ALÉM DO TÉDIO: a sina daqueles que necessitam de distrações

O tédio é a sina daqueles que necessitam de distrações, para quem a vida é uma ”grande diversão” e que murcham no minuto em que o espetáculo termina. O tédio é a aflição daqueles que não sabem o valor do tempo.

Já os que compreendem o inestimável valor do tempo usam cada intervalo das suas atividades diárias e estímulos exteriores para experienciar a deliciosa clareza e serenidade do momento. Para estes não há tédio, a mente não entra nesse estado de aridez e secura.

Matthieu Ricard

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A perfeita simplicidade do momento

Costuma acontecer bastante de, em qualquer coisa que estejamos fazendo — sentando, andando, levantando ou deitando –, a mente frequentemente é desconectada da realidade imediata e, no lugar disso, fica absorvida em conceitualização compulsiva sobre o o futuro ou o passado.

Enquanto estamos andando, pensamos sobre a chegada, e quando chegamos, pensamos na partida. Quando estamos comendo, pensamos sobre a louça e quando lavamos a louça, pensamos em ver televisão.

Essa é uma maneira bizarra de manter a mente. Não estamos conectados com a situação presente, mas estamos sempre pensando em outra coisa. Com muita frequência somos consumidos por ansiedade e desejo, arrependimentos sobre o passado e antecipação do futuro, perdendo completamente a perfeita simplicidade do momento.

B. Alan Wallace, em “Tibetan Buddhism from the Ground Up”.
Tricycle’s Daily Dharma, 26 de fevereiro.

Lavando os pratos

louca“Enquanto estiver lavando os pratos, deveríamos apenas lavar os pratos, o que quer dizer que enquanto lavamos os pratos deveríamos estar completamente conscientes do fato que estamos lavando os pratos. Parece meio bobo assim à primeira vista: porque dar tanta preocupação para uma coisa simples? Esse é exatamente o ponto. O fato que eu estou lá em pé lavando aqueles pratos é uma realidade incrível. Estou sendo completamente quem sou, seguindo minha respiração, consciente da minha presença, e consciente dos meus pensamentos e ações. Não há como ser lançado dali inconsciente como se fosse uma garrafa batendo nas ondas aqui e ali.

 (…)

 Se enquanto estivermos lavando os prato pensarmos somente na xícara de chá que nos espera, assim apressando a lavação dos pratos que eu possa me livrar deles como se fossem um transtorno, então não estamos “lavando os pratos para lavar os pratos”. Mais que isso, não estamos nem vivos durante o tempo que estamos lavando os pratos. Na verdade, estamos completamente incapacitados de perceber o milagre da vida enquanto estamos ali na pia. Se não conseguimos lavar os pratos, há grandes chances de não conseguirmos tomar nossa xícara de chá também. Enquanto tivermos bebendo o chá, estamos pensando em outras coisas, dificilmente conscientes da xícara em nossas mãos. Assim somos sugados para o futuro — e incapazes de viver sequer um único minuto de vida.”

VENCER OBSTÁCULOS: A PREGUIÇA NA MEDITAÇÃO. 

Todo treinamento implica reforços e toda mudança encontra naturalmente resistência. No caso do treinamento da mente e da meditação, diferentes obstáculos podem diminuir o ritmo de nossa progressão. As instruções tradicionais sobre a meditação incluem nesses obstáculos a preguiça, a inércia e seu contrário, a agitação distraída, assim como a falta de perseverança e seu oposto, o esforço excessivo.

A preguiça, que se aproxima da indolência e da falta de motivação, pode tomar várias formas. A preguiça comum é o defeito de todos aqueles que rejeitam qualquer esforço. Seu antídoto consiste em lembrar o valor da existência humana, de cada instante que passa, e em contemplar os benefícios da transformação interior. Essas reflexões permitem reavivar a inspiração e o entusiasmo. Outra forma de preguiça consiste em pensar: “Isso não é para mim, está além de minha capacidade, prefiro não me comprometer.” Em suma, renuncia-se à corrida antes mesmo de atravessar a linha de partida. Para nos opor a esse obstáculo, estimemos o potencial de transformação que existe em nós e encaremos o sentido da existência sob um ponto de vista mais amplo.

Terceira forma de preguiça: não ter a determinação de realizar, em primeiro lugar, aquilo que se sabe ser o mais importante e, em vez disso, dilapidar seu tempo em atividades menores. Para combater tal atitude, devemos estabelecer uma hierarquia em nossas preocupações, e nos lembrar de que nosso tempo é contado, enquanto nossas atividades comuns não têm mais finalidade do que as ondas no oceano.

A distração é o parasita mais comum da meditação. Qual praticante não foi a vítima dela? Ela é totalmente normal, uma vez que empreendemos essa prática com uma mente indisciplinada e caótica; não podemos esperar que ela se acalme logo de início. Não há, então, nenhuma razão para se desesperar. O objetivo da meditação é exatamente tornar a mente flexível e manejável, concentrada ou descontraída e, sobretudo, livre da influência das aflições mentais e da confusão. O antídoto para as aflições mentais e para a confusão é cultivar a vigilância e, cada vez que percebermos que nossa mente está vagando, trazê-la de volta, incansavelmente, para o objeto da meditação. Lembremo-nos da razão pela qual estamos meditando. Nosso objetivo não é perder tempo deixando vagar os pensamentos, mas utilizar esse tempo da melhor forma para estabelecer as condições de uma verdadeira felicidade partilhada.

A inércia e a agitação são também dois obstáculos maiores que levam a perder o fio da meditação. A inércia prejudica a clareza da mente, e a agitação, sua estabilidade. A primeira pode ir de um simples peso na mente ao sono, passando pela letargia, tédio, devaneio ou qualquer outro estado mental vago e nebuloso. Essa falta de clareza é um grande obstáculo já que desejamos utilizar a concentração para melhor compreender a natureza da mente. Como explica Bokar Rinpotché, um mestre da meditação contemporânea: “Quando em pleno dia contemplamos o mar, vemos, através da água clara, as pedras e algas do fundo. A meditação deve possuir essa mesma qualidade clara que permite estar plenamente consciente da situação de nossa mente. À noite, entretanto, a superfície das ondas é uma massa escura e opaca que não deixa penetrar o olhar, assim como a mente pesada e sombria, apesar de sua aparência estável, impede de meditar”.

Para se opor a esse estado, é aconselhável adotar uma postura mais ereta e firme, olhar mais para o alto, para o espaço diante de ti, e usar menos roupas, caso se esteja vestido demais. É preciso estimular sua atenção e das ênfase à consciência plena do momento presente.

A agitação é uma forma de distração hiperativa na qual a mente produz em cadeia pensamentos mantidos pelos automatismos e pela imaginação. Essa agitação febril não cessa de nos afastar de nosso objeto de concentração. Estamos assentados tranquilamente, mas nossa mente dá a volta ao mundo. Nesse caso, relaxemos um pouco nossa postura física, abaixemos o olhar e recobremos nosso sentido lembrando por que estamos ali e qual é o objetivo de nossos esforços.

Todo treinamento requer esforços regulares. A falta de perseverança diminui consideravelmente os efeitos da meditação e enfraquece seu poder de nos transformar. Assim como notamos no início, um grande esforço não tem, às vezes, o mesmo efeito benéfico de um esforço menos espetacular, mas contínuo. Não bastará para transformar a mente de maneira profunda e duradoura. E ainda é preciso lutar contra essa fraqueza, refletindo sobre o valor do tempo que passa, sobre a incerteza acerca da duração de nossa vida e sobre os benefícios do treinamento que assumimos.

Podemos, também, cair momentaneamente no excesso contrário, no esforço excessivo, pelo fato de termos combatido a displicência além do necessário. A tensão que resulta desse fato acaba nos desviando da própria meditação. Devemos, então, equilibrar nossos esforços, ou seja, conservar um meio-termo entre tensão e relaxamento, como Buda havia aconselhado ao tocador de vina do qual falamos, e cessar de aplicar um antídoto quando não é mais preciso, deixando a mente repousar calmamente em seu estado natural.

O esforço excessivo pode também vir da impaciência ou da exaltação, dois estados que não levam a nada. Se, para subir uma montanha alta, começaremos a correr, teremos de parar logo, com os pulmões pegando fogo. Da mesma forma, se dobrarmos muito um arco, ele se quebrará, e, se pusermos a comida no fogo muito forte, ela queimará em vez de cozinhar. Exigir um resultado imediato é próprio do capricho ou da preguiça. O Dalai Lama diz com humor: “No Ocidente, as pessoas são, por vezes, muito apressadas.

Elas gostariam de atingir o Despertar de maneira rápida e fácil e, se possível, sem grande custo”. Da mesma forma que é preciso paciência para chegar à colheita – de nada serve forçar a muda para fazê-la crescer mais depressa! -, a constância é indispensável para a prática da meditação.

Os textos de meditação ensinam nove métodos para cultivar a atenção, estabelecer a serenidade mental e tornar a mente mais estável. Lembremos que, nesse caso, a consciência plena consiste em que se permaneça continuamente atento ao objetivo de concentração escolhido.

1. Concentrar a mente, ainda que de maneira breve no início, num objeto, conforme as instruções, evitando que ela se deixe levar pelas imagens ou pelos pensamentos discursivos.

2. Situar a mente continuamente sobre esse objeto, durante um período de tempo maior, sem se distrair. Para consegui-lo, temos de nos lembrar claramente dos ensinamentos de como manter concentrada no seu suporte, guardá-los na memória e colocá-los em pratica com cuidado.

3. Trazer a mente de volta ao seu objeto cada vez que percebermos que a distração a afastou dele. Para isso, temos de reconhecer que a mente esteve distraída, identificar a emoção ou o pensamento que provocou essa distração e utilizar o antídoto apropriado. Pouco a pouco, tornamo-nos capazes de mantê-la calma e estável durante longos períodos de tempo, tendo uma concentração mais clara.

4. Situar a mente com cuidado: quanto mais firme é a mente, mais ela é concentrada, mais tendência temos para meditar. Mesmo se a atenção ainda não for perfeita, conseguiremos não perder mais completamente o suporte da meditação e nos livrarmos das formas mais perturbadoras da agitação mental.

5. Controlar a mente: quando a concentração mergulha no torpor, reavivamos a acuidade, a clareza da presença atenta e renovamos a inspiração e o entusiasmo considerando os benefícios da concentração perfeita (samadhi).

6. Acalmar a mente: quando a acuidade se torna muito restritiva e a concentração é abalada pela agitação mental sutil que toma a forma de uma pequena conversação discreta por trás da atenção, o fato de se considerarem os perigos

 – Thich Nhat Hanh, em “O Milagre da Atenção Plena (The Miracle of Mindfulness)

 

A preguiça é uma característica humana comum. Infelizmente, ela inibe a energia do despertar e mina nossa confiança e nossa força. Existem três tipos de preguiça – orientação ao conforto, perda de entusiasmo e “não ligo a mínima”. Estas são as três maneiras elas quais ficamos presos aos padrões habituais debilitantes. No entanto, explorá-las com curiosidade faz com que seu poder se dissolva.

O primeiro tipo de preguiça, orientação ao conforto, está baseado em nossa tendência de evitar inconveniência. Queremos descansar, nos dar um tempo. Mas tranqüilizar-nos, acalmar-nos se torna um hábito e ficamos exaustos e preguiçosos. Se estiver chovendo, preferimos dirigir por meia quadra a nos molharmos. Ao primeiro sinal de calor, ligamos o ar-condicionado. Na primeira ameaça de frio, ligamos o aquecimento. Dessa maneira, perdemos contato com a textura da vida. Confiamos na “adrenalina” rápida e ficamos acostumados a resultados automáticos.

Esse tipo especial de preguiça pode nos tornar agressivos. Ficamos indignados com a inconveniência. Quando o carro não funciona, quando ficamos sem os serviços de água ou de eletricidade ou quando temos que nos sentar no chão frio, sem acolchoado, nós explodimos. A orientação ao conforto entorpece nossa percepção dos odores, da vista e dos sons. Também nos faz insatisfeitos. De algum modo sabemos, sempre, em nosso coração, que o prazer puro não é o caminho para a felicidade duradoura.

Pema ChödrönOs lugares que nos assustam (Editora Sextante, Rio de Janeiro, 2003)

Comentarios:

comments

  • Florinda Rosa Isabel

    AGORA COMPREENDI POR QUE É QUE NÃO CONSIGO RESPONDER ÀS PESSOAS QUANDO ESTOU A FAZER ALGO, TENHO DE PARAR. NUNCA COMPREENDI ISSO, TODOS SE ADMIRAM, MAS A VERDADE É QUE TUDO QUE FAÇO RARAMENTE FICA IMPERFEITO, E QUANDO FALO OU ESCUTO, SEM OUTRA COISA EM QUE PENSAR, TUDO FICA GRAVADO NA MEMÓRIA, AO CONTRÁRIO DAS PESSOAS DE MINHAS RELAÇÕES, QUE SE ESQUECEM DE UM SIMPLES, MAS ÚTIL RECADO. BEM-HAJAM PELA SABEDORIA QUE TRANSMITEM.

  • Tenho lido gostado. Espero continuar. Ogrigada.

  • Silvia

    Excelente texto, bem esclarecedor e reflexivo!

  • Ótimo texto, bastante esclarecedor.

  • Cristiane Freitas

    Minha “vitamina” diária.Textos vitais. Muito obrigada.