A Vida sem Enredo: Vivendo plenamente com a mudança e a incerteza. Pema Chodron

A professora da faculdade da minha neta pediu aos alunos que não levassem o telefone celular para a aula. Minha neta impressionou-se com o quanto ficou mais presente e atenta em resultado disso. Ela observou que toda sua geração está fazendo um treinamento de imersão, intensivo, para ser distraída. Para mim, isso enfatiza a importância para a geração dela e as seguintes, assim também como para as gerações que vieram antes, de se contrapor a essa tendência, fazendo um curso intensivo em estar presente.

Ao praticar o estar presente, uma cosia que se descobre rapidamente é o quanto o enredo é persistente. Tradicionalmente, nos textos budistas, nossas tendências com seus enredos habituais são descritas como sementes no inconsciente. Quando as causas e condições certas se reúnem, essas propensões pré-existentes brotam como flores na primavera. É útil observar que são essas propensões, e não o que as desencadeia, a real causa do nosso sofrimento.

Tive um sonho com o meu ex-marido: eu acabava de me acomodar para uma noite sossegada em casa quando ele chegou com seis convidados desconhecidos e depois desapareceu, deixando-me a atendê-los. Fiquei furiosa. Ao acordar, lamentei: “Como é difícil acabar com a raiva: acho que a propensão ainda está lá. ” Então lembrei-me de um incidente que ocorrera no dia anterior e comecei a ficar furiosa de novo. Isso me deixou totalmente perplexa e me dei conta de que, dormindo ou acordada, é tudo a mesma coisa. Não é o conteúdo do nosso filme que necessita de atenção, mas sim o projetor. A raiz da nossa dor não está no enredo atual; está, antes de tudo, em nossa propensão a nos incomodarmos com as coisas.

A propensão a sentirmos pena de nós mesmos, termos inveja, termos raiva – nossas reações emocionais tão familiares são como sementes que simplesmente continuamos a regar e nutrir. No entanto, cada vez que fazemos uma pausa e mantemos contato com a energia subjacente, paramos de reforçar essas propensões e começamos a nos abrir para possibilidades novas e refrescantes.

À medida que você for reagindo de modo diferente a um velho hábito, perceberá as mudanças. No passado, quando ficava irritado, você podia levar até três dias para se acalmar, mas, se continuar interrompendo os pensamentos raivosos, poderá chegar ao ponto em que levará apenas um dia para abandonar aquela raiva. Finalmente, apenas horas ou até um minuto e meio. Você está começando a se libertar do sofrimento.

É importante notar que interromper os pensamentos não é o mesmo que os reprimir. A repressão é uma negação do que está acontecendo e isso só enterra os pensamentos onde eles podem apodrecer. Ao mesmo tempo, não queremos ficar perseguindo os pensamentos e ser fisgados por eles. Interromper os pensamentos fica num ponto entre segurar-se neles e afastá-los. É um modo de permitir o ir e vir dos pensamentos, que surjam e passem, para não serem vistos como grande coisa.

A prática consiste em treinar a não seguir os pensamentos, não a livrar-se deles completamente. Isso seria impossível. Com o aprofundamento da prática, pode-se experimentar momentos livres de pensamentos, maiores extensões de tempo sem pensar, mas eles sempre voltam. Essa é a natureza da mente. Entretanto, não é preciso fazer do pensamento nossos vilões. Basta treinar para poder interromper seu impulso. A instrução básica é deixar os pensamentos passarem – ou rotula-los de “pensar” – e ficar com instantaneidade de experiência.

Todo seu ser desejará fazer a coisa habitual, desejará seguir o enredo. O enredo está associado à certeza e ao conforto. Sustenta seu sentido muito limitado e estático de ser, além de oferecer a promessa de segurança e felicidade. Só que a promessa é falsa e qualquer felicidade que ele traga é apenas temporária. Quanto mais você praticar para não fugir para o mundo da fantasia de seus pensamentos e, ao invés, entrar em contato com a sensação de desenraizamento que tem, mais acostumado ficará a experimentar as emoções como simples sensações – livre de conceitos, livre do enredo, livre das ideias fixas de bom e mau.

Ainda assim, a tendência a lutar por segurança tentará reafirmar-se e ganhar terreno. Não podemos subestimar o verdadeiro (e fugaz) conforto que ele proporciona. A professora de meditação Tara Brach, em seu livro Radical Acceptance, descreve uma prática que usa nessas horas. Baseia-se nos encontros de Buda com sua nêmese, Mara, um demônio que estava sempre para tentar Buda a desistir de sua resolução espiritual e a voltar ao seu antigo modo inconsciente de ser. Psicologicamente, Mara representa a falsa promessa de felicidade e segurança oferecida por nossas reações habituais. Sempre que Mara aparecia, geralmente com belas mulheres ou outras tentações a reboque, o Buda dizia; “Eu o vejo, Mara, sei que você é um embusteiro. Sei o que está tentando fazer. ” Depois, ele convidava sua nêmese para se sentar e tomar um chá.

Quando formos tentados a retornar ao nosso modo habitual de evitar o desenraizamento, podemos olhar na tentação bem nos olhos e dizer: “Eu vejo Mara”, e depois se sentar com a essencial ambiguidade de ser humano, sem qualquer julgamento de certo ou errado.

Num livro que li recentemente, o autor falava sobre seres humanos como seres em transição – seres que não estão inteiramente cativos nem inteiramente livres, mas sim no processo de despertar. Acho útil pensar em mim dessa forma. Estou no processo de me tornar, no processo de evoluir. Não estou condenada nem completamente livre, mas crio o meu futuro com cada palavra, cada ato, cada pensamento. Encontro-me numa situação muito dinâmica, com um potencial inimaginável. Tenho todo apoio que necessito para simplesmente relaxar e conviver com a qualidade transicional em processo de minha vida. Tenho tudo de que preciso para me empenhar no processo de despertar.

Em vez de levar uma vida de resistência e tentando refutar nossa situação básica de impermanência e mudança, poderíamos em contato com a essencial ambiguidade e acolhê-la. Não gostamos de pensar em nós mesmos como fixos e imutáveis, mas emocionalmente investimos nisso. Nós simplesmente não queremos o desconforto assustador, inquietante de nos sentirmos sem base, desenraizados. No entanto, não é necessário encerrar as atividades quando sentimos o desenraizamento em qualquer forma.

Em vez disso, podemos nos voltar para ela e dizer: “ É assim que a libertação da mente fixa se sente. Esta é a sensação da libertação do coração fechado. Esta é a sensação da bondade imparcial, irrestrita. Talvez eu fique curioso e veja se posso ir além da minha resistência e experimentar a bondade. ”

O budismo defende que a verdadeira natureza da mente é tão vasta quanto o céu e que pensamentos e emoções são como nuvem que, sob nossa perspectiva, o obscurecem. Ensinam-nos que, se queremos experimentar a infinitude do céu, precisamos ficar curiosos a respeito dessas nuvens. Quando olhamos profundamente para as nuvens, elas se desfazem e lá está a vastidão do céu. Ele nunca foi a lugar nenhum. Sempre esteve lá, momentaneamente oculto de nós por nuvens fugazes, passageiras.

A jornada do despertar requer disciplina e coragem. A princípio, abandonar nossos pensamentos e emoções tipo nuvens é uma questão de hábito. Pensamentos e emoções podem nos dificultar o contato com a abertura de nossa mente, mas são como velhos amigos que nos acompanham desde quando nossa lembrança alcança e ficamos muito resistentes a nos despedir. Mas, cada vez que você começa a meditar, pode decidir que vai tentar abandonar os pensamentos e ficar bem ali com a instantaneidade de sua experiência. Talvez consiga ficar bem ali por apenas cinco segundos hoje, mas qualquer progresso em direção à não distração é positiva.

Chögyam Trungpa Tinha uma imagem para a nossa tendência a obscurecer a abertura de nosso ser; chamava-a de “botar maquiagem no espaço”. Podemos querer experimentar o espaço sem maquiagem. Ficar aberto e receptivo, nem que seja por um curto período de tempo, começa a interromper nossa resistência arraigada a sentir o que estamos sentindo, a ficar presente onde estamos.

Acreditar no enredo – é algo profundamente arraigado em nós. Declaramos nossas opiniões como se fossem indiscutíveis: “ Jane é intrinsecamente horrível. Isso é um fato. ” “Ralph é intrinsecamente cativante. Não há nenhuma dúvida quanto a isso. ” O modo de enfraquecer o hábito de se agarrar as ideias fixas é mudar o foco para uma perspectiva mais ampla. Em vez de ficar preso ao drama, veja se consegue sentir a energia dinâmica dos pensamentos e emoções. Veja se consegue experimentar o espaço ao redor dos pensamentos: experimente o modo como eles surgem no espaço, permanecem por um tempinho e depois retornam ao espaço. Se você não reprime os pensamentos e emoções e não corre com eles, estará numa posição interessante. A posição de não rejeitar nem justificar fica bem no meio de lugar nenhum. É lá que você poderá finalmente abraçar o que está sentindo. É lá que você poderá ver o céu.

Enquanto você medita, podem surgir lembranças de algo angustiantes que ocorreu no passado. Ver tudo isso pode ser bem libertador. Mas, se você está sempre visitando a memória de algo angustiante, reprocessando o que aconteceu, e fica obcecado com o enredo, ela se torna parte de sua identidade estática. Você só está fortalecendo sua propensão a se experimentar como o ofendido, a vítima. Está fortalecendo uma propensão pré-existente de culpar os outros – seus pais e alguém mais – como aqueles que o trataram injustamente. Continuar a reciclar o velho enredo é um modo de evitar a essencial ambiguidade. As emoções vão ficando, sem interrupção quando as abastecemos com palavras. É como derramar querosene numa brasa para inflamá-la. Sem as palavras, sem os pensamentos repetitivos, as emoções não duram mais que um minuto e meio.

Nossa identidade, que parece tão confiável, tão concreta, na verdade é muito fluida, muito dinâmica. As possibilidades do que pensamos e sentimos e o modo pelo qual podemos experimentar a realidade são ilimitados. Temos o que é necessário para nos libertar do sofrimento de uma identidade fixa e nos conectar com a natureza fugidia e misteriosa do nosso ser, que não tem identidade fixa. Seu senso de você mesmo – de quem pensa que é no nível relativo – é uma versão muito restrita de quem realmente é. Mas a boa nova é que sua experiência imediata – quem você parece ser nesse momento preciso – pode ser usada como entrada para sua verdadeira natureza. Por meio do pleno envolvimento com esse instante relativo do tempo – o som que ouve, o cheiro que sente, a dor ou conforto que sente agora – estando totalmente presente em sua experiência, você entra em contato com a abertura ilimitada do seu ser. Todos os nossos padrões habituais são esforços para manter uma identidade previsível: “ Sou uma pessoa raivosa”; “Sou uma pessoa amistosa”; “sou um verme”. Podemos trabalhar com esses hábitos mentais quando eles surgem e ficam com nossa experiência, não só quando estamos meditando, mas também no cotidiano. Estejamos a sós ou na companhia de outros, não importa o que estejamos fazendo, a inquietude pode vir para a superfície a qualquer instante. Podemos achar que esses sentimentos pungentes, penetrantes, sejam sinais de perigo, mas na verdade são sinais de que acabamos de entrar em contato com a fluidez essencial da vida. Ao invés de nos escondermos desses sentimentos, ficando na bolha do ego, podemos deixar passar a verdade de como as coisas realmente são. Esses momentos são grandes oportunidades. Mesmo que estejamos cercados de gente – numa reunião de negócios, digamos – ao sentirmos a inquietude surgindo, podemos simplesmente respirar e encarar os sentimentos. Não é preciso entrar em pânico e nos fecharmos em nós mesmos. Não é preciso reagir do modo habitual. Não é preciso lutar ou fugir. Podemos ficar envolvidos com os outros e ao mesmo tempo reconhecer o que estamos sentindo.

As instruções, em sua simples forma, obedecem a três passos básicos:

Ficar totalmente presente.

Sentir o coração.

E envolver-se com o momento seguinte sem nenhuma programação.

Trabalho com esse método no ato, bem no meio das coisas.

Quanto mais eu ficar presente na meditação formal, mais familiar o processo se torna e mais fácil é fazer isso em meio a situações cotidianas. Mas, independentemente de onde praticamos o estar presente, isso nos porá em contato com a incerteza e mudança que são inerentes ao estar vivo. Isso nos dará a chance de treinar para ficar despertos a tudo de que anteriormente fugíamos atentos.

Os três compromissos representam três níveis de trabalho com o desenraizamento. A instrução básica é sustentá-los para que você fique amigo de si mesmo – para ser honesto consigo mesmo e afável. Isso começa com a disposição de estar atento sempre que experimentar a inquietude. À medida que esses sentimentos surgem, ao invés de fugir, você se apoia neles. Ao invés de tentar se livrar de pensamentos e sentimentos, você fica curioso sobre eles. Conforme se acostuma a experimentar a sensação de estar livre da interpretação, você passará a entender que entrar em contato com a essencial ambiguidade de ser humano proporciona uma oportunidade preciosa – a oportunidade de ficar com a vida bem como ela é, a oportunidade de experimentar a liberdade da vida sem um enredo.

"A Vida sem enredo" - Trecho do livro "A beleza da vida - a incerteza, a mudança, a felicidade" de Pema Chodron. 
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Pema Chödrön

Pema Chödrön é uma monja, que pratica na tradição do budismo tibetano. Foi uma discípula de Chögyam Trungpa Rinpoche, cujos ensinamentos ela continua a disseminar entre estudantes ocidentais do mundo inteiro. Nascida na cidade de Nova York, em 1936, Pema tem 2 filhos adultos e 2 netos. Formada pela Universidade da Califórnia, em Berkeley, foi professora primária por muitos anos, no Novo México e na Califórnia. Pema já havia passado dos 30 anos quando se ligou pela primeira vez aos ensinamentos budistas. Em 1971, ela viajou para os Alpes franceses, onde encontrou o Lama Chime Rinpoche, com quem estudou por muitos anos. Tornou-se uma noviça em 1974, enquanto estudava com Lama Chime, na Inglaterra.

O primeiro encontro de Pema com seu guru-raiz, Chögyam Trungpa Rinpoche, foi em fevereiro de 1972. Lama Chime encorajou-a a trabalhar com Trungpa Rinpoche e foi com ele que Pema, finalmente, se ligou mais profundamente. Pema estudou com Trungpa Rinpoche de 1974 até a morte de dele, em 1987, recebendo dele sua ordenação plena em 1981. Pema continuou a estudar com grandes mestres das linhagens Kagyü e Nyingma do budismo tibetano.

Atualmente, Pema é professora residente na abadia Gampo, um centro monástico situado em uma área de duzentos acres, à beira-mar, sobre as falésias do cabo Breton, na Nova Escócia, no Canadá. Pema é uma Acharya (professor senior) de Shambhala International e, quando não está em retiro fechado, na abadia Gampo, viaja pela Europa, Austrália e América do Norte, ensinando a grandes audiências.

Pema Chödrön é a autora de  “Comece onde você está“, Editora Sextante, “Os lugares que nos assustam” e “Quando tudo se desfaz”, Editora Gryphus.

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