Eternalismo, niilismo e outros extremos Padma Dorje

Quando falamos em Caminho do Meio no contexto budista, podemos estar nos referindo a várias coisas. No Cânone Páli o Buda fala de um caminho do meio de moderação entre os excessos do ascetismo e da vida desregrada, totalmente entregue aos prazeres sensoriais. O sábio assim evita buscar, evitar ou ser indiferente quanto aos prazeres e dores que certamente encontrará, e leva uma vida parcimoniosa, temperada, sem excessos.

Isso se estende ao relacionamento com a prática budista de forma geral, e em particular com a prática de meditação. Praticar o budismo não é relaxar simplesmente, nem fazer esforço demasiado. A prática tem um ponto ideal de descontração focada, e de esforço como presença e atitude; não é uma disciplina forçada e também não é uma atitude largada, displicente.

No entanto, esta faceta de moderação, ainda que evidentemente importante na experiência de todo praticante, é, de forma geral um aspecto menor dos ensinamentos. Em comparação com os vários tipos de vieses cognitivos e enganos possíveis, tanto em termos de nossas visões usuais e preconceitos quanto ao mundo, quanto de possibilidades de entendimento equivocado do próprio darma, é crucial desenvolvermos uma visão mais sofisticada do que entendemos por caminho do meio. A moderação é necessária e faz parte da noção mais fundamental de caminho do meio, mas, quando buscamos um aprofundamento, precisamos ir além dela.

Quando falamos em “extremos” estamos nos referindo a enganos cognitivos e vieses. São tidos como “extremos” aquelas coisas que solidificam entendimentos. O “além dos extremos”, portanto, não é um mero meio-termo, uma posição que compromete os dois lados em busca de uma síntese apaziguadora. Trata-se, pelo contrário, de uma superação das limitações aparentes, na direção de uma solução não postulada, inesperada – uma possibilidade desimpedida, que efetivamente transcende as limitações cognitivas da reificação através de negação e afirmação.

Nossa tendência usual, quando confrontados com uma aparente ausência de alternativas, é postular a possibilidade com base nos limites concebidos em termos dessa ausência que se apresenta, e da estrutura cognitiva que formulou isso, que enfim, parece um beco sem saída. Então, depois de entender que afirmar (1) e negar (2) não funcionam, vamos além da posição que tenta afirmar mais ou menos, e negar mais ou menos, atingindo uma síntese de visões – uma posição que tenta usar uma estratégia em que afirmação e negação seriam, em certo sentido, possíveis simultaneamente (3) –, e então vamos além até mesmo da fuga pela justificação de que nem uma nem a outra coisa funcionam (4).

O Segundo Buda, o auriga Nagarjuna, postulou então esse tetralema – afirmação, negação, ambas e nenhuma, advindos da lógica indiana clássica disponível – como extremos a serem evitados. Ou seja, dos extremos simples, sim e não, proliferam-se extremos embasados nessas alternativas: tanto sim quanto não (vale tudo), e nem sim nem não (nada serve). E da aplicação de um algoritmo combinatório, surge uma progressão exponencial de extremos. Dois extremos, quatro extremos, dezesseis extremos, e assim por diante.

A essência de qualquer extremo, é claro, é a reificação, a fixação, a solidificação de hábitos e padrões – particularmente através do pensamento e da linguagem, que se apresentam com estruturas subjacentes que naturalmente tentam se autossustentar, e que são embasadas nesses hábitos e padrões.

Isso tudo pode parecer abstrato em demasia, afinal, saímos de uma questão iminentemente prática, que era, digamos, comer para preservar a saúde, nem mortificando o corpo, nem se entregando a prazeres. Porém, segundo o budismo, todos nós seres comuns, ignorantes, nos envolvemos cognitivamente com o mundo através desses quatro extremos. E não só com alimentação, ou quaisquer ações cotidianas em que nos engajamos, mas na própria estrutura cognitiva montada por camada após camada de reforço de hábitos em termos de estados mentais, emoções e justificações.

Portanto, no fim das contas, talvez seja útil entender algumas coisas extremamente abstratas – e talvez seja possível aplicar esse conhecimento sutil na prática, tanto formal quanto cotidiana. Quando a coisa entra em nesse nível mais cognitivo e basal, qual é o objeto negado, afirmado, assim por diante? E qual é a “vantagem” por assim dizer, de manter o caminho do meio, evitando aplicar o tetralema a esse objeto?

O objeto “por excelência” a que o tetralema normalmente parece se aplicar (porque somos seres ignorantes e não Budas) e no fundo não se aplica (na mente de um Buda, que vê as coisas como são) é essencialmente a coisa que existe “por si só”: autoexistência, essência, a “coisa em si”. (E isso inclui o objeto formulado por Kant – o que fica ateste no fato de que as traduções do darma frequentemente usurpam nomenclatura da filosofia iluminista – mas não apenas, porque na visão do darma as coisas não só dependem de um observador, mas umas das outras, e internamente de suas partes – embora de fato a visão com relação a um observador seja a mais importante ou sofisticada).

De modo geral, o tetralema pode ser aplicado a qualquer objeto, qualquer separatividade ou fixação, mas podemos usar essa “coisa autoexistente” – ou até mesmo essência, substância ou realidade externa – como referência principal.

Nossa tendência basal, como seres ignorantes, é o modo da afirmação. Assim, todo o uso comum da linguagem, e de nossa percepção sensorial, está orientado para reificar as coisas como realmente existindo do modo que se apresentam, embora nem efetivamente reflitamos sobre alguma diferença, ao estilo de papo filosófico, entre algo que seria real, e algo que seria aparente. Essa é uma sofisticação que gente pensante ocasionalmente coloca em livros e textos como esse – enquanto essa mesma gente pensante segue operando automaticamente sem considerar muito esta distinção, a não ser em casos bem raros.

Resumindo, costumamos atribuir uma qualidade de autoexistência independente, inerente, às coisas. Por isso dizemos que o modo usual do mundo é a “afirmação”. Podemos dizer que alguém muito paranoico duvida de tudo e todos, e que, portanto, nega. Porém, se formos analisar o que significa delusão nesse caso, quer dizer que essa pessoa acredita muito fortemente numa versão dos fatos que, para quase qualquer um, não faz sentido algum – e não é nem uma possibilidade. Então, sejamos paranoicos ou não, temos uma versão dos fatos operando, funcionando, por hábito, e não duvidamos nem um pouco dela.

Nossa tendência é aceitar as coisas “como se apresentam”, de forma separada, a partir do que necessariamente desenvolvemos uma atitude de apego, aversão ou indiferença com relação a elas. Num sentido global, sentimos medo ou esperança num aspecto existencial. Mesmo coisas bastante abstratas, como nosso senso de identidade pessoal, são reificadas dessa forma. A maior parte da cultura, ao longo da história, também provê “garantias” da verdadeira existência sólida de tudo: a noção de um criador, de uma alma pessoal, reconhecimento de firma, credenciais acadêmicas, agências de classificação de risco de crédito, atestados médicos, comprovantes de residência, dicionários, e assim por diante. Qualquer coisa que pareça fixar, representar ou estabelecer um estado de coisas.

E aqui, claro, não se está fazendo uma crítica a todas essas coisas, mas ao engano básico que atribui a elas algo mais do que elas podem fornecer. Elas fornecem alguma garantia, de algum tipo, com ressalvas. Elas jamais são garantia absoluta, ou reconforto verdadeiro – e vez após vez percebemos que quebramos a cara por acreditar que são.

Em modo clássico, o tetralema é aplicado para demonstrar o absurdo de noções tais como origem (gênesis), essência e permanência (inalterabilidade). Estas sendo a raiz mais filosófica dos tipos de reificação cotidiana a que sucumbimos, embasados na noção de realidade inerente, essência ou existência independente; todos enganos que, segundo o Buda, são a fonte verdadeira do sofrimento – a insatisfatoriedade inerente a tudo que é composto, isto é, é postulado como um objeto separado, tido como inalterável ou a que nos apegamos, sustentamos aversão ou manifestamos indiferença.

Quando falamos de nossa percepção sensorial, filtrada pela ignorância básica, avidya, projetando um sujeito e um objeto, chamamos isso de realismo. O realismo é o modo usual de operação no mundo, e é a partir dele que a linguagem se constitui – e mais do que isso, hoje em dia ele é o modo prevalente (ainda que não necessário) de operação da ciência.

Em termos tradicionais ou históricos, quando o realismo se instrumenta com “revelação espiritual” ou “filosofia”, surge a versão composta dele que no budismo chamamos de eternalismo. O eternalismo é o realismo que ganha noções abstratas tais como Deus, alma e essência para ancorar ou tentar prover lastro para as dificuldades inerentes à linguagem em sua tentativa de representar acuradamente o mundo, ou simplesmente para nossas necessidades psicológicas. Ansiamos “um chão sobre os pés”, algum tipo de garantia de que as coisas são como se apresentam, e que se fizermos tudo que se espera de nós, tudo sempre dará certo. Ou que pelo menos, no mínimo, o sonho dos filósofos, poderemos explicar ou representar as coisas acuradamente em algum sentido definitivo e não expediente de “acurado”.

A vasta maioria das pessoas ao longo da história, em todas as culturas, tem operado de acordo com realismo e eternalismo, sendo o primeiro justificado pela operação habitual, evolucionária, dos sentidos, e o segundo pela validação psicológica dessa operação habitual. No entanto, como ‘as coisas como elas realmente são’ não se conformam, num sentido último, à operação contingente de nossas prerrogativas biológicas, e às justificações culturais que damos para essas prerrogativas, surge uma enorme tensão entre as contingências e qualquer tipo de sentido que lhes tentamos prover. Nossa percepção e inteligência são habituadas para sobrevivência, não para prover sentido.

A solução além dos extremos é encontrar a fonte não arbitrária de todas as contingências (o que inclui a linguagem, e até a própria operação usual dos sentidos físicos e da mente), não cair nas justificações expedientes e imperfeitas ligadas a contingências, e usufruir o sentido definitivo além de arbitrariedades – a única perspectiva de total desembaraço, que nos livra definitivamente do sofrimento. O estado de um Buda perfeitamente iluminado, acessível a qualquer ser.

O caminho do meio considera o realismo (na sua variante eternalista ou teísta) o extremo mais comum, em que a maioria dos seres ignorantes se perde. Ele refere-se ao primeiro item do tetralema, afirmação. Psicologicamente ele tem uma dimensão de esperança frívola, e politicamente ele se refere à manutenção do status quo.

Devido a essa ser a tendência mais forte em todos nós e ao longo da história, o budismo em si é frequentemente associado com o segundo extremo: negação. E, de fato, a maior parte do discurso budista visa refutar o eu, a noção de um criador, a noção de permanência, a noção de separação, etc. – o budismo aparentemente está o tempo todo negando as crenças mais comuns, e nosso modo de operação usual. Assim o budismo é, desde seus debates com o hinduísmo, e mesmo hoje em contato com as tradições teístas ocidentais, acusado de ser niilista – com inclusive emoções associadas de pessimismo, e enfim, negatividade quanto à vida e à existência, o que são acusações absolutamente ultrajantes, especialmente se considerada a vastidão de formas de apresentação do darma, que na sua grande maioria são alegres, engajadas e em contato direto com o mundo e as necessidades dos seres.

O fato do budismo algumas vezes frisar a negação se dá mais pelo nosso apego a nossos próprios hábitos, e à justificação de nossos hábitos, do que propriamente algum tipo de mau-humor ou má-vontade budistas. Essa perspectiva é projetada no budismo, de fato, porque os castelos de cartas das visões eternalistas e realistas, que a princípio podem até parecer muito imponentes em suas estruturações, rapidamente se mostram obviamente profundamente instáveis em sua natureza real. Nossas perspectivas usuais são cheias de furos e contradições – mas furos e contradições aconchegantes, a que estamos acostumados. O realismo, plenamente injustificado e cheio de incongruências, é nossa zona de conforto. Vislumbrar a possibilidade de desafiar essas noções, ou aceitar que um modo de vida exista em que tais noções não são reforçadas, pode, portanto, de fato soar bastante amedrontador. Aqueles, em particular, que defendem filosofias ou ideias religiosas constituídas de castelos de cartas argumentativos veem no budismo um oponente tão radical e arguto que nada resta a eles, em seu pavor, senão proliferar difamação infundada.

E aqui é necessário entender um ponto crucial dos ensinamentos, que é a existência de ensinamentos provisórios ou expedientes, bem como de ensinamentos definitivos. Quando alguém apresenta fortes tendências realistas (e também eternalistas, teístas, essencialistas) é compreensível que a refutação desses hábitos cognitivos tenha, para essa pessoa, uma aparência niilista. E, ao observarmos o que os mestres budistas muitas vezes falam, percebemos que muitas vezes soam proferir uma negação absoluta, constante, cortante – talvez até um tanto mal-humorada. Pelo menos no período posterior a sermos fisgados, quando cessam os sorrisos de boas-vindas; isto é, quando acordamos da anestesia e descobrimos nossos hábitos arraigados expostos na mesa de cirurgia, em franco processo de desconfortável extirpação.

Porém, tão logo alguém reclame que o budismo pega muito no pé, está sempre tentando ser diferentão, chato – negando tantas coisas que parecem tão legais, como apego, Deus, o indivíduo, e a tendência tão natural de reificar através da percepção e da linguagem – surge essa perspectiva que nega também a negação. Em seguida tentamos fazer um compromisso entre as visões de negação e afirmação, e isso só funciona até certo ponto; enfim, tentamos desistir das duas, ao que isso também se mostra frívolo.

Para o budismo, o único ensinamento que é definitivo é o que transcende qualquer maquinação em termos dos extremos de negação, afirmação, ambas e nenhuma. Os outros ensinamentos são uma tentativa de usar um dos extremos para aniquilar o outro, e quando há um reforço de visões extremas, chamamos isso de “visão errônea”, que é o oposto de um ensinamento que provê liberdade e esclarecimento. Quando nossa mente não se prende em nenhum hábito cognitivo arraigado, ela é finalmente livre, e isso é chamado de “onisciência”, uma característica da mente do Buda. Não se trata de onisciência num sentido extremista, em que todos os conteúdos estão presentes, mas é sim um espaço nítido e bem iluminado onde tudo se apresenta como é. Profunda lucidez sem possibilidade de engano.

Quando estamos assistindo um filme e uma cena nos provoca muito medo ou repulsa, estamos no primeiro extremo. Então, como antídoto, olhamos para a sala ao redor, e pensamos “isso é só um filme”. Só então nos damos conta de que parte da graça de assistir a um filme é justamente se descobrir envolvido por ele, e ansiamos por nos deixar iludir ao mesmo tempo em que hesitamos nos entregar à ilusão; gostamos de resguardar a possibilidade de saber que é um filme, caso o monstro salte da barriga de novo e a coisa fique muito difícil na tela. Essa atitude ambivalente pode ser útil, mas no fundo, nem escapamos direito do monstro, nem aproveitamos tão bem o filme. Enfim, podemos ter uma atitude em que nem o conteúdo do filme, nem o fato de que ele é só um filme, e vai acabar daqui a pouco, realmente importam, e com isso, pior ainda, não aproveitamos nem o filme, nem o fato de que é apenas um filme.

E qual é a atitude correta? Ora, qualquer tentativa de formular uma resposta recai novamente nos quatro extremos. A atitude correta é estar além dos quatro extremos, sem formulações remanescentes, sem artificialidades, totalmente lúcidos. E o que é isso? É não se enganar. A não ser quando nos deixamos iludir por diversão, e assim por diante, e novamente nos embaraçamos em justificações… “ou não…”: justificação não é uma honestidade, necessariamente, aliás, raramente é. Qualquer disposição cognitiva a que possamos nos aferrar e que possamos descrever como um tipo de conclusão ou garantia vai acabar nos enredando novamente. Então evitamos os extremos. Quer dizer… evitamos também evitar, não evitar, tanto evitar quanto não evitar, e nem evitar nem não evitar. E assim por diante.

Trata-se de um estado de liberdade radical.

Não deixamos a mente se afincar a nenhuma resposta ou fórmula, e nem mesmo a alguma sensação ou experiência – como a noção de “agora entendi” – e quando a liberdade perante tudo isso se torna uma fixação, abandonamos a tentativa de abandonar, aceitamos que a mente por si só, naturalmente, não tem lastro. Inteligência não é concatenar pedaços de informações e reproduzir um algoritmo, chegando a uma conclusão, algum output qualquer. Inteligência é a própria natureza além dos extremos, fervorosa e vívida, livre da fixação em sujeito e objeto.

Assim, podemos estar um pouco desconfiados dessa abordagem, mas já entendemos mais ou menos que 1) tudo que se tenta com esperteza ou esforço bruto não dará certo; 2) abordagens bastante erradas podem ser dirimidas por abordagens um pouco menos erradas; 3) não importa tanto definir o resultado, mas sim eliminar tudo que nos impede de ver mais claramente, reconhecer possibilidades e criar livremente.

Vamos então fazer um segundo exame dos extremos, dessa vez examinando seu valor relativo, isto é, o valor de um extremo quando usado para produzir liberdade perante outro extremo.

O antídoto para o eternalismo e o realismo é a negação de uma coisa autoexistente, que exista por si só, independentemente. Aqui introduzimos a palavra vacuidade, no que ela tem de sentido mais literal. As coisas são vazias do que? De algo que exista por si só. Nada mais, nada menos que isso. Como os gendenpas sempre dizem, “a xícara não é vazia de xícara, ela é vazia de existência inerente”. (É claro, quando acaba o chá, a xícara é vazia em ainda um terceiro sentido, mas isso é irrelevante para essa discussão.)

A xícara está lá, ela só não está lá como algo além de sua mera aparência. Nossa tendência usual, no entanto, é olhar para o objeto, rotulá-lo como xícara, e apreendê-lo na mente como algo. Caso tenhamos alguma agudez filosófica, postulamos algo que existe separadamente de como se apresenta, de algum modo esotérico.

Então, se vacuidade é apenas a ausência de uma visão errônea, o reconhecimento de que as coisas não possuem uma essência ou lastro, e que não existem independentemente umas das outras e da consciência de um observador, vacuidade não é, portanto, nada além da própria sabedoria. O objeto que é reconhecido como necessariamente não independente, que não é, portanto, reconhecido como um objeto, é a própria capacidade da mente em ver a si própria. Como não há um objeto nas coisas, ou na realidade, a que se possa chamar de “vazio”, a própria vacuidade é vazia, e o reconhecimento das coisas como elas são naturalmente não é separado do próprio estado natural das coisas.

Porém, os jonangpas não ficam felizes com as coisas colocadas dessa forma. Para eles, a vacuidade como uma mera ausência de inerência é apenas uma proposição expediente, para combater o eternalismo. A vacuidade no seu sentido definitivo, é claro, é o resultado que está além dos extremos. E nisso, obviamente, há uma presença inteligente. Retirar todos os obstáculos à visão plena não poderia ser negar o que se apresenta. E porque não – já que estamos confessamente usando a linguagem naturalmente falha para estabelecer o que está além dos conceitos – simplesmente afirmar essa sabedoria primordial, essa cognição autorreflexiva prístina, como a própria natureza da realidade? Então, nessa perspectiva, a vacuidade ela mesma, é a única coisa que existe inerentemente, além dos conceitos e dos extremos.

Afirmar também tem seu valor, particularmente quando todo mundo ao seu redor parece estar um pouco fixado demais na negação.

Embora, estritamente falando, no fundo esta seja só uma opção pedagógica entre tantas outras, criticável e louvável em vários sentidos, isso causou um bocado de problemas para os jonangpas – que foram dizimados quase ao ponto de extinção pela escola com mais força política no Tibete (que aparentemente usou essa doutrina como desculpa para o ataque, segundo Sua Santidade o XIV Dalai Lama).

Ora, da mesma forma que os hindus e outros teístas acusam o budismo de niilismo, a acusação favorita entre budistas é, justamente, a de eternalismo. As escolas hinayana são acusadas de sustentarem o realismo, e a cittamatra é acusada de reificar a própria mente como algo que existe independentemente. E mesmo a cittamatra claramente afirmando não postular isso, os eruditos da madhyamaka demonstram, por necessidade lógica, que a cittamatra recai nessa postulação. No budismo é bastante grave reificar algo – e os tratados estão cheios de “parece reificar, mas veja bem, na verdade o que estou afirmando não reifica nada”. Negar, embora também um extremo reconhecido por todos, é algo relativamente mais aceitável – e isso porque nossa tendência usual é o eternalismo, a natureza usual do mundo é reificar afirmativamente. Então negar, entre budistas, é relativamente mais seguro.

De fato, o mais seguro, em termos do uso da linguagem no modo argumentativo, é o que se chama “negação não assertiva” ou “negativa não afirmativa”, em que se nega sem explicitamente postular algo que possa ser configurado como negação. É um dos jeitos de escapar dos extremos, e um jeito bastante hábil em termos da natureza do discurso e do debate. O professor não apresenta nada, ele apenas mostra que o que você traz não dá certo. Ele está negando algo? Só o que você inventou: da parte dele ele não apresentou um objeto para então produzir uma negação.

Como já estamos cientes da existência da noção de ensinamentos expedientes e definitivos, precisamos agora estender essas noções aprofundando a questão da lógica e da linguagem. O darma sagrado é realizado, proferido, internalizado e realizado novamente. Idealmente, os dois primeiros âmbitos ocorrem no Buda que se dirige a seres sencientes comuns, e os dois últimos ocorrem nos seres sencientes comuns que vêm a reconhecer sua própria natureza de buda, e assim revelarem-se como também budas. Nos ensinamentos tântricos são descritos três níveis de ensinamento: mente-a-mente, simbólico e oral. Os ensinamentos mente-a-mente dizem respeito ao reconhecimento da inseparatividade que é a realidade última. Os ensinamentos simbólicos dizem respeito ao uso de meios hábeis tais como oferecer uma flor: gestos, situações e circunstâncias com um sabor simultaneamente espontâneo e deliberado, que apontam o sentido definitivo com uma artificialidade pura, requintada. Já os ensinamentos orais são simples explicações, artificiais, um tanto grosseiros, e absolutamente customizados para nossas habituações contingentes. Quanto mais afogados em visões errôneas, menos receptivos os seres, e, assim, os ensinamentos orais são para seres comuns, os ensinamentos simbólicos para seres nobres (que já tiveram um lampejo da vacuidade), e os ensinamentos mente-a-mente para quase budas.

Porém, os budas não deliberam maquiavelicamente “este ser inferior necessita um ensinamento oral expediente”, eles simplesmente oferecem simultânea e incessantemente todos os níveis. É o acúmen de quem ouve e interpreta que vai determinar as categorias – e todos os sutras começam com “assim eu ouvi” – não se trata das palavras do Buda como um registro eternalista, essencialista, permanente, unilateral: o registro surge da interdependência de um ouvinte particular com um ensinamento particular que o Buda concedeu.

Os gendenpas (principalmente) e outras escolas tibetanas diferem (em debates que se tornaram clássicos no milieu tibetano nos últimos 400 ou 500 anos, seguiram bem vivos no século XX, e agora no século XXI persistem até em línguas ocidentais) sobre o uso da linguagem e da lógica na apresentação de ensinamentos, bem como sobre que conjuntos de textos se referem a ensinamentos definitivos e expedientes, e sobre a natureza do que se chama “segunda e terceira voltas do darma”. Há uma pletora de sutilezas e uma variedade imensa de posições no que concerne esse tópico, bastante complexo porque também encampa parte da semântica utilizada – cada tradição usa os mesmos termos, só que com espectros de sentido de intersecção desfocada; em parte as palavras dizem quase as mesmas coisas, mas surgem distinções relevantes no mero uso do vocabulário.

Antes de explicar brevemente essas três discussões (uso da linguagem, expediência, voltas do darma) em termos do extremo da negação, é preciso talvez fazer uma avaliação breve sobre mudanças próprias da modernidade, e do mundo globalizado.

Embora o realismo siga extremamente forte na noosfera, com todo o poder político da classe científica – e com o fato de que a própria metafísica se torna um estudo em “alternativas para o realismo” (como se o realismo, e seus filhos fisicalismo e materialismo, estivessem garantidos, e não demonstrassem justificações metafísicas tão arbitrárias e relativamente furadas quanto as outras!), o niilismo ganha, a partir do século XX, um apelo popular. Portanto, não são incomuns visões niilistas vinculadas ao realismo, e obviamente também ao fisicalismo e materialismo. Em outras palavras, o século XX viu o nascimento, ou pelo menos a proliferação, de versões niilistas do realismo – que antes estava principalmente, ou apenas, vinculado a visões teístas.

Isso se deve ao abandono da perspectiva científica pré-moderna, em que coisas como matemática e física serviam como uma “ioga” para entender a mente de Deus por meio de sua criação. Quando a ideia de Deus começa a ser desvinculada da ciência, a partir do séc. XIX e progressivamente cada vez mais no séc. XX, é que nascem as formas niilistas de realismo.

Cabe aqui recapitular estes pares de extremos filosóficos: realismo se contrapõe a idealismo, niilismo se contrapõe a eternalismo. O niilismo realista reifica a realidade externa e retira todo sentido de qualquer coisa, particularmente reduzindo o sujeito a uma parte relativamente “mecânica” ou ao menos extremamente arbitrária, dessa “realidade”. O sujeito se torna um nada, um saco de carne cujo mundo interior deve ser reconhecido como apenas uma secreção, tal como a bílis. A grande maioria das pessoas no mundo hoje subscreve a essa visão, algumas com alguns momentos raros de eternalismo clássico, em que projetam sentido em algum monstro do espaguete – e pelo menos essa projeção, nos raros momentos que ocorre, espelha, imperfeita e pobremente, algo do reconhecimento de alguma presença lúcida qualquer em algum lugar no espaço.

Realismo e idealismo são termos aqui usados em suas acepções comuns, da filosofia ocidental, e se apresentam relativamente íntegros nessas formas, em vários estilos de budismo. A vaibhasika, uma forma de hinayana comum nas refutações mahayana da índia clássica, é tida como claramente realista – e não se importaria com a classificação. A cittamatra, uma forma de mahayana comum nas refutações madhyamaka (caminho do meio) da índia clássica, é claramente idealista, e o próprio nome dela indica que ela não tem vergonha do idealismo – cittamatra quer dizer “apenas mente”. (Por outro lado a existência da cittamatra é muitas vezes posta em dúvida: para alguns é apenas um espantalho feito com base em argumentos descontextualizados da yogachara).

Já niilismo e eternalismo são aqui usados em suas acepções budistas, a saber, niilismo diz respeito a materialismo (como na escola clássica não ortodoxa hindu charvaka), em que não se aceita renascimento ou carma – equivalente a, por exemplo, visões da ciência em que não há causa inicial, ou há uma causa não causada, ou em que a base de tudo é contingente (aleatória), ainda que relações causais sejam consideradas possíveis “na sequência”. Já eternalismo é a visão clássica do hinduísmo ortodoxo védico, em que a deidade é infinita e perene – em que há um criador. Nenhuma forma de budismo aceita ser confundida com niilismo ou eternalismo – são extremos não aceitáveis para nenhuma forma de budismo. Ocasionalmente uma ou outra forma é acusada de estar explicando o darma de uma forma que leva a uma conclusão lógica necessária niilista ou eternalista – e isso é uma acusação grave que indica que a escola não está em acordo com os ensinamentos do Buda. E ela sem dúvida vai se defender disso. É a “prova dos nove” se algo é um ensinamento autêntico ou não: se ele é eternalista ou niilista, não é ensinamento do Buda.

Portanto, levando tudo isso em conta, e o fato de que o budismo não aceita nenhuma forma de eternalismo ou niilismo (teísmo ou materialismo, para simplificar), e que na sociedade de hoje eternalismo e niilismo coexistem em níveis significativos, uma atitude budista talvez válida poderia ser simplesmente deixar essas visões errôneas destruírem uma à outra. No entanto, todo professor budista precisa lidar com as tendências de seus alunos, e as suas próprias, de participar nas visões eternalistas ou niilistas prevalentes na cultura.

É preciso entender também que seria equivocado para um budista usar visões francamente niilistas ou eternalistas como supostos ensinamentos expedientes. Digamos, usar o materialismo que nega carma para atacar a crença num criador – ambas são visões errôneas, mas seria bastante complicado simplesmente substituir uma praga por outra.

Ainda assim, num sentido amplo, o que o budismo oferece como “produtos genéricos” para combater niilismo e eternalismo são as ideias de natureza de buda e vacuidade. Estas noções não são, na perspectiva do caminho do meio (ou mesmo de outras escolas mahayana), visões errôneas, mas em certo sentido elas espelham os impulsos psicológicos das visões errôneas que pretendem substituir.

É aqui que encontramos as controvérsias próprias da madhyamaka e, posteriormente, também do tantra. A saber, entre vacuidade e natureza de buda – que se referem a conjuntos de textos e linhagens advindas dos aurigas Arya Nagarjuna e Arya Asanga –, qual ensinamento é expediente e qual é definitivo?

Os três giros são um ensinamento tradicional yogachara, aceito por todas as formas de budismo tibetano, que explica que o Buda ensinou o darma em três etapas. Na sua primeira descrição, pelos yogacharas, é óbvio que a visão yogachara é apresentada como a definitiva, superior e mais sutil.

Então temos as visões próprias do caminho do meio. “Caminho do meio” não é só uma expressão budista, mas é um termo identificado como o nome de uma escola, a madhyamaka. No Tibete todas as escolas descendem de yogachara e madhyamaka, e os textos dessas duas escolas são aceitos como fontes fidedignas dos ensinamentos do Buda. Ainda assim, várias visões sobre a posição mútua desses ensinamentos são expostas.

Uma dessas visões tibetanas afirma que a natureza de buda do terceiro giro é a característica central dos ensinamentos definitivos do mahayana. O segundo giro seria focado nos ensinamentos sobre vacuidade de Nagarjuna, e tido como apresentação expediente.

Outra versão dos fatos diz que os ensinamentos sobre vacuidade possuem um aspecto expediente, ligado a uma lógica privada, e um aspecto definitivo, associado a uma lógica meramente pública, sem essência ou lastro. Isto é, os ensinamentos do segundo giro podem ser apresentados como uma consequência contingente de argumentos, vindas de uma tradição, ou podem ser apresentados como uma mera ausência de lastro argumentativo (uma ausência de tese, não de “finalidade”, no argumento) que refutando ao absurdo quaisquer premissas, naturalmente deixa desnuda a natureza da linguagem (sempre expediente) e da realidade como algo não conceitual. Essa não conceptualidade, primeiro provada em refutação de todos os conceitos possíveis, e depois vivenciada em meditação, é a abordagem definitiva, a tal “negativa não assertiva”. A natureza de buda, a característica central do terceiro giro seria o ensinamento expediente.

Há ainda uma terceira visão, mais inusitada e recente, que coloca o idealismo yogachara como ensinamento expediente do terceiro giro. O segundo giro ficando associado com qualquer refino analítico, também tendo uma versão expediente (com lógica de lastro privado) e definitiva (mero uso do argumento do oponente). A perspectiva definitiva do terceiro giro é uma versão de além dos extremos que implica união – não uma síntese ou compromisso – de natureza de buda e vacuidade/aparências. Nesta versão, a separação entre expediente e definitivo é vista como meramente expediente. Por exemplo, embora seja útil em termos expedientes ocasionalmente falar em relativo e absoluto, relativo e absoluto só existem em relação um ao outro. Portanto, na visão absoluta do terceiro giro não há relativo e absoluto. Isso permite que “negativa assertiva” seja a visão expediente do segundo giro, e a asserção não conceitual, a capacidade autorreflexiva da mente como natureza de buda, seja a visão expediente do terceiro giro.

Aqui logo nos deparamos com outra dicotomia clássica em extremos, comum ao budismo: estudo ou prática. É importante entender que a ênfase em cada um desses modos produz visões filosóficas correspondentes. Explicitamente, todos aceitam que ambas as coisas são necessárias, e que colaboram uma com a outra – embora na prática o que é tomado como tempo adequado para se aplicar em estudo ou meditação varie astronomicamente. Há quem passe a vida em retiro, e pouco se dedique a ler ou debater, e há quem estude a vida toda, com algumas meditações esparsas. E muitas vezes se ouve comentários jocosos sobre como tem gente que perde tempo com a abordagem diferente da de quem, ora, está comentando.

O que ocorre é que algumas perspectivas budistas contemporâneas que prezam o estudo acabam tomando o realismo como base de seus ensinamentos expedientes. Embora, estritamente falando – quase todos os mahayanista concordam – o aspecto definitivo do caminho do meio esteja além de postular o realismo ou o idealismo, o aspecto expediente apresenta grande diferença dependendo do que é considerado prioridade, se prática ou estudo (e não só estudo, mas debate e diálogo inter-religioso). O realismo é, acima de tudo, a visão pragmática dos comerciantes – a realpolitik do que na índia clássica se chamava de “perspectiva do vaqueiro”, isto é, a perspectiva de alguém envolvido com gerenciar produção de leite. Acordar cedo, alimentar vacas, tirar o leite, vender, dormir: lave e repita.

Pode parecer contraintuitivo que os filósofos no budismo anseiem tanto por essa visão de “gente como a gente”, mas, por outro lado, “os opostos se atraem”. Na filosofia budista, tudo é reduzido à vacuidade, o que a princípio parece nada prático. Parece romântico (o que algumas vezes ganha um sentido próprio de “idealista”), ficar “reduzindo” as aparências a uma “não existência inerente”. Mas a perspectiva de Chandrakirti, tão prezada pelos tibetanos, é que a vacuidade é prática – as coisas não precisam ser analisadas, elas já são vacuidade como são. E a visão ordinária, pragmática, do mundo, como ele se apresenta, é a própria operação da vacuidade, a vacuidade em pleno funcionamento. O conselho de Chandrakirti é, portanto, assim que se chega à conclusão definitiva de que toda análise leva ao vazio, simplesmente abandonar a análise. Não há necessidade de sobrepor um conceito de vacuidade sobre uma vacuidade que já se apresenta como natureza das coisas, isso seria simplesmente leviano. O conceito só é útil quando não há um reconhecimento direto, e quando se está preparando uma espécie de “trampolim” cognitivo para o reconhecimento direto. A vacuidade segue presente como ela é independente de qualquer transação da mente – e, como os seres ignorantes precisam ouvir o darma no ambiente pragmático em que estão, o realismo pode e deve ser usado como meio hábil expediente.

Até aí, muito bem, e de fato as tradições que seguiram essa abordagem obtiveram grande influência política e poder financeiro. E nada de errado com isso, é um mérito dessa abordagem.

Quando falamos de praticantes de meditação, no entanto, as coisas mudam. Não tanto no que diz respeito à visão definitiva, não conceitual – embora o vocabulário também possa por vezes possa soar um tanto mais eternalista. Essa percepção de um vocabulário mais frouxo talvez se dê pelo mero fato de que essa gente que fez muitos anos de retiro simplesmente exala autenticidade e presença compassiva nas palavras, mais do que precisão conceptual num sentido maquiavélico e paranoico de “se eu disser as coisas assim, posso ser mal entendido”. É gente que fala “de coração para coração”, mais do que lida com argumentos. Tanto estudiosos quanto iogues, no entanto, concordariam que a visão definitiva está além de todos os extremos, é a união de aparência e vacuidade, relativo e absoluto, natureza de buda e vacuidade, etc. A controvérsia no mais das vezes, não está no aspecto absoluto (a não ser quando ele parece estar sendo reificado como algo eternalista).

O uso da linguagem aqui, nessa segunda forma menos “escolástica”, é também mais flexível, e até se poderia dizer, sofisticado, exatamente porque não é “darma para lidar com comerciante”. Essas pessoas vivem o âmbito poético que dá origem ao tantra, em que a linguagem fica impregnada das bênçãos na interdependência com o uso dela por seres absolutamente desembaraçados. Desembaraçados de tentar convencer ou refutar alguém, além de desembaraçados de tudo mais. Ainda assim, de fato, ouvir essa linguagem fora do reconhecimento da mandala autopresente pode produzir algumas reificações particulares difíceis de lidar. Sem dúvida a perspectiva dos vaqueiros é mais “segura”, em termos de também não desafiar o mundo. A perspectiva dos praticantes não negocia, e, portanto, não fornece garantias mundanas ou qualquer tipo de comprometimento.

Mas em termos do sutra, a disputa ocorre mais em termos de qual é considerada a visão expediente mais hábil, e aqui surge uma nova distinção: expediente que se volta ao relativo, e expediente que se volta ao absoluto. O expediente que se volta ao relativo não é controverso até certo ponto: são os ensinamentos sobre ética. Mas até onde ele vai? Na visão dos iogues, o expediente que se volta ao relativo vai até o debate analítico da vacuidade em termos de um lastro lógico privado, isto é, a vacuidade como uma afirmação embasada num argumento pronto, “negativa afirmativa”. Já o expediente que se volta ao absoluto é mais complexo, principalmente porque uma visão expediente do absoluto muitas vezes é fonte de fascinação e engano. É um tanto parecido com o conceito de não conceptualidade, que alguns confundem com a própria não conceptualidade.

Para Mipam Rinpoche, um extraordinário professor rimé da tradição nyingma, a visão expediente que se volta ao absoluto é, contrariando quatrocentos anos de erudição em todas as tradições não nyingma, a yogachara. Ele apresenta argumentos convincentes no sentido de que, para a nyingma, sempre foi assim. Sua Santidade o XIV Dalai Lama algumas vezes disse que os ensinamentos nyingma, em particular os ensinamentos da grande perfeição, tem uma “estética yogachara” – isto é, tem um vocabulário próprio da yogachara. O uso da palavra “estética” é bastante político: a presença de ideias semelhantes a yogachara assim não é fortemente associada a um compromisso total (absoluto) com a yogachara, que, como já dito, é considerada inferior à madhyamaka por algumas escolas.

E, de fato, se observamos bem, a madhyamaka tradicionalmente não refuta coisas como alayavijnana – elas estão na mesma categoria das xícaras: têm existência relativa e são vazias de “existência intrínseca” num sentido absoluto.

Enquanto que a madhyamaka svatantrika (que afirma a vacuidade através de uma lógica de lastro privado) representa o ápice do expediente que se volta ao relativo, a yogachara representa o expediente que se volta ao absoluto. Normalmente a yogachara é igualada com a cittamatra, e considerada inferior à madhyamaka, mas aqui surge uma madhyamaka-yogachara – que é representada classicamente pelo Bodhycharyavatara de Shantideva. Shantarakshita, considerado um svatantrika pelos não nyingma, é também tido por estes como um madhyamaka-yogachara.

Os jonangpas e alguns kagyupas, por sua vez, também postulam um terceiro tipo de madhyamaka, além da prasangika e svatantrika reconhecidas pelos comentaristas tibetanos de Chandrakirti. O que são essas “grandes madhyamakas”, bem como o que seria prasangika ou svantantrika, varia bastante. Algumas vezes a grande madhyamaka é o que se chama de shentong, vacuidade extrínseca – o fato da vacuidade não ser vista como vazia. Outras vezes a grande madhyamaka é simplesmente a prasangika, ou alguma versão da prasangika. E certamente, para Mipam e alguns outros nyingma, é o que chamam de madhyamaka-yogachara.

O próprio uso da lógica da escola de cognição válida (de Dignaga) que sustenta a visão prasangika na gelug, é tido como justamente a svatantra (privacidade lógica) que os nyignma definem como característica da svatantrika – a visão diametricalmente oposta a gelug, que acusa a nyingma de sustentar uma negativa afirmativa. Segundo Sua Santidade o Dalai Lama, todas as escolas tibetanas são madhyamaka prasangika, o que mais cinicamente pode ser lido como “chamam de prasangika a forma superior de debate e de estabelecimento intelectual da visão definitiva que utilizam”. Basicamente, a svatantrika é acusada de algum tipo de reificação da linguagem, e a prasangika estabelece a vacuidade de forma “não assertiva”, isto é, além dos extremos – o que sobra da demolição intelectual sistemática empreendida é a liberdade final perante qualquer reificação.

De todo modo, pace alguns poucos seguidores equivocados do Senhor de Refúgio Tsongkhapa, a madhyamaka – o caminho do meio – é efetivamente, para todas as escolas, além do compromisso com o realismo ou o idealismo. É bastante duvidoso que o próprio Tsongkhapa afirmasse o realismo, a não ser estritamente no contexto expediente. Fora do caminho do meio, como já dito, o hinayana é considerado realista, e a cittamatra, idealista.

E também por essas visões estarem nos ensinamentos válidos do Buda – afinal a cittamatra e as escolas hinayana são tidas como budismo autêntico, ainda que inferior –, no lidar com os seres, no aspecto expediente, a madhyamaka é livre para usar abordagens mais ou menos realistas ou idealistas para apresentar os ensinamentos. Abordagens realistas são, aparentemente, mais interessantes para não meditadores, entre eruditos e no diálogo inter-religioso – para pessoas comuns, envolvidas nas coisas do mundo. Para meditadores, em particular para o que chamamos de iogues, ou seja, gente que usufrui da riqueza do estado natural, em longos retiros, a abordagem idealista, no sabor próprio da yogachara, parece ser mais frutífera.

E qual é o sabor do idealismo yogachara? Ora, a interdependência entre mente e aparências é perfeita para revelar o funcionamento do carma. Assim o estado pós-meditativo se torna pouco a pouco naturalmente profundo e espontaneamente ético. A apresentação do darma de uma forma estratégica, política, maquinada, é abandonada, mas tampouco brotam atritos devido ao uso “pouco cuidadoso” desse ou daquele termo, uma vez que a inteligência usada é o próprio estado final de desembaraço, a profunda descontração no espaço da sabedoria. E, em certo sentido, isso também se revela como prasanga, isto é, uma responsividade espontânea e compassiva perante a necessidade dos seres.

E não é diferente da vacuidade não vazia dos jonangpas, porque não é necessário cair numa regressão infinita: uma só vacuidade, como não conceptualidade e êxtase em união, é suficiente. E é óbvio que não se trata de afirmação ou negação, apenas, expedientemente, parece qualquer combinação do tetralema que seja necessária.

Resta determinar, entre todas essas perspectivas expedientes, qual a que melhor atende as necessidades atuais dos seres, envolvidos em realismo niilista.

Além de esperança e medo se revela a desembaraçada atitude de um Buda, a atividade de eliminar todos os obstáculos e desabrochar todas as qualidades. No espaço equânime, livre de julgamentos, a sabedoria imanente não distingue Budas versus seres sencientes. O sentido último do caminho do meio está além da dicotomia de sentido provisório e sentido último, onde mente e vacuidade, aparências e espaço, samsara e nirvana, são apenas as diversas faces de um único diamante perfeitamente lapidado.

Não é um “nem isso, nem aquilo”, muito menos “tanto isso quanto aquilo”, nem apenas isso ou apenas aquilo. É um único diamante com diversas faces, além de sujeito ou objeto, além de espaço e tempo, além de fora e dentro, além de obter e perder, além de pureza e impureza, além de aumento ou diminuição, além de imanência e transcendência. O diamante é um simples objeto material que concebemos como uma analogia temporariamente válida para a mente que se autorreconhece, para a realidade que desabrocha em meio às aparências.

Todo o darma pode ser resumido a um único ponto: bom coração. No entanto, parece que só ouvir isso muitas vezes não é suficiente, e assim a compaixão infinita dos Budas provê os cultivos em ética, meditação e sabedoria – sendo que os três manifestam uma vastidão de aspectos de exame interno, de exame do mundo, e de exame da sabedoria dos mestres do passado – que por si só é um oceano inexaurível de nutrição e delícia.

Algumas pessoas, ao se depararem com um texto que trata de alguns detalhes espinhosos e sutis do darma, como essa amadora tentativa, podem se sentir desencorajadas. O objetivo é o oposto, e outros poderão encontrar nestas linhas hesitantes alguns termos sagrados estrategicamente posicionados, que sem dúvida podem se tornar fonte de inspiração e curiosidade. Um único monossílabo proferido pelo Buda, se mantido com carinho na mente, operando sua purificação intensa em nossos hábitos ignorantes, pode por si só purificar eras de obscurecimentos intelectuais e descortinar todo o sentido do darma. O presente autor, na sua profunda imperfeição, não conseguiria atrapalhar as bênçãos do Buda, mesmo que o texto em questão não seja mais do que um emaranhado petulante de termos bonitos do darma, nomes de seres sublimes e tradições sagradas, grosseiramente ligados por frases mal construídas e raciocínios mal-acabados.

Em todo caso, seres confusos como nós precisam comer o excelente mingau do darma pelas bordas, tanto praticando quanto estudando. Isso significa também ser moderado, sem acreditar que deglutiu todo um oceano de sabedoria em um único gole, e sem achar que não encontrou nada nutritivo no engajamento com curiosidade sincera. E principalmente sem assumir que o cultivo deliberado é inútil, mesmo ciente de que o potencial pleno nunca se ausenta. Além dos extremos de achar que entendeu tudo, e achar que não entendeu nada, está um pedacinho de entendimento que se encaixa em nossa capacidade.

Escrito com displicência por precisão acadêmica, mas com algum fervor pelo darma, por alguém que espera um dia se tornar um praticante. Possa ser de algum benefício.

 

Referências bibliográficas:

Dzongsar Khyentse Rinpoche, Madhyamakavatara: Introduction to the Middle Way (e ensinamentos em áudio) – baseados num comentário de Gorampa, o principal crítico da interpretação de Tsongkhapa.

Padmakara Translations, The Adornment of the Middle Way – comentário de Mipam ao clássico de Shantarakshita, com introdução pelos tradutores. Há também uma tradução do Madhyamakavatara com comentário por Mipam, e uma excelente introdução, pela Padmakara.

The Cowherds, Moonshadows: Conventional Truth in Buddhist Philosophy – a visão de Tsongkhapa estabelecida por eruditos ocidentais dentro da tradição filosófica.
As referências bibliográficas dos livros indicados são suficientes para revelar o escopo do que está disponível em inglês sobre o assunto. Não há obras relevantes traduzidas ao português.

eduardo-pinheiro-1Padma Dorje é praticante budista e autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos.  Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org.

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  • Marcos Dias Coelho

    Eternidade

    Grão de areia,
    em sua pequenez, a
    eternidade

    Tam Huyen Van

    _/|_