-los.

Mas a filosofia e a ciência ocidentais nem sempre adotaram essa atitude. Pitágoras (570-495 a.C.), o mais célebre dos filósofos pré-socráticos, que supostamente cunhou o termo “filosofia”, fundou uma comunidade contemplativa no sul da Itália que era tanto religiosa como científica, com uma forte ênfase na matemática. Seu principal objetivo era o cultivo da santidade por meio da purificação do corpo e da mente. Na visão dele, o homem que se dedica a tal purificação é o “verdadeiro filósofo”, aquele que “contempla” (theorein), e o melhor de todos os métodos de purificação é a ciência.

Pitágoras é amplamente conhecido por sua teoria de metempsicose ou reencarnação, segundo a qual a alma é imortal e renasce tanto em forma humana quanto animal. Essa visão é considerada uma descoberta empírica baseada em sua própria experiência de recordar até vinte vidas passadas tanto dele mesmo como de outros. As primeiras e mais antigas versões de sua vida concordam em descrever Pitágoras como um fazedor de milagres e a Sociedade Pitagórica como a mais importante escola científica da Grécia Antiga.

No diálogo Fedro de Platão, Sócrates aborda essa questão, começando por comentar que, de acordo com a visão popular, a alma se dispersa e se desfaz com a morte. Mas a verdade, ele diz, que é conhecida apenas por aqueles que praticaram a filosofia, está longe disso. A alma do filósofo, tendo “praticado a morte” pelo domínio dos impulsos e apetites físicos, “parte para um lugar que é, como ela mesma, invisível, divino, imortal e sábio, onde, ao chegar, a felicidade a espera e a liberta de… todos… os males humanos”.  Mas as almas daqueles que não praticaram a filosofia, estando permeadas pelo corpóreo, tornam-se espíritos errantes depois da morte, de maneira quase idêntica à versão budista do estado intermediário (antarâbhava) que ocorre depois da morte e antes da próxima reencarnação. Finalmente, Sócrates declara: “Por causa do desejo físico, que as persegue sem cessar, elas voltam a se aprisionar de novo dentro de um corpo. E como era de se esperar, elas continuam presas ao mesmo tipo de caráter ou natureza que desenvolveram durante a vida”. 

A crença na metamorfose era também comum no cristianismo primitivo. Orígenes (185-254 d.C.), amplamente reconhecido como o maior teólogo cristão depois de São Paulo e antes de Santo Agostinho, sofreu forte influência de Pitágoras e Platão. O conhecimento de Deus, ele dizia, é nato no ser humano e pode ser “lembrado” e despertado por meio de disciplinas especiais. Dessa maneira, a alma pode ascender até Deus numa longa e permanente jornada de uma vida para outra. Por meio da contemplação (teoria), a alma avança no conhecimento (gnosis) de Deus, que a transforma, segundo Platão, até torna-se divina. Para Orígenes, assim como para Pitágoras, não havia nenhuma separação absoluta entre ciência e religião. A vida contemplativa pode ser subdividida em contemplação de Deus e contemplação da natureza e segue três estágios: a vida ativa (praktikê); a contemplação da natureza, ou “contemplação natural” (psysikê); e a contemplação no sentido estrito, a visão de Deus, também chamada de “teologia” (theologia), ou “conhecimento espiritual” (gnosis). Essa visão integrada da ciência e da espiritualidade foi posteriormente suprimida quando o Imperador Justiniano escreveu uma série de anátemas contra os escritos de Orígenes. No sínodo local de 543 d.C., ele ordenou ao patriarca Mennas que reunisse todos os bispos presentes em Constantinopla e os fizesse assinar os anátemas.

Mas a questão estava longe de ser encerrada com a condenação dos escritos de Orígenes a respeito das origens da alma. Santo Agostinho tratou da questão propondo quatro hipóteses: 1) que a alma da pessoa procede da de seus pais; 2) que as almas individuais são criadas novamente a partir das condições individuais no momento da concepção; 3) que as almas existem em algum outro lugar e são enviadas por Deus para habitar corpos humanos; e 4) que as almas descem para o plano da existência humana por sua própria escolha.  Para Santo Agostinho, todas essas hipóteses eram compatíveis com a fé cristã. No verdadeiro espírito da filosofia, ele declarou: “É importante que nenhuma das quatro seja afirmada sem um bom fundamento”.  Embora minutos cristãos de hoje tenham escolhido a segunda – que as almas individuais são criadas novamente a partir das condições individuais no momento da concepção – as bases empíricas e lógicas dessa visão estão longe de ser esclarecidas.

As origens da psique foram amplamente ignoradas pelos cientistas desde a época de Copérnico da psicologia moderna. William James, que criou o primeiro laboratório de neurociência na Universidade de Harvard nos Estados Unidos, propôs três hipóteses para explicar as origens dos processos mentais relacionados com as funções do cérebro: 1) o cérebro produz pensamento, assim como um circuito elétrico gera luz; 2) o cérebro libera ou permite acontecimentos mentais assim como o gatilho de uma besta dispara uma flecha pela remoção do obstáculo que prende a corda; e 3) o cérebro emite pensamentos, assim como a luz atinge um prisma e, consequentemente, emite um espectro de cores.  Em seu tempo, como também até hoje, todas essas três hipóteses condizem com todo conhecimento científico a respeito das correlações mente-cérebro. James, que acreditava na terceira opção, desenvolveu sua teoria. 

Quando finalmente o cérebro deixa totalmente de funcionar, ou se degenera, esse fluxo especial de consciência que o acompanhava desaparece totalmente deste mundo natural. Mas a esfera do ser que abastecia a consciência continua intacta; e neste mundo mais real com o qual, mesmo enquanto aqui, ela estava em interação, a consciência pode, de maneiras que desconhecemos, continuar inalterada.

James especulou ainda quanto à possibilidade de o fluxo de consciência ser um fenômeno diferente do cerebral, de um tipo que interage com o cérebro enquanto ele permanece em atividade, absorvendo e retendo a identidade, a personalidade e as memórias que fazem parte dessa interação, e continuar sem o cérebro. Apesar de James continuar sendo amplamente respeitando entre os cientistas cognitivos contemporâneos, as ideias dele a respeito das origens e da natureza da consciência são em geral ignoradas ou rejeitadas. A maioria dos psicólogos e neurocientistas refuta categoricamente qualquer espécie de dualismo com base no argumento de que não existe nenhuma evidência da existência de qualquer fenômeno mental subjetivo separado das funções e propriedades do cérebro. Mas enquanto os cientistas cognitivos confinarem seus estudos a comportamento, função do cérebro e relatos subjetivos normais e patológicos, eles terão poucas chances de descobrirem evidências que possam mostrar o contrário.

Um estudioso que desafiou cientificamente essas visões é Ian Stevenson, professor emérito de psiquiatria e ex-diretor do Departamento de Estudos da Personalidade da Universidade da Virgínia.  Em seu livro recente, Where Reincarnation and Biology Intersect, ele sumariza trinta anos de estudos e relatos de crianças supostamente recordando lembranças precisas de pessoas e conhecimentos específicos de suas vidas passadas. Esse livro, escrito para o grande público, consiste basicamente num resumo de seus estudos, dos quais os fundamentos científicos são detalhados em sua compacta obra em dois volumes Reincarnation and Biology: A Contribution to the Etiology of Birthmarks and Birth Defects. A obra de Stevenson provê algumas das evidências científicas mais sólidas para desafiar as hipóteses materialistas sobre as origens da psique, mas passou amplamente despercebida pela comunidade científica. 

Essa recusa a examinar as evidências empíricas que contrariam as crenças em geral tem sido mais associada a crentes religiosos do que a cientistas. O físico Richard Feynman expressa claramente os ideais científicos do ceticismo e do empirismo: “Os pesquisadores buscam com mais diligência, e dedicam mais esforço, exatamente naqueles lugares em que é maior a probabilidade de nossas teorias se provarem erradas. Em outras palavras, estamos tentando provar o mais rápido possível que estamos errados, porque só assim podemos avançar”. Lamentavelmente, os cientistas cognitivos atuais não parecem dispostos a procurar naqueles lugares em que se possa provar que suas teorias materialistas estejam equivocadas. Enquanto suas pesquisas se ativerem às origens da psique, eles continuarão visando unicamente a investigações que venham reforçar suas crenças. Se quisermos encontrar alternativas viáveis à ortodoxia científica, teremos que sair da ciência contemporânea para examinarmos as tradições contemplativas do mundo. Volto-me agora para uma hipótese budista baseada na prática contemplativa e que está de acordo com tudo que se conhece atualmente sobre as correlações cérebro-mente.

 

A Consciência-Substrato

Para descobrir as origens de qualquer fenômeno natural, os cientistas criaram métodos rigorosos que permitem observar o próprio fenômeno, realizando experimentos sobre ele sempre que possível. Essa conduta tem se mostrado legítima para a exploração das origens de todos os tipos de objetos, desde as células, com as quais se pode fazer experimentos, até as estrelas, que podem ser observadas, mas não manipuladas no decorrer dos experimentos. O mesmo vale para a psique. Para desvendar suas origens, temos que criar métodos sofisticados que permitam observar e fazer experiências sobre os estados de consciência. Não basta observar e realizar experimentos sobre seus correlatos neurais e comportamentos e, enquanto a ciência cognitiva restringir sua pesquisa a esses aspectos, ela não poderá evitar a conclusão de que a consciência resulta unicamente dos processos materiais que estão sendo investigados. Essa não é uma descoberta lógica nem empírica, mas apenas uma conclusão inevitável baseada numa metodologia aplicada ao exame de processos mentais subjetivos e qualitativos da mesma maneira com que se examina processos físicos objetivos e quantitativos.

Em decorrência dessa orientação, os cientistas cognitivos veem-se diante de uma “lacuna explicativa”: como é possível que os padrões de atividade neural ou produzam os processos mentais subjetivos ou sejam equivalentes a eles? Deve haver tipos de atividade neural que contribuem casualmente para o surgimento de estados específicos de consciência e de atividade mental. Vamos atribuir à causalidade a seguinte definição fenomenológica: se B segue A, e B não ocorre na ausência de A, então A exerce uma influência causal sobre B. Nenhum mecanismo físico é forçosamente necessário para que ocorra uma relação causal, conforme amplamente demonstrado pelos fenômenos eletromagnéticos e pela mecânica quântica. O filósofo John Searle argumenta que uma atividade neuronal de “ordem inferior” “causa” processos mentais, enquanto padrões neuronais de “ordem superior” são equivalentes a processos mentais. Esteja ele certo ou não, alguns tipos de ativação neuronal prévia são certamente necessários para a geração de subsequentes processos mentais específicos. Mas como aqueles processos neurais precedem seus resultantes acontecimentos mentais, eles não podem ser considerados como seus equivalentes. Poderia haver uma identidade apenas entre os processos neuronais e mentais que ocorrem simultaneamente.

Com respeito a uma relação causal ente acontecimentos neurais e mentais, deparamos com o “difícil problema” de David Chalmers:  o que há nesses processos neuronais, diferentemente de tantos outros acontecimentos eletroquímicos, que lhes permite produzir toda uma gama de experiências mentais subjetivas? Aqui há uma grave lacuna explicativa. Entretanto, se certos processos neuronais são equivalentes a seus concorrentes processos mentais, o que permite que eles assumam essa natureza dual: processos neuronais objetivos, que podem ser perfeitamente entendidos em termos de física, química e biologia; e processos mentais subjetivos que não são detectáveis pelo uso de instrumentos de medição dessas disciplinas, mas são diretamente observáveis pela experiência da perspectiva da primeira pessoa? É como se esses processos neuronais concorrentes tivessem uma vida secreta que é ocultada da medida científica da perspectiva da terceira pessoa: eles são simultaneamente acontecimentos neurais objetivamente perceptíveis e processos mentais subjetivos objetivamente invisíveis.

Um fato simples que dificilmente é reconhecido tanto pelos cientistas cognitivos como pelos filósofos da mente é que os acontecimentos mentais podem ser observados diretamente. Mas como reconhece James, “A introspecção é difícil e falível; e… a dificuldade é simplesmente a de qualquer observação seja de que tipo for”. De importância crucial para se fazer observações rigorosas dos fenômenos mentais é o cultivo da atenção deliberadamente focada e vívida, que os budistas chamam de samâdhi. Essa atenção focada para a investigação científica dos fenômenos mentais o que o telescópio é para a investigação científica dos fenômenos celestes.  Segundo os praticantes de meditação budistas, aquele que alcança nível superior de samâdhi como shamanta, ou quietude meditativa, tem acesso por meio da experiência do relativo estado natural da consciência conhecido pela corrente Grande Perfeição (Dzogchen) do budismo tibetano como “consciência-substrato” (âlayavijnâna). Segundo eles, é desse fluxo de consciência que emergem a psique e todos os sentidos físicos. De acordo com suas descobertas, a psique é condicionada pelo corpo e sua interação física com o ambiente circundante, mas emerge da consciência-substrato. 

Essa visão se mostra coerente com as hipóteses de Pitágoras, Sócrates, Orígenes, Santo Agostinho e William James e também com tudo que se conhece atualmente sobre as interações mente-cérebro. Mas é também onde todas as visões contemplativas divergem fundamentalmente das crenças da maioria dos cientistas cognitivos contemporâneos. O que o budismo traz para esse confronto de visões de mundo é um método prático para testar a hipótese pela experiência na primeira pessoa, por meio do refinamento da atenção e do apaziguamento da mente de maneiras totalmente desconhecidas da ciência moderna.

Uma vantagem da prática de shamatha está no fato de ela não requerer submissão a nenhuma religião ou crença filosófica. Entretanto, ela pode servir de elo entre os métodos científicos e contemplativos de exploração da mente. As pessoas que alcançam esse grau excepcional de equilíbrio da atenção dizem que os pensamentos racionais adormecem e todas as formas aparentes de si mesmo, dos outros, de seu corpo e do ambiente circundante desaparecem. Nesse ponto, como nos estados de sono e de morte, a mente se volta para dentro e os sentidos físicos adormecem. Segundo relatos de meditadores tibetanos, o que permanece é um estado de consciência clara e radiante, que constitui a base para que todas as manifestações acorram ao fluxo mental da pessoa. Todos os fenômenos que surgem para a percepção sensorial e mental estão imbuídos da luminosidade própria dessa consciência-substrato. Assim como os reflexos dos planetas e das estrelas numa piscina de água límpida e cristalina são as manifestações de todo o mundo fenomênico nesse estado vazio e límpido da psique. Düdjom Lingpa (1835-1904), mestre Dzogchen da ordem Nyingma do budismo tibetano, escreveu: “A consciência-substrato, com sua natureza vazia e cristalina, permanece como a causa de tudo que é emanado. A psique que emana da consciência-substrato apresenta formas, que são estabilizadas pelo fluxo contínuo da consciência.” 

De acordo com a experiência desses meditadores, há um princípio de preservação da consciência que se manifesta em todos os momentos da experiência. Os componentes materiais do cérebro, como neurônios e processos eletroquímicos, não se transformam em fenômenos mentais imateriais, como sonhos e alucinações. Nenhum padrão de acontecimento neuronal torna-se de fato um acontecimento mental. Mas os fenômenos mentais tampouco emergem do nada. Mais propriamente, essa consciência-substrato vazia e radiante transforma-se em imagens mentais, pensamentos racionais, percepções, emoções etc. No decorrer de uma vida humana, esses acontecimentos mentais são condicionados pelo cérebro e pelo entorno, mas emergem dessa consciência-substrato e voltam a se dissolver nela. Da mesma maneira, esses acontecimentos mentais influenciam o cérebro, o corpo e o meio físico, mas acho se transformam em fenômenos físicos. Em resumo, da perspectiva budista, o “difícil problema” de como o cérebro produz experiência mental subjetiva é um falso problema, uma vez que, na realidade, essa experiência provém da consciência-substrato. E a lacuna explicativa na demonstração de como certos tipo de atividade neural podem ser equivalentes aos acontecimentos mentais é intransponível, uma vez que os acontecimentos neurais e mentais jamais são idênticos.

A consciência-substrato pode ser caracterizada como um estado relativamente vazio, desprovido de toda “energia cinética” dos pensamentos, das imagens mentais e das percepções sensoriais. Falando de modo geral, ela é indiscernível enquanto a mente está ativa; ela normalmente se manifesta apenas nos estados de sono sem sonhos e na morte. Embora essa consciência-substrato seja descrita como o estado natural e livre da mente, o brilho e a pureza que lhe são próprios estão presentes mesmo quando a mente encontra-se obscurecida por emoções e pensamentos aflitivos. Quando em repouso, ela é luminosa e vazia, mas quando catalisada por pensamentos ou estímulos sensoriais, sua “energia potencial” se transforma em “energia cinética” da psique, manifestando todos os tipos de atividade mental e sensorial.

Essa dimensão da consciência individual transcende as qualidades e limitações específicas da história pessoal nesta vida, neste gênero e mesmo nesta espécie, esse substrato é subjacente a todas as formas de consciência, humanas e não humanas.  Uma vez que a mente do praticante tenha alcançado esse luminoso e silencioso estado de consciência conhecido como shamantha, diz-se ser possível direcionar a atenção para o passado, trazendo à consciência lembranças claras e detalhadas de acontecimentos ocorridos anteriormente nesta vida. Então, por meio de um rigoroso treinamento, a pessoa supostamente pode recordar acontecimentos anteriores à vida atual, lembrando, como Pitágoras, de circunstâncias de vidas passadas.

Essas memórias não estão armazenadas no cérebro, mas o cérebro é necessário para resgatá-las enquanto a mente permanecer corporificada. As memórias são armazenadas, por assim dizer, na corrente da consciência-substrato, que passa de uma vida para outra. Essa conclusão está baseada em experiências de meditadores altamente treinados que refinaram sua capacidade de atenção de maneiras desconhecidas para a ciência moderna. Sem o desenvolvimento desse telescópio interno – shamatha – para explorar estados profundos da consciência, as evidências científicas da reencarnação restringem-se a pesquisas de campo de estudiosos como Ian Stevenson.

Embora essa descrição da consciência-substrato possa parecer uma versão budista da alma imortal, é importante observar as diferenças entre essa versão baseada na experiência e as diversas especulações filosóficas e teológicas a respeito da alma. Os praticantes que tiveram a experiência do shamatha costumam descrever essa dimensão da consciência como um fluxo de momentos de percepção que vêm e vão e que, portanto, não é uma única entidade que persiste através do tempo e tampouco é imutável. Além do mais, como influência a psique e é condicionada por eventos físicos e mentais, ela não é independente.

A consciência-substrato pode ser caracterizada como a natureza relativa da mente individual no sentido de que, no contexto do fluxo da mente individual, ela envolve o menor estado de atividade possível, com o maior potencial e grau possível de liberdade e possibilidade. Por exemplo, uma vez que o fluxo de consciência de uma pessoa tenha surgido do sono sem sonhos, ele pode se manifestar livremente numa ampla diversidade de paisagens e experiências oníricas. Essa criatividade excepcional é manifestada enquanto em hipnose profunda, que também dá acesso à consciência-substrato. Mas esse potencial é acessado de maneira mais efetiva quando a pessoa penetra lucidamente na consciência-substrato por meio do shamatha, de acordo com a prática realizada por uma séria de importantes tradições contemplativas do mundo. O estado de shamatha proporciona uma percepção vívida dessa dimensão da consciência, ao contrário do marasmo ou letargia que normalmente caracteriza o estado de sono sem sonhos.

 

Estados de Consciência e de Espaço de Vazio Relativo

A tradição da Grande Perfeição do budismo tibetano faz uma distinção entre a consciência-substrato (âlayavijnâna) e o substrato (âlaya), que é descrito como o espaço objetivo vazio da mente e que é subjetivamente experienciado pela consciência-substrato. Esse estado de vacuidade é imaterial, como o espaço, um espaço em branco, um vazio de pensamentos no qual todas as manifestações objetivas dos sentidos físicos e da atividade mental se dissolvem quando a pessoa adormece; e é desse vácuo que as formas voltam a emergir quando ela desperta. Düdjom Lingpa explicou que quando a percepção entra no substrato:

A mente comum de um ser senciente comum, como ela era, desaparece. Consequentemente, os pensamentos racionais adormecem e os pensamentos erráticos se desvanecem no espaço da percepção […] Aderindo às experiências de si mesmo, dos outros e dos objetivos desaparecem. Essa é a consciência-substrato […] a pessoa chegou à natureza essencial da mente. 

 

Essa descrição da experiência contemplativa do substrato e da consciência daquele estado profundo de luminosa vacuidade é semelhante às descrições que os físicos fazem do estado de relativa vacuidade do espaço. Em geral, o vazio é definido como o estado de menos energia possível de uma extensão de espaço, o resultado a que se chega quando tudo mais é removido. O vazio verdadeiro, ou absoluto, consiste do que restar quando tudo mais for removido de um espaço bem definido – tudo que as leis da natureza permitirem. O vazio relativo, ou falso, consiste do que restar quando tudo mais for removido de um espaço bem definido que os estado atual da tecnologia permitir. O vazio relativo tem energia e estrutura e não é perfeitamente simétrico, o que quer dizer que é internamente diferenciado.

Assim como boa parte das manifestações conscientes é considerada proveniente do substrato e consciente de configurações desse espaço interno da mente, também todas as configurações de massa e energia emergem do vácuo e consistem de configurações do espaço físico. Os campos de partículas elementares não são nada mais do que agitações no espaço vazio, enquanto a massa pode ser vista como energia congelada. A luz é uma espécie de agitação no espaço vazio ou, mais precisamente, uma oscilação das grandezas de campo abstrato no espaço, não uma oscilação do próprio espaço. O físico Henning Genz explica: “Os sistemas reais são, nesse sentido, ‘agitações do vácuo’ – muito a maneira com que as ondulações superficiais de um lago são as agitações da água do lago […] O vácuo em si mesmo é informe, mas pode assumir formas específicas. Ao fazer isso, ele se torna uma realidade física, um ‘mundo real’”. 

Apesar de a maioria dos cientistas cognitivos atuais estar convencida de que a mente não passa de uma função ou prioridade emergente da matéria, os físicos nos dizem que a matéria consiste de oscilações das grandezas imateriais abstratas no espaço. São necessárias mais pesquisas para determinar se essas abstrações realmente existem independentes no espaço objetivo ou se são artifícios subjetivos das mentes que as concebem. Alternativamente, o “mundo real” pode não ser nem totalmente objetivo nem totalmente subjetivo.

A filosofia do empirismo radical de William James reflete precisamente a visão da Grande Perfeição ao rejeitar a dualidade absoluta da mente e da matéria em favor de um mundo da experiência, no qual a consciência como uma entidade, em e por si mesma, não existe; tampouco ela é uma função da matéria como uma entidade, em e por si mesma, tampouco existe. De acordo com essa visão, as idéias de substâncias mentais e físicas são construtos conceituais, como também a distinção metafísica entre sujeito e objeto. Mente e matéria são construtos, enquanto a experiência verdadeira é primordial.

 

Estados de Consciência e de Espaço de Vazio Absoluto

Ao contrário da consciência-substrato, que pode ser considerada o estado natural relativo da mente, de acordo com a Grande Perfeição, a consciência primordial (jnâna) é caracterizada como o estado absoluto da consciência. Esse estado de perfeita simetria – internamente indiferenciado em termos de todo e qualquer conceito ou qualidade – é o mais baixo estado de atividade mental possível, com o maior potencial e grau de liberdade possível. Enquanto a consciência-substrato está ciente do substrato – o relativo espaço interno da mente – a consciência primordial está indivisivelmente ciente do espaço absoluto dos fenômenos (dharmadhâtu), que transcende a dualidade dos espaços interno e externo. Todos os fenômenos que compõem nossos mundos intersubjetivos da experiência – manifestações dos espaços interno e externo, tempo, matéria e consciência – emergem desse espaço absoluto e consistem de nada mais que suas configurações. No vácuo relativo e limitado do substrato, como no caso do sono profundo, os acontecimentos mentais específicos a um determinado indivíduo emergem e voltam a se dissolver naquele espaço subjetivo da consciência. Mas todos os fenômenos no tempo e no espaço emergem e voltam a se dissolver no vácuo eterno e infinito do espaço absoluto. Enquanto o vácuo relativo do substrato pode ser cessado por meio do cultivo do shamatha, o espaço absoluto dos fenômenos pode ser preenchido apenas pelo cultivo da introvisão contemplativa (vipashyana).

A percepção do espaço absoluto pela consciência primordial transcende todas as distinções de sujeito e objeto, mente e matéria, na verdade, todas as palavras e conceitos. Essa percepção não envolve o encontro de um modo subjetivo de consciência com um espaço subjetico, mas é antes a percepção não dual da unidade intrínseca do espaço absoluto e da consciência primordial. Eles são simultâneos, não localizados no espaço e no tempo. Enquanto o espeço absoluto é a natureza fundamental do mundo apreendido pela experiência, a consciência primordial é a natureza fundamental da mente que apreende o mundo. Mas como os dois sempre foram da mesma natureza, a visão da Grande perfeição não é a do idealismo filosófico, do dualismo nem do materialismo. Todas essas distinções, como ente sujeito e objeto e mente e matéria, são consideradas meros artifícios conceituais. A indivisibilidade do espaço absoluto e da consciência primordial é a Grande Perfeição, muitas vezes referida como o “mesmo sabor” de todos os fenômenos.

No plano relativo, a consciência-substrato é diferente do substrato e é internamente caracterizada por experiências distintas de felicidade, luminosidade e ausência de conceitos. A experiência dela só ocorre quando a mente se afasta do mundo exterior, e é determinada pelo tempo e pela causalidade – específica a um determinado indivíduo. A unidade do espaço absoluto e da consciência primordial, por outro lado, também está imbuída das qualidades de felicidade, luminosidade e ausência de conceitos, não presentes como atributos distintos, mas como uma unidade inefável. Esse vácuo absoluto é adentrado quando se permite que a consciência repouse num estado de não dualidade, aberta para todo o universo. Desprovido de qualquer estrutura interna, ele contém uma única simetria absoluta que transcende a relatividade do espaço, do tempo, da mente e da matéria.

Existem também diferenças importantes entre os efeitos percebidos por meio da experiência da consciência-substrato e da consciência primordial. Quando a pessoa alcança a experiência da consciência-substrato por meio do shamatha, as preocupações mentais são suprimidas apenas temporariamente, mas diz-se que, pela experiência da consciência primordial, todas as preocupações e obscurecimentos mentais podem ser eliminados para sempre. Igualmente, o sentimento de felicidade paradisíaca de quem descansa no estado natural relativo da consciência é limitado e transitório, enquanto esse sentimento de plenitude além das palavras, inerente ao estado natural absoluto da consciência primordial, é ilimitado e eterno. Pelo acesso à consciência-substrato, a pessoa percebe a natureza relativa da consciência individual, mas pela experiência da consciência primordial, a dimensão da percepção torna-se ilimitada. Igualmente, o potencial criativo da consciência que é acessado por meio do shamatha é limitado, enquanto o potencial acessado por meio da suprema introvisão contemplativa supostamente não conhece limites.

Considera-se a consciência primordial como a causa última da felicidade genuína, a verdade última que liberta a mente de todas as aflições e obscurecimentos, como também a causa última de todas as virtudes. É nessa dimensão da consciência que têm origem nossos desejos mais profundos de felicidade, verdade e virtude. Essa dimensão é o alfa e o ômega de uma existência plena de sentido, a origem última da sabedoria e da compaixão. Considera-se que a percepção da consciência primordial, quando baseada na prévia prática do shamatha, permite que recursos internos ilimitados sejam acessados por diferentes tipos de percepção extrassensorial e fenômenos paranormais. Entre esses fenômenos, estão incluídos a visão remota ou clarividência, o conhecimento do que se passa na mente de outros, a precognição e outros poderes paranormais, como o controle mental de fenômenos físicos. Entre os exemplos, estão incluídos a capacidade de transpor objetos sólidos sobre as águas, controlar mentalmente o fogo, voar e multiplicar e transformar à vontade objetos físicos pela força da mente.

Embora os relatos desses poderes aparentemente milagrosos e sobrenaturais sejam comuns nos anais das tradições contemplativas do mundo, a visão remota e a precognição foram também estudadas por pesquisadores modernos como o físico Russel Targ.  O poder da mente para influenciar objetos físicos tem sido estudado por R.G. Jahn no Princeton Engineering Anomalies Research Laboratory, mas as descobertas desses pesquisadores têm sido amplamente ignoradas pela comunidade científica. Isso pode em parte se dever aos resultados inconclusivos e à natureza inerentemente conservadora da comunidade científica, especialmente com respeito a descobertas que supostamente solapariam as bases dos pressupostos da visão de mundo científica.

As pesquisas de Stevenson, Targ e Jahn são como estudar as partículas elementares de alta energia pela observação daquelas que são ocasional e imprevisivelmente produzidas na natureza, enquanto o cultivo da concentração em estados profundos de meditação, ou samâdhi, é como construir um acelerador de partículas para se observar as partículas de alta energia em laboratório. Os muitos laboratórios de ciências cognitivas existentes para examinar o cérebro e seus comportamentos podem ser contemplados com laboratórios de investigações contemplativas, criados especificamente para gerar estados refinados de consciência de “alta energia e usá-los para explorar os potenciais da consciência e seu papel no mundo natural.

Assim como a mecânica e a engenharia clássicas são úteis para a solução de problemas não relativistas, as ciências cognitivas atuais são úteis para das respostas a questões aos estados de consciência normais e subnormais. Mas algumas das suposições básicas da física clássica jamais foram verdadeiras e algumas das suposições materialistas da ciência cognitiva clássica podem igualmente se provar não verdadeiras quando estados excepcionais de consciência são alcançados sob condições controladas e estudadas com rigor científico.

A descrição budista do espaço absoluto dos fenômenos tem algumas semelhanças como o vácuo absoluto, ou verdadeiro, da física moderna. Em 1973, Edward Tyron formulou a teoria de que o universo é uma flutuação gigantesca do vácuo, cujo total de energia é igual ou próximo de zero. Conforme explica Genz: “Se seu total de energia é igual ou próximo de zero, ele pode ter se originado como uma flutuação espontânea do vácuo. Poderíamos imaginar algo próximo a uma anulação ocorrendo entre o potencial de energias negativas de todas as massas que se atraem mutuamente no universo e as energias do movimento (ou cinéticas) e da massa dessas configurações”. O autor científico K.C. Cole explica a simetria do verdadeiro vácuo nos seguintes termos: 

Se você pode transformar algo de maneira que a transformação não faz uma diferença perceptível, isso é simetria […] Se algo já era perfeitamente simétrico, por mais que você tentasse alterá-lo, a mudança hipotética não teria nenhum efeito. Sem mudança, não há nenhuma percepção. Um nada perfeitamente simétrico seria um estado tão imutável que nada que você pudesse fazer faria qualquer diferença.

 

Tanto o espaço absoluto dos fenômenos como verdadeiro vácuo são considerados como tendo exercido um papel crucial na formação do universo como o conhecemos. Henning Genz sugere:

Talvez as flutuações da mecânica quântica tenham originado não apenas a matéria da qual nosso mundo era feito antes de sua inflação, mas também o próprio espaço-tempo. Talvez o verdadeiro vácuo, o verdadeiro nada, da filosofia e da religião, devesse ser visto como um estado inteiramente livre de leis, espaço e tempo. Esse estado pode ser considerado como nada mais que um conjunto de possibilidades do que poderia ser. 

 

E K. C. Cole acrescenta,

A liberação de energia pode explicar o processo de aquecimento que provocou o big-bang. Como a água levada ao ponto de congelamento libera sua energia para seus arredores, o “congelamento” do vácuo libera enormes quantidades de energia […]. Tão simplesmente quanto a água vira gelo, o vácuo inflado congelou-se na estrutura que deu origem aos quarks, elétrons e, finalmente, a nós. 

 

Numa linha de raciocínio notavelmente semelhante, o Dalai Lama escreveu em seu livro recente sobre a Grande Perfeição: 

Todo e qualquer estado de consciência é permeado pela luz cristalina da percepção primordial. Por mais que o gelo se solidifique, ele jamais perde sua verdadeira natureza, que é a água. Da mesma maneira, mesmo conceitos muito óbvios são tais que o “lugar” deles, por assim dizer, o lugar onde repousam, não sai fora do espeço de sua percepção primordial. Eles surgem dentro do espaço da percepção primordial e é também nele que se dissolvem.

 

Enquanto os físicos formularam suas teorias a respeito dos vácuos verdadeiro e falso com base em experimentos físicos e análises matemáticas, os budistas formularam suas teorias a respeito dos estados de consciência verdadeiro e falso com base em experiências contemplativas e análises filosóficas. Ambas as tradições dão alta prioridade à investigação empírica e à análise racional, mas seus pontos de partida e seus métodos de observação são profundamente diferentes. A revolução científica começou com a suposição de que um Deus exterior criou o mundo antes e independentemente da consciência humana. Os físicos estabeleceram então para si mesmos a meta de apreender o universo objetivo da perspectiva do “olho de Deus” e de formular suas leis nos termos da própria linguagem de Deus, que eles consideravam ser a matemática. Como eles se voltaram para o domínio do espaço objetivo e seus conteúdos que existem independentemente da consciência, era totalmente natural que para eles a mente tivesse um papel apenas marginal na natureza; e suas teorias dos vácuos verdadeiro e falso em geral não fazem nenhuma referência à consciência.

Na verdade, alguns defensores dessa visão mecanicista supuseram desde o início que a consciência não exerce nenhum papel significativo no universo. Como declarou o neurologista Antonio Damasio: “O conhecimento da consciência diz pouco ou nada a respeito das origens do universo, do sentido da vida e do provável destino de ambos”.  Tal convicção é notável à luz do fato de os neurocientistas não terem ainda descoberto a natureza ou as origens da consciência. Esses pesquisadores costumam supor que já sabem que a consciência não tem nenhuma existência separada do cérebro e que, portanto, a única questão a ser respondida é como o cérebro produz estados conscientes. Em seu livro, The Discoverers: A History of Man’s Search to Know His World and Himself, o historiador Daniel J. Boorstin chama essas suposições de “ilusões de conhecimento”. São essas ilusões, ele sugere, e não a mera ignorância, que atuaram historicamente como os maiores impedimentos ao avanço científico.

A importância dos estados de vacuidade do espaço físico e da consciência dificilmente pode ser superestimada. O físico John March-Russel declara: “A crença atual é que você tem que entender todas as propriedades do vácuo antes de poder entender qualquer outra coisa”. Os físicos ainda não entenderam todas as propriedades do vácuo nem todas as leis da natureza, mas assumiram amplamente que a consciência é irrelevante para o universo que eles estão tentando entender. Enquanto o universo concebido pelos físicos existe independentemente da consciência, os budistas consideram tal universo irrelevante para o mundo da experiência humana, no qual a consciência exerce um papel crucial.

 

Convergência com o Cristianismo

Embora a revolução científica tenha sido profundamente influenciado pela crença em um Deus que existe totalmente separado de sua criação e que observa e controla o mundo de uma perspectiva absolutamente objetiva, essa não foi a única teologia defendida por devotos cristãos através dos tempos. Diferentemente da busca de uma visão da perspectiva do olho de Deus, que tanto marcou a ciência moderna, os meditadores cristãos ortodoxos do Oriente sempre defenderam uma espécie de contemplação natural que vê Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus para discernir a presença divina, que é inerente a todos os fenômenos naturais e que, ao mesmo tempo, os transcende. A ênfase é colocada na imanência de Deus, em vez de apenas em sua transcendência. Em vez de procurar compreender o mundo pelo uso da linguagem da matemática, aqueles meditadores cristãos procuraram conhecer Deus indo além de todos os tipos de pensamento e linguagem: 

Como a divindade é um mistério que escapa às palavras e ao entendimento deduz-se que em tal contemplação a mente humana tem que ir além de conceitos, palavras e imagens – acima do nível do pensamento racional – para apreender Deus intuitivamente pelo simples “olhar” ou “toque”. De acordo com Evágrio, a mente deve se “desnudar”, passando da multiplicidade para a unidade […]. Nos níveis mais elevados de contemplação, a diferenciação da percepção sujeito-objeto desaparece e, em seu lugar, resta apenas um senso de unidade todo-abrangente.

 

Em vez de considerar a visão da perspectiva do olho de Deus como absolutamente externa à mente humana, os filósofos contemplativos da tradição cristã neoplatônica, seguindo o exemplo do tradutor e filósofo cristão do século IX, John Scotus Erigena (815?-877?), viram a possibilidade de buscar Deus no interior de si mesmos. Nicolau de Cusa, que pertencia a essa tradição contemplativa, acreditava também que a face de Deus só pudesse ser conhecida pela experiência que transcende todos os conceitos, inclusive matemáticos. Ao fazer isso, ele dizia, a pessoa pode alcançar “a visão absoluta, a origem de toda visão daqueles que veem [que] supera agudeza, toda agilidade e toda capacidade de todos que veem no presente e que poderão ver no futuro”. 

De acordo com a tradição da Grande Perfeição, a percepção dualista comum não poderia existir na ausência da consciência primordial e Nicolau de Cusa expressou uma visão similar ao dizer: “Sem a visão absoluta, não pode haver nenhuma visão contraída. A visão que é absoluta abarca em si mesma todos os modos de ver e engloba todos de maneira tal que abarca cada um, permanecendo inteiramente absoluta a cada variedade”.  E fez também uma outra afirmação notável que tem semelhança com a afirmação budista de que a realidade como um todo pode ser apreendida pelo entendimento da natureza da consciência: “Portanto, quem quer que mereça ver sua face vê todas as coisas abertamente e nada permanece oculto para tal pessoa”.  Na verdade, muitos dos grandes místicos cristãos, inclusive Santo Agostinho, declararam que um dos efeitos da prática contemplativa era uma percepção mais clara da natureza de Deus, da alma humana e das leis da natureza. 

Parte das visões da natureza do mundo material alcançadas pela meditação cristã parece dar credibilidade a essa afirmação. Os fenômenos materiais que parecem formar nosso meio físico, de acordo com Nicolau de Cusa, consistem de “naturezas contraídas” e o mesmo acontece com os fenômenos mentais comuns. Esse tema parece em princípio ser notavelmente semelhante à metáfora dos estados comuns da matéria e da consciência existindo como manifestações “congeladas” da natureza última da realidade. Nicolau de Cusa seguiu essa mesma linha de raciocínio ao escrever: “O poder primordial de ser da matéria é material e, portanto, contraído e não absoluto; assim como o poder de ser sensível ou racional também é contraído e não absoluto, mas o poder absolutamente não contraído equivale ao simplesmente absoluto, ou seja, ao infinito”. De acordo com a física moderna, o vácuo absoluto tem a característica singular da perfeita simetria, como também acontece com a espaço absoluto dos fenômenos, de acordo com a visão da Grande Perfeição. E Nicolau de Cusa fez o seguinte comentário: “Todas as coisas que são ditas de Deus não podem diferir em realidade por causa da suprema simplicidade de Deus”. A questão última da Grande Perfeição é a não dualidade das dimensões relativa e absoluta da realidade, crença que parece ser partilhada por Nicolau de Cusa: “Não existe nada fora de você, mas todas as coisas em você não são nada mais que você. Mostra-me, Senhor, como a diversidade, que não existe em ti, não existe em si mesma e nem pode existir”. 

A breve discussão acima não é obviamente conclusiva. Existem muitas diferenças importantes entre as teorias budista e cristã com respeito à consciência e entre as teorias científicas e contemplativa do espaço. Mas no meio dessas diferenças doutrinárias e teóricas, pode também existir uma base comum oculta sobre a qual essas divergentes tradições acabam convergindo. Se isso é verdade, eu acredito que elas estejam convergindo quanto à verdade mais importante que pode ser alcançada e conhecida pela experiência. Essa é a verdade que gera a felicidade genuína e resulta numa vida de virtude a serviço de todos os seres.

 

DESAFIOS A UMA CIÊNCIA CONTEMPLATIVA

Um dos mais importantes desafios a serem enfrentados pela ciência contemplativa é naturalizar a consciência sem reduzi-la a uma propriedade emergente ou a uma função da matéria. Isso requer a exploração de alternativas ao dualismo cartesiano, que tem se mostrado infrutífero, e ao materialismo científico, que restringe seriamente nosso entendimento da natureza e dos potenciais da consciência.

Estamos também diante do desafio de rever os fundamentos da natureza humana. Se nos baseamos unicamente na física para compreender nosso lugar na natureza, a existência é reduzida à condição de robô. Se nos baseamos apenas na biologia, somos reduzidos á condição de animais. A psicologia contemporânea vigente tem amplamente se restringido a estudar as mentes humanas normais e subnormais e definido a identidade humana dentro dessas limitações. O budismo vê a nossa existência em termos de três dimensões: a natureza humana qualificada pelo corpo humano e pela psique, e nossa natureza enquanto seres sencientes, qualificada pela consciência-substrato individual e pela consciência primordial, que transcende todas as limitações da vida humana e da existência senciente. O cristianismo afirma que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, o que provê uma base ao desafio colocado por Jesus para que cada pessoa seja feita como o Pai no céu é perfeito. Mas ele também considera a natureza humana como pecadora e, portanto, necessitada de redenção por Cristo.

Nos termos de nossa visão de realidade como um tudo, argumentei que os princípios fundamentais da ciência moderna são válidos com respeito ao mundo físico objetivo destituído de percepção subjetiva enquanto são ignoradas as implicações da consciência refinada (como, por exemplo, por meio da prática de samâdhi). Esse desprezo pelo papel da consciência pode parecer insignificante, muito à maneira com que as suposições básicas da mecânica clássica parecem válidas enquanto a matéria estudada é grande e não se aproxima da velocidade da luz. Mas quando a consciência é altamente refinada, torna-se necessário falar de estados “relativos” de consciência (assim chamados porque sua relevância para o mundo físico se torna óbvia); as suposições materialistas atuais podem se provar falsas.

O refinamento da consciência por meio da contemplação e a investigação científica das implicações de tais estados de consciência podem revolucionar explicitamente as ciências cognitivas e revolucionar implicitamente a ciência natural como um todo, a qual está grandemente baseada nos pressupostos do materialismo do século XIX. Isso irá requerer uma profunda investigação do poder causal da consciência, e especialmente dos estados relativos de consciência, no mundo natural. Isso, por sua vez, poderá gerar uma ciência do mundo da experiência que tomará o lugar de nossa atual ciência do mundo puramente objetivo, desprovido de subjetividade.

Os ideais de vida contemplativa quase desapareceram no Ocidente moderno, mas não precisamos buscar fora de nossa cultura para redescobri-los. Na verdade, não precisamos ir nada além de São Tomás de Aquino, cuja influência no cristianismo ocidental dificilmente pode ser superestimada: “É requisito para o bem da comunidade humana que existam pessoas que se dediquem à vida contemplativa”.  O próprio propósito da civilização é a busca da felicidade genuína, da verdade e da virtude, e a vida contemplativa é inteiramente focada nesses propósitos. Acredito que era isso que São Tomás de Aquino tinha em mente quando escreveu: 

A vida política como um todo parece estar ordenada com vista á obtenção da felicidade contemplativa. Porque a paz, que é conquistada e preservada em virtude da atividade política, coloca o homem em condições de se dedicar à contemplação da verdade.

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