Tonglen, a prática da compaixão

“Se você quer que os outros sejam felizes, pratique compaixão. Se você quer ser feliz, pratique compaixão”.
~ Tenzin Gyatso, o XIV Dalai Lama


Tonglen, a prática da compaixão

por Ty Phillips.

Para aqueles de nós não estão familiarizados com o budismo tibetano, a palavra tonglen não tem nenhum significado.

Mas seu valor como uma prática pode proporcionar uma mudança profunda para todos nós.

Tonglen basicamente significa dar e receber. É uma prática de compaixão, e sua única intenção é levar o sofrimento dos outros sobre nós mesmos e dar-lhes a nossa saúde, paz e felicidade em troca. Para muitos ocidentais, isso soa como uma ideia absurda e tola; até mesmo os nossos trabalhadores de saúde mental que as vezes encorajam uma visão de mundo auto centrada, a fim de se auto-curar.

Por que pensar em assumir os fardos de outras pessoas?

Nossa prática pode começar com a simples idéia de querer bem a alguém próximo, que sentimos amor: um cônjuge, um filho, um amigo. Não precisamos começar com todo o planeta.

Nós simplesmente nos sentamos e sentimos nossas emoções sobre esta pessoa brotando-nosso amor para com o nosso filho ou filha, o nosso amor para com nossos cônjuges ou entes queridos. Nós permitimos que este sentimento cresça e nós sentimos que isso flui em direção a eles com um desejo mais profundo e mais intenso para o seu bem-estar. Não tem que ser mais complexo ou profundo do que isso.

À medida que progredimos em nossa prática de aspirar o bem-estar e um fim ao sofrimento para outras pessoas, podemos começar a tentar com alguém que é neutra para nós ou colega de trabalho. Notamos que eles têm um resfriado, ou estão nervosos sobre uma entrevista ou algum outro aspecto de sua vida. Podemos compreender esses sentimentos já que somos capazes de nos relacionar com eles. Nós também tivemos a doença e a ansiedade sobre uma situação, neste caso uma entrevista. Nós permitimos que o nosso entendimento e compreensão cresçam, e com isso também, nosso senso de conexão através de uma experiência compartilhada e emoção. Nós entendemos e desejamos que eles se sintam à vontade e naturalmente desejamos-lhes sorte e sucesso.

Este processo de crescimento e empatia relacional é o segundo passo. É fácil e calmo. Não é um auto-martírio. É apenas um simples cultivo de empatia.

À medida que começar a se conectar com a nossa capacidade de se relacionar e sentir empatia e preocupação com os outros, podemos começar com os outros seres sencientes; o sofrimento dos animais nas mãos de seres humanos, crianças famintas ou pessoas sem-teto, uma mulher agredida, uma criança desaparecida.

Se nós nos sentamos com essas situações, podemos entender o sentimento de medo, dor ou temor que está intrinsecamente ligado a eles.

Podemos entender que há mais do que apenas a nossa família e amigos neste mundo que enfrentam os mesmos medos e dores que nós sentimos. Começamos a se relacionar com uma expressão maior da vida e da conectividade. Desejamos estes outros seres paz e liberdade.

Como os nossos sentimentos de compaixão começam a crescer, percebemos que a nossa capacidade de se conectar e se relacionar com outras pessoas tem se expandido muito.

As paredes que construímos para empurrar os outros para longe estão desmoronando.

Idéias de eu e eles estão começando a desaparecer.

Então, com isso, aumentamos a nossa prática para incluir pessoas que não necessariamente ligamos. As pessoas do sistema prisional; pessoas que sempre estão demonizado algum partido político contrário, ou mesmo aqueles que nos feriram. Eles também são capazes de sentir dor e medo. Eles sofrem e querem proteger seus entes queridos também. Suas ações, muito parecidas com as nossas, são uma projeção de seus medos e apegos.

Nós podemos sentar e lembrar como costumavamos nos sentir quando nosso mundo era pequeno – a noção de cuidar de ”mim” e do ”meu” e ”o resto que se vire”, que era isso.

Nossa idéia de compaixão cresceu e agora podemos ver como realmente somos semelhante a outros que só querem a mesma sensação de segurança, mesmo que a sua luta para encontrá-la pode ser prejudicial. Suas intenções são geralmente boas. Eles querem a liberdade tanto quanto nós.

Eles querem uma sensação de segurança em um mundo que só conhece constante mudança e fluxo. Talvez a sua dor não é tão diferente da nossa. E nós começamos a nos conectar. Começamos a sentir que o seu bem-estar, bem como o nosso, pode mudar a perspectiva de jogo. E assim, desejamos-lhes bem. Queremos ajudá-los a crescer e florescer.

Quando começamos nossa prática de tonglen, talvez esta mensagem não tenha sido algo que estávamos dispostos a entreter. Veio contra o nosso “instinto animal natural do olho por olho, matar ou ser morto.”

Como a nossa prática se aprofundou, vimos cada vez menos de uma necessidade de tais barreiras extremas entre nós e eles. A idéia de ”eu e os meus” diminuiu e uma sensação de verdadeira conexão com os outros floresceu. A idéia de assumir o ônus de um outro ser não parece ser uma idéia tão tola mais. Na verdade, parece que é o estado natural da nossa mente.

Como prática tonglen aprofunda e continua, e nossa interconexão torna-se óbvia, percebemos que nossas paredes caíram, nossas dores diminuíram, o nosso medo e angústia tornou-se quase inexistente e, vejam só, o que é essa coisa na minha cara?

Sim, é um sorriso. Em nossa busca para curar os outros, nós nos curamos. Nós abandonamos nossas delusões e falsidades e nós começamos a nos permitir ser totalmente abertos, totalmente conectados e totalmente amados.


Quando outra pessoa te faz sofrer, é porque ele sofre profundamente dentro de si mesmo, e seu sofrimento está transbordando. Ele não precisa de punição, ele precisa de ajuda.

Thich Nhat Hanh

Remando contra a maré, instruções precisas do Tonglen

A prática de tonglen reverte a lógica habitual de evitar o sofrimento e buscar o prazer. Nesse processo, nós nos libertamos de padrões muito antigos de egoísmo. Começamos a sentir amor, tanto por nós mesmos quanto pelos demais; passamos a cuidar de nós mesmos e dos outros. Tonglen desperta nossa compaixão e nos faz conhecer uma visão muito mais ampla da realidade.

Para sentir compaixão por outras pessoas, precisamos sentir compaixão por nós mesmos. Precisamos nos preocupar, principalmente, com as pessoas que sentem medo, raiva, inveja, que são dominadas por todo tipo de vício, que são arrogantes, orgulhosas, mesquinhas, egoístas, más — você pode escolher. Ter compaixão e carinho por elas significa não fugir da dor de encontrar essas características em si mesmo. De fato, toda a nossa atitude diante da dor pode mudar. Em vez de rechaçá-la e de nos escondermos dela, é possível abrir nosso coração e nos permitirmos sentir essa dor, senti-la como algo que nos abranda, purifica e nos torna muito mais amorosos e bondosos.

A prática de tonglen é um método para nos conectarmos com o sofrimento — nosso próprio sofrimento e o que nos rodeia onde quer que possamos ir. É um método que nos leva a superar nosso medo da dor e a dissolver a dureza de nosso coração. Acima de tudo, faz despertar a compaixão que é inerente a todos nós, não importa quanto possamos parecer cruéis ou frios.

Iniciamos essa prática recebendo em nós mesmos a dor de alguém que sabemos estar em sofrimento e desejamos ajudar. Se sabemos que uma criança está sofrendo, por exemplo, inspiramos essa dor, desejando que ela se liberte totalmente do pesar e do medo. Quando expiramos, enviamos felicidade, alegria, ou o que lhe traga alívio. Esta é a essência da prática: inspiramos a dor do outro, para que ele possa sentir-se bem e ter mais espaço para relaxar e abrir, e expiramos, transmitindo relaxamento ou aquilo que sentimos que pode trazer alívio e felicidade.

Freqüentemente, entretanto, não conseguimos realizar essa prática porque nos vemos frente a frente com nosso próprio medo, nossa resistência, raiva ou qualquer outro sofrimento pessoal que esteja presente.

Nesse momento, podemos mudar o foco e começar a praticar tonglen por aquilo que estamos sentindo e por milhares de pessoas que, como nós, naquele exato momento, sentem precisamente a mesma impotência e angústia. Talvez sejamos capazes de dar um nome à nossa dor. Reconhecemos claramente o terror, repulsa, raiva ou desejo e vingança. Então, inspiramos por aqueles que estão dominados pelas mesmas emoções e irradiamos alívio ou qualquer outra sensação que proporcione espaço para nós mesmos e para essas incontáveis pessoas. Às vezes, não conseguimos dar um nome ao que estamos sentindo. Mesmo assim, podemos perceber sua presença — um aperto no estômago, uma certa opressão ou o que quer que seja. Simplesmente entramos em contato com o que estamos sentindo e inspiramos, trazendo-o para dentro de nós e fazendo isso por todos. Então, enviamos para fora alívio para todos.

Diz-se, freqüentemente, que essa prática contraria o padrão costumeiro que usamos para não desmoronar. Na verdade, a prática de tonglen realmente se opõe à nossa tendência habitual de querer tudo ao nosso próprio modo, de desejar que tudo dê certo para nós, independente do que aconteça aos outros. Ela desfaz os muros que construímos ao redor de nosso coração, as camadas de autoproteção que lutamos tanto para criar. Usando uma linguagem budista, podemos dizer que dissolve a fixação e o apego do ego.

A prática de tonglen reverte a lógica habitual de evitar o sofrimento e buscar o prazer. Nesse processo, nós nos libertamos de padrões muito antigos de egoísmo. Começamos a sentir amor, tanto por nós mesmos como pelos demais; passamos a cuidar de nós mesmos e dos outros. Tonglen desperta nossa compaixão e nos faz conhecer uma visão muito mais ampla da realidade. Ele nos apresenta a amplidão ilimitada de shunyata. Quando o praticamos, começamos a nos conectar com a vasta dimensão de nosso ser. Inicialmente, deixamos de dar tanta importância a tudo e nossa experiência passa a ser menos sólida do que parecia.

A prática de tonglen pode ser feita para os que estão doentes, para os que estão morrendo ou já morreram, para todos aqueles que, de alguma forma, estão sofrendo. Tonglen pode ser praticado como uma meditação formal, ou em qualquer lugar e a qualquer momento. Estamos passando e vemos alguém em sofrimento — ali mesmo, começamos a inspirar essa dor e a exalar alívio. Ou então, ao ver alguém sofrendo, podemos desviar o olhar. Esse sofrimento desperta nosso medo ou raiva, nossa resistência e confusão. Portanto, naquele exato momento, podemos praticar tonglen por todas as pessoas que, assim como nós, desejam ser corajosas, mas são covardes. Em vez de nos punirmos, podemos usar nossos próprios entraves como o primeiro degrau para compreender o que outras pessoas, no mundo inteiro, estão enfrentando. Inspirar por todos nós e expirar por todos nós. Usar o que parece veneno como remédio. Podemos usar nosso sofrimento pessoal como um caminho em direção à compaixão por todos os seres.

Quando praticamos tonglen no momento em que nos deparamos com o sofrimento, apenas inspiramos e expiramos — inspiramos a dor, exalamos a amplidão e o alívio.

Quando praticamos tonglen como uma meditação formal, devemos seguir quatro passos:

1. Em primeiro lugar, descanse sua mente por alguns segundos em um estado de abertura ou quietude. Esse estágio é tradicionalmente chamado de lampejo do bodhichitta absoluto, ou de súbita abertura à amplidão e clareza fundamentais.

2. Em seguida, trabalhe com a textura. Inspire o calor, a escuridão e o peso — a sensação de claustrofobia — e expire serenidade, claridade e leveza — a sensação de frescor. Inspire profundamente, por todos os poros, e expire, irradie completamente, usando todos os poros de seu corpo. Faça isso até que essas sensações estejam sincronizadas com sua inspiração e expiração.

3. No passo seguinte, trabalhe uma situação pessoal — qualquer situação dolorosa que seja real para você. Tradicionalmente, começa-se praticando tonglen por alguém com quem nos preocupamos e que queremos ajudar. Entretanto, como já mencionei, quando seus próprios problemas o impedem de prosseguir, você pode realizar a prática pela dor que está sentindo e, simultaneamente, por todos aqueles que, como você, passam pelo mesmo tipo de sofrimento. Por exemplo, se está se sentindo incapaz, inspire essa sensação, por si mesmo e pelos outros que estão no mesmo barco, e exale confiança, sentimento de ser capaz ou de alívio, da forma que desejar.

4. Finalmente, torne esse processo mais abrangente. Se você está praticando tonglen por alguém que ama, estenda a prática a todos aqueles por quem nutre o mesmo sentimento. Se está praticando por alguém que viu na televisão ou na rua, faça o mesmo por todos os que estão em situação semelhante. Não se limite a uma única pessoa. Talvez já seja suficiente praticar por todos aqueles que, como você, estão dominados pela raiva, medo, ou por qualquer outro sentimento que também o aprisione. Entretanto, em todos esses casos, você pode ir além. Você pode praticar tonglen por aqueles que considera inimigos — aqueles que o ferem ou ferem alguém. Faça tonglen por eles, pense neles como dominados pela mesma confusão e impotência que vê em si mesmo e naqueles que ama. Inspire a dor deles, expire alívio.

A prática de tonglen pode ser infinitamente ampliada. À medida que pratica, gradualmente e ao longo do tempo, verá que sua compaixão naturalmente se expande, e o mesmo acontece com a percepção de que as coisas não são tão sólidas quanto você pensava. À medida que pratica, gradualmente e em seu próprio ritmo, ficará surpreso ao perceber-se cada vez mais capaz de ajudar os outros, mesmo em situações que pareciam insolúveis.

Pema Chödrön, no livro ”Quando tudo se desfaz”
Tradução de Helenice Gouvêa. Rio de Janeiro: Gryphus, 1999, p. 99-103.

“Quando você se encontra preso em si mesmo, o Tonglen abre o seu ser para a verdade do sofrimento dos outros; quando o seu coração está bloqueado, o Tonglen destrói as forças que o obstruem, e quando se sente distante de quem está sofrendo diante de você, ou tomado pela amargura e o desespero, o Tonglen o ajuda a encontrar em si mesmo e revelar a radiância amorosa e expansiva da sua verdadeira natureza.”  Sogyal Rinpoche

A imagem que ilustra o post é uma dança chamada ‘Guanyin de Mil Mãos e Mil Olhos’, representação de Avalokiteshvara ou Chenrezig, o Buda da Compaixão, ele tem mil braços, com um olho na palma de cada mão, demonstrando que olha e cuida de infinitos seres vivos. Chenrezig está dentro de nós porque o amor e a compaixão não são qualidades adicionadas à mente. Estas qualidades são parte do estado desperto da mente, mesmo que no momento este estado exista somente como um potencial em nós. Cada pessoa cujo coração é movido pelo amor e pela compaixão, que age profunda e sinceramente pelo benefício de todos, sem interesse para a fama, o lucro, a posição social ou reconhecimento, expressam a atividade de Chenrezig. 

 

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