Bodicita: o espírito do despertar B. Alan Wallace

Após o desenvolvimento das quatro qualidades incomensuráveis e antes do cultivo da sabedoria está a joia da coroa de todo o budismo Mahayana. Em sânscrito, é chamada de bodicita, que traduzo como o “espírito do despertar”. Se você pudesse ler e praticar apenas um capítulo deste livro, deveria ser este. Porque bodicita, o espírito do despertar, começa com shamatha, que torna a sua mente funcional, segue com o cultivo da bondade amorosa e da compaixão, e, em seguida, culmina no Dzogchen, a Grande Perfeição. Abrange todo o Budadarma – nada é deixado de fora.

Entre todos os professores espirituais com quem tenho treinado ao longo dos anos, nenhum incorpora de forma mais clara as qualidades de bodicita do que Sua Santidade o Dalai Lama. Isso ficou evidente para mim em 1979, quando tive o privilégio de servir como seu intérprete durante visitas à Suíça e à Grécia. Ele parecia irradiar um sentimento de bondade e humildade, e me senti inundado por sua ternura. Em Atenas, nos foi oferecida hospedagem em uma residência privada. A porta da frente se abria para uma sala de estar que levava a um corredor com todos os quartos da casa. Sua Santidade foi acomodado no quarto ao final do corredor. Quando ia para o banho, tinha que atravessar o corredor até o banheiro mais próximo. Em uma tarde quente, caminhando para seu banho, enrolado apenas em uma toalha, ele olhou para a sala de estar onde estávamos reunidos e nos cumprimentou com um aceno e um sorriso feliz.

Alguns dias mais tarde, visitamos um centro budista fundado por Kalu Rinpoche, um lama altamente respeitado da ordem Kagyupa do budismo tibetano. No passado, Kalu Rinpoche havia instruído seus alunos novatos a se dedicarem às tradicionais “práticas preliminares” em preparação para as meditações esotéricas do budismo Vajrayana. Mas, depois de sua breve visita à Grécia, Kalu Rinpoche voltou para a Índia, deixando os seus alunos sem ninguém para orientá-los na prática diária. As preliminares que ele ensinou incluem a recitação de mantras e muitas outras práticas devocionais, tais como a realização de 100.000 prostrações para os budas. Esses alunos iniciantes disseram ao Dalai Lama que tinham muita resistência para realizar essas práticas, apesar das instruções de seu lama, a quem reverenciavam. Sua Santidade respondeu que essas preliminares são destinadas especificamente a preparar o aluno para práticas Vajrayana avançadas, mas não são fundamentais para o budismo como um todo. Ele os encorajou a enfatizar sobretudo o cultivo da bodicita. “Executar até mesmo uma única prostração com a motivação de bodicita”, ele lhes disse, “é mais valioso do que fazer 100.000 prostrações com uma motivação egoísta. Então, deixe que bodicita seja o coração da sua prática.”

 

PRÁTICA

Sente-se confortavelmente, repousando o corpo de uma maneira que facilite a meditação. Para ajudar a manter a estabilidade da atenção, permaneça tão imóvel quanto possível. Quer esteja em uma cadeira com os pés no chão ou sentado de pernas cruzadas, assuma uma postura de vigilância, com o esterno ligeiramente elevado para que possa respirar no abdômen sem esforço. Assegure-se de estar com o abdômen relaxado, para que possa se expandir quando você inspira. Os músculos do seu rosto estão relaxados e soltos, especialmente os músculos ao redor dos olhos e os próprios olhos? Se perceber qualquer tensão em uma dessas áreas de seu rosto, relaxe. Agora, faça três respirações lentas e profundas, inspirando no abdômen de forma plena e profunda, e expirando de forma natural e livre.

Comece por acalmar sua mente com a prática da atenção plena à respiração. Recolha a sua consciência do mundo exterior e repouse sua atenção no campo das sensações táteis por todo o corpo. A cada inspiração e expiração, observe se a respiração é longa ou curta. Em vez de forçar a concentração, simplesmente deixe os pensamentos errantes passarem. Dê um descanso para a mente discursiva durante essa sessão de 24 minutos. A cada inspiração, respire nas áreas de tensão em seu corpo e, a cada expiração, sinta os nós de tensão do corpo e da mente se desfazendo, conforme relaxa mais profundamente.

Em especial ao final da expiração, não há necessidade de aplicar a vontade para que a inspiração aconteça. Em vez disso, deixe-a fluir como as ondas do mar. Relaxe profundamente na inspiração e continue relaxando na expiração. Busque uma sensação de calma interior, liberando a tensão da mente não por constrição, mas liberando sua atenção, de modo que a quietude surja dessa sensação de calma interior.

Essa prática levará você a uma sensação cada vez mais profunda de quietude, que se transformará aos poucos em uma sensação de bem-estar. Potencialmente, esse é um caminho para um profundo insight, tanto sobre a natureza da consciência quanto sobre a natureza do mundo que nos rodeia. Mas, por enquanto, em vez de aprofundarmos essa prática, expandiremos o alcance de nossa consciência usando outra maravilhosa faculdade da mente humana: a imaginação. Voltemos à prática de tonglen, a prática de dar e receber, que é o principal método para o cultivo de bodicita.

Comece imaginando uma pessoa próxima a você – um ente querido, um irmão, um parente, um amigo –, uma pessoa que você conheça bem e com quem se importe bastante. Traga à mente uma pessoa assim, que esteja enfrentando alguma adversidade, seja econômica, social, psicológica ou física. Imagine nitidamente essa pessoa e traga à mente, da melhor forma que puder, as causas de seu sofrimento, externas e internas. Em seguida, simbolicamente visualize a pureza fundamental da sua própria consciência, a sua natureza de buda. Essa é a sua capacidade para a iluminação, que se torna obscurecida por aflições mentais. Agora, imagine-a sob a forma simbólica de uma esfera de luz em seu coração – uma luz branca, inesgotável e radiante, uma luz de alegria e de purificação. Imagine-a como a base do seu ser, a sua verdadeira natureza.

Agora, seguindo com a prática de tonglen, imagine o sofrimento e as fontes de sofrimento desse ser amado na forma de uma nuvem escura que oculta a verdadeira natureza dessa pessoa. A cada inspiração, imagine que você inspire essa escuridão, trazendo-a até a esfera da luz em seu coração, onde essa nuvem desaparece sem deixar rastro. Faça isso não apenas como um exercício de visualização, mas gerando esse desejo a cada inspiração: “Que você se livre desse sofrimento e de suas causas subjacentes.” A cada inspiração, imagine o sofrimento dessa pessoa e as suas causas se dissipando até desaparecerem completamente.

Mais uma vez, traga essa pessoa de forma vívida à sua mente, mas, dessa vez, foque os anseios dessa pessoa e o seu desejo de felicidade. E com a aspiração de “que você possa encontrar a verdadeira felicidade e acessar a sua fonte”, a cada expiração, imagine essa luz fluindo de seu coração diretamente para fora, como um brilho suave e tranquilizador de bondade amorosa. Imagine essa luz se espalhando e preenchendo essa pessoa com a luz da alegria. Imagine que isso seja verdade aqui e agora.

Agora, traga à mente alguém que lhe trouxe sofrimento e que possa ainda lhe desejar mal. À medida que traz essa pessoa à mente, questione se as qualidades condenáveis que você percebe nela são reais ou imaginárias. Poderiam ser em parte reais e em parte projetadas por você? Por força da aversão, podemos reforçar a percepção das qualidades negativas do outro. De qualquer forma, aqui está uma pessoa problemática, e o problema parece vir de fora. A cada inspiração, traga para si as qualidades que o incomodam. Imagine-se inspirando essas causas de sofrimento, quer estejam na vida da pessoa, na sua vida, ou na relação entre as duas. Traga isso para o seu coração na forma de uma nuvem de escuridão e elimine-a. A cada inspiração, imagine todas essas qualidades ou tipos de comportamento que você acha tão difíceis se dissipando. Imagine todas as aflições e obscurecimentos da mente desaparecendo, sendo extintos na luz de seu próprio coração.

Agora, a cada expiração, visualize toda a bondade, toda a compaixão e toda a sabedoria fluindo a partir dessa fonte inesgotável em seu coração. A cada expiração traga esse pensamento de bondade amorosa: “Que você fique realmente bem e feliz, dotado das causas da felicidade genuína.” Imagine essa pessoa sendo inundada por essa luz de bondade, experimentando a alegria da realização da bondade amorosa e da compaixão. Imagine essa luz a saturando essa pessoa com mais e mais brilho, e imagine a sua alegria aumentando.

Agora, amplie o alcance da sua consciência para envolver todos os seres que, como você mesmo, anseiam pela felicidade e por se livrar da dor e da ansiedade. A cada inspiração, traga para si o sofrimento dos seres, juntamente com as suas causas subjacentes, na forma de uma nuvem escura. A cada expiração, imagine-se abençoando o mundo com a luz da verdadeira felicidade.

Em seguida, desprenda-se de sua imaginação, libere os objetos de sua mente e, sem esforço, estabeleça a sua consciência em sua própria natureza, sem sujeito e sem objeto – apenas solte.

Dedique os méritos e encerre a sessão.

 

PARA CONTEMPLAÇÃO ADICIONAL

Todas as semanas durante o verão e outono de 1972, um ano depois de começar os meus estudos em Dharamsala, na Índia, subia a montanha acima da aldeia para me encontrar com o meu professor, Geshe Rabten. Ele estava em retiro meditativo naquela época, vivendo em um estábulo rústico com vista para a estação da montanha McLeod Ganj , para onde os membros do Raj britânico mudavam as suas famílias durante os sufocantes verões indianos. A meu pedido, ele contou a história de sua vida, começando pela infância como um garoto de fazenda na selvagem região Leste do Tibete. Ao descrever seu caminho de formação e desenvolvimento espiritual, enfatizou o cultivo de bodicita como a mais importante de todas as práticas, pois é a estrutura do modo de vida do bodisatva como um todo. A quietude meditativa, as quatro qualidades incomensuráveis e as quatro aplicações da atenção plena estabelecem uma base para o desenvolvimento do espírito do despertar. As práticas do Buda que são ensinadas, me disse Geshe Rabten, consistem em apenas três tipos: “a base para bodicita”; “o cultivo efetivo de bodicita”; “o resultado de bodicita”, que se refere às qualidades da iluminação que emergem dessa prática. Assim, o espírito do despertar reflete a essência da prática budista em seu início, meio e fim.

Bodicita é a aspiração sincera de alcançar o despertar espiritual para benefício de todos os seres, uma aspiração que funde os dois objetivos mais nobres. O primeiro é buscar a iluminação. Mas perseguir essa aspiração apenas para si mesmo ignora algo fundamental sobre a natureza da nossa existência: nenhum de nós vive isolado, independente dos que nos rodeiam. A nossa existência é uma inter-relação. Nós sobrevivemos na dependência dos cuidados de nossos pais e de nossos relacionamentos com os nossos irmãos, amigos e professores. A sociedade nos proveu sustento, roupas e abrigo. Cada um de nós sempre viveu na dependência de uma rede de outras pessoas que se estende através do tempo e do espaço, sem fim.

Assim, as nossas aspirações devem incluir o bem-estar dos outros. Se estamos buscando a verdade, as nossas aspirações devem estar enraizadas na realidade de que existimos de maneira interdependente. Cada um de nós está se esforçando para alcançar a felicidade e se libertar do sofrimento e ansiedade. No entanto, muitas vezes os nossos esforços falham. Novamente, lembre-se do comentário de Shantideva em A Guide to the Bodhisattva’s Way of Life: “Aqueles que desejam escapar do sofrimento se lançam rumo ao sofrimento. Mesmo com o desejo de felicidade, movidos pela delusão, eles destroem a sua própria felicidade como se fosse uma inimiga.” Como é precisa essa imagem de nossas próprias vidas e do mundo em geral! Isso nos leva ao nosso segundo nobre objetivo: “O que posso fazer para ajudar?”

Ao longo dos anos, desde que recebi esses ensinamentos sobre bodicita pela primeira vez, foi ficando cada vez mais claro para mim que o cultivo da compaixão é sobretudo uma questão de prestarmos atenção aos outros em vez de nos esforçarmos para nos preocupar com eles. Como já discutimos antes, a compaixão não é sentir pena: em vez disso, ela é ver o sofrimento e automaticamente aspirar que possa ser aliviado. Por exemplo, se você está passando pela cena de um acidente, espera espontaneamente que ninguém tenha ficado ferido com gravidade. Esse tipo de compaixão não requer uma grande prática espiritual. É o resultado natural de prestar atenção ao sofrimento dos outros.

Quando observamos a magnitude do sofrimento no mundo e a maneira pela qual tolamente perpetuamos as fontes do nosso sofrimento, a compaixão é uma resposta natural. Isso nos leva à questão: como podemos estar a serviço – não apenas para atenuar alguns dos sintomas, mas para eliminar as causas fundamentais do sofrimento para todos? Para abordar essa questão a partir de uma perspectiva prática, faz sentido o fato de que, quanto mais nos curarmos das aflições mentais e quanto mais desenvolvermos virtudes como a sabedoria e compaixão, mais eficazes poderemos ser ao nos colocarmos a serviço dos outros. Nas palavras de Shantideva: “Aqueles que anseiam superar as esmagadoras angústias da existência, aqueles que desejam dissipar as dificuldades do mundo e aqueles que anseiam por experimentar uma miríade de alegrias nunca devem se separar do espírito do despertar.”

Temos o desafio de descobrir a nossa natureza búdica e também o desafio de despertá-la. Esse não é um estado passivo de consciência. Pelo contrário, podemos dar alguns passos para despertar a nossa própria natureza búdica, de forma a torná-la ativa em nosso comportamento físico, verbal e mental. A chave é o cultivo da “grande compaixão”, ou mahakaruna. Lembre-se do tópico da compaixão ilimitada como a segunda das quatro qualidades incomensuráveis. Esse é um tipo de compaixão que não se fixa nas demarcações de amigo, inimigo e pessoa neutra, mas abrange todos os seres, eu mesmo e os outros, incondicionalmente. Todavia, mahakaruna vai um passo além disso. Ela implica tomarmos para nós a responsabilidade de aliviar o sofrimento dos outros e de levar cada um deles, sem exceção, a um estado de alegria duradoura.

Quando Geshe Rabten explicou a diferença entre compaixão ilimitada e grande compaixão a um pequeno grupo de estudantes em nosso monastério na Suíça, ele fez uma analogia com as diferentes formas de reagir ao incidente de uma vaca que ficou atolada em um buraco de esgoto. Uma pessoa que tenha cultivado a compaixão ilimitada veria a vaca como um amigo querido, e tentaria libertá-la com cordas e com a ajuda de outras pessoas, puxando-a até a terra firme, para fora da fossa. Mas um bodisatva que desenvolveu a grande compaixão, assumindo a responsabilidade pessoal de resgatar a vaca, faria tudo que fosse possível para libertá-la, inclusive pular para dentro da fossa. Quando um de seus alunos perguntou se deveríamos nos considerar como o bodisatva, Geshe Rabten nos disse sem rodeios: “Vocês são a vaca!”

A grande compaixão é a força motivadora que inspira todo o modo de vida do bodisatva. Com a grande compaixão assumimos responsabilidade pessoal pelo bem-estar de todo o mundo. Ao cultivar essa dimensão da compaixão, experimentamos um sentimento de profunda inter-relação, que torna o bem- estar de cada pessoa tão importante quanto o nosso. Assim, a grande compaixão se expressa por meio dessa aspiração: “Que todos os seres sencientes se livrem do sofrimento e das fontes de sofrimento, e que eu seja capaz de ocasionar isso.”

Trecho do livro de B. Alan Wallace “Felicidade genuína: Meditação como o caminho para a realização”.

 

450xNEm nossa busca pela felicidade, não precisamos procurar longe. A verdadeira felicidade não é encontrada na conquista da natureza ou na aquisição de fama e fortuna — é encontrada dentro de nós, ao percebermos o potencial de nosso coração e mente. Em Felicidade genuína, Alan Wallace, estudioso e praticante budista de longa data, ajuda você a abraçar a alegria interior por meio do poder singular da meditação. Baseado em seus trinta e cinco anos de estudo e prática sob a orientação de sessenta professores do Oriente e do Ocidente, Alan Wallace descreve um conjunto de técnicas de meditação tibetanas desde a mais simples atenção plena na respiração até os elevados métodos do Dzogchen.

Abrangendo os princípios mais promissores dos ensinamentos budistas, Felicidade genuína delineia as cinco meditações essenciais tibetanas que lhe ajudarão a alcançar maior felicidade:

-Quiescência meditativa: atenção plena na respiração, acomodando a mente em seu estado natural e cultivando a consciência de simplesmente estar consciente.

-As quatro aplicações da atenção plena: os ensinamentos fundamentais sobre o cultivo do insight contemplativo.

-As quatro qualidades incomensuráveis: compaixão, bondade amorosa, alegria empática e equanimidade. O caminho do coração para a felicidade genuína.

-Ioga dos sonhos: práticas diurnas e noturnas.

-Dzogchen: a Grande Perfeição.

 Com prefácio do Dalai Lama, Felicidade genuína vai ajudá-lo a recolher e focar a mente, afastando-a do embotamento e da agitação compulsiva da vida cotidiana. Por meio dessas técnicas e meditações budistas, você vai descobrir como treinar sua mente e mergulhar em estados de consciência cada vez mais profundos. Cada capítulo começa com uma meditação guiada, material introdutório e pensamentos para contemplação adicional.

Por meio da prática, do entendimento e da orientação de Alan Wallace, você vai aprender a seguir o caminho da felicidade genuína até sua fonte — utilizando ao máximo os seus recursos naturais internos. Adquira o livro no site da Lúcida Letra clicando aqui.

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