LIBERDADE E LIVRE ARBÍTRIO

Livre-arbítrio não tem NADA a ver com liberdade.

O nosso caso é um belo exemplo: temos livre arbítrio mas somos reféns de impulsos e processos externos, ou seja, não temos liberdade. Sabemos que acordar cedo e comer menos doce é bom, mas não fazemos. Sabemos que fumar faz mal, mas é difícil parar. E por ai vai.

Mesmo em filosofia, os dois conceitos não são similares. Em geral, não se usa livre-arbítrio. Isso só aparece em contextos cristãos ou espíritas. Usa-se “liberdade” pra realmente falar do que interessa.

Viver além de si mesmo, por Gustavo Gitti

Há duas maneiras de nos relacionarmos conosco: acreditar no que somos ou ver nossas faces como personagens de nós mesmos.

Dois amigos meus (um no Rio de Janeiro, outro em Joinville) costumam dialogar por email sobre temas controversos. O assunto da vez é “Iluminação e prática espiritual”. Um deles é fanático por Osho e tem aversão pela idéia de seguir uma tradição específica dentro de uma linhagem de mestres. O outro é cético, apaixonado por lógica, diálogo, ciência, poesia, filosofia… mas com um pé no Budismo menos crente que pode existir (Trungpa Rinpoche, Dzongsar Rinpoche, Lama Samten, Stephen Batchelor, Alan Wallace). Enquanto um diz “Osho é meu mestre”, o outro retruca: “Mas quem foi o mestre do Osho? Quem aplicou nele o ISO 9000 da realização espiritual?”. Ambos não só levam suas visões a sério, como também acreditam na solidez que parece vir do oponente.

Esses dias troquei alguns rápidos emails com uma amiga da meditação. Ela me convidou para sair, propôs que eu continuasse com o projeto deexibição de filmes em um centro de prática budista e agitou uns amigos para que eu pudesse conduzir um workshop de polirritmia para alteração da consciência. Doce, linda. Para evitar contato, me afastei com respostas que alternavam entre rispidez e displicência. Eu queria manter os discursos e as histórias que vinha narrando para mim mesmo. Ela queria interromper minha auto-encenação, viu além dos jogos e fez o possível para me puxar também, para retirar uma resposta real de mim.

Esses dois exemplos mostram como somos reféns das visões que criamos para nós mesmos. Ao conhecer alguém novo, por exemplo, raramente deixamos espaço para novas construções. A atitude mais comum é nos precipitarmos em nos apresentar de modo fiel ao que temos sido ou tentado fingir até então: “Oi, meu nome é Gustavo, eu tenho um blog sobre relacionamentos, faço dança de salão e pratico meditação”. Quem será que acredita nessas mentiras que contamos a nós mesmos? Na Cabana do Dr. Love, sempre que uma pessoa entra e se apresenta listando seus defeitos e virtudes, eu pergunto: “Você realmente acredita nessa auto-descrição?”.

Talvez o estranho que acabamos de conhecer nos daria espaço para ser outra coisa, ou nós mesmos seríamos sua oportunidade de ser completamente novo. Talvez o tímido pudesse ser extrovertido pela primeira vez, o autoritário pudesse ceder e o canalha se apaixonar de modo derradeiro. Mas o tímido logo reafirma sua característica pelo corpo e às vezes pela própria fala (“Eu? Não, eu sou tímido”), o autoritário preocupa-se em aprender modos de controle que funcionem com a nova pessoa, e o canalha reitera seu fechamento à verdadeira canalhice da vidaamar.

Quando participamos de diversos mundos – cada um com sua linguagem, modo de ação, ambiente, desafio e objetivo específicos – e lidamos com uma ampla gama de histórias, fica mais fácil perceber como não somos nada do que parecemos ser. Entre bolsistas da academia, sou o que menos dança, o mais problemático, anti-social, preguiçoso (o que mais chega atrasado a aulas e ensaios), invejoso e, ainda assim, orgulhoso. No grupo de meditação, sou aquele cara que conduz a discussão, impassível, coluna ereta, papagaio perfeito do lama – lá, falo justamente como superar a preguiça, a inveja, o orgulho… No colégio, eu era o baterista filósofo que tinha uns projetos malucos. Na faculdade, eu não fui ninguém pois me excluí de qualquer contato intersubjetivo, sozinho quase o tempo todo. No trabalho, sou o blogueiro empreendedor que manja de Internet e filosofia. Afinal, quem sou eu?

Por trás de cada identidade, há uma tendência. Por trás do menino que chora, há uma base de carência. Por trás do nariz empinado, uma base de orgulho. O que, então, estaria por baixo dessa base de tendências e condicionamentos? Embora essa pergunta possa parecer filosófica, ela é o cerne de nossa insatisfação, de nossa instabilidade de energia e ânimo, pois é justamente por transitar de uma identidade a outra que seguimos batendo cabeça. Não é o transitar que nos aflige, é nossa crença em cada personagem (“eu sou isso”) que nos coloca em crise cada vez que um deles se dá mal ou morre. Quando a namorada nos abandona, sentimos a dor da morte no corpo, nos falta ar, não conseguimos sair da cama. É apenas “O Namorado”, mas não há tal percepção enquanto nos identificamos e acreditamos que somos “O Namorado”. Na verdade, vivenciamos a identidade como apenas “Eu” e por isso caímos e morremos junto com ela.

Ora, depois de uma crise, morremos como uma identidade, mudamos de base, somos movidos por outra tendência e logo nascemos com outra identidade. Tudo sem perceber, tudo sem lucidez alguma do processo. Um ser luminoso nos acena de longe e nos ativa. Meses depois, somos “O Namorado 2″ e nos identificamos novamente, sem memória alguma de como foi justamente a identificação inicial que provocou tanta dor!

Ainda que nos esforcemos para perceber o processo enquanto ele ocorre (jogar luz, manter consciência), isso não tem força alguma contra a energia do aprisionamento. Ou seja, nossa identidade que se apega é sempre mais poderosa do que nosso olho interno que observa. O fingimento nos fisga justamente por nunca se mostrar como artificial, por ser o máximo de realidade e luminosidade a que temos acesso. No cinema, sabemos que é só um filme, mas nosso corpo não: as glândulas se ativam todas, nos contorcemos, choramos, gargalhamos, nos movemos. Nossa energia está no processo de identificação, então não podemos descartá-lo. Nossa liberdade está no processo de desidentificação, então não podemos esquecer de que é, sempre, tudo um filme, um sonho. Se apenas buscarmos liberdade desidentificada, ela será estéril, sem energia, sem vida, impotente perto de nossos ânimos e emoções. O resultado será hesitação antes, e culpa depois, de cada momento. Se apenas nos jogarmos aos prazeres da vida (Carpe diem), seremos presa fácil e eventualmente acabaremos aniquilados pela aparente concretude do mundo – ansiedade antes, frustração e insatisfação depois. Entretanto, nossa história não precisa ser assim. Somos capazes de usufruir da energia da identificação e, a um só tempo, agir com a liberdade da desidentificação.

Quando nos relacionamos, vemos que os outros encenam mentiras para nós na tentativa de, eles mesmos, reificarem suas próprias ilusões. Somos parte de seu processo de auto-engano, como se eles pensassem: “Se ele acreditar que eu sou assim, então eu acreditarei também”. Em geral, acreditamos nas besteiras que o outro conta a si mesmo ou buscamos um outro eu profundo e verdadeiro (“Você não é assim, eu conheço você”). Em ambos os casos, damos solidez ao que o outro manifesta, de modo aparente ou oculto, consciente ou inconsciente.

Raramente, contudo, nos lembramos de que se nós mesmos somos tímidos em um grupo e extrovertidos em outro ambiente, então não somos nem tímidos nem extrovertidos. E o outro também… Ele não é nem o que manifesta e nem o que esconde, nada do que podemos apontar e definir. Ele é a liberdade de ser. Pura abertura, mobilidade e espacialidade. Sem tendências, sem bases. Quando nos demoramos em uma pessoa com esse olhar livre, é natural que ela sinta a mesma liberdade que estamos oferecendo e enxergando como já existente nela. É comum que ela se solte como nunca antes, que ela sinta desejos sem antecedentes, usufrua de sensações e ações pela primeira vez na vida.

Assim que pararmos de acreditar em nossas próprias crenças e decisões, assim que abdicarmos do controle e da certeza, estaremos prontos para oferecer isso aos outros com nossa simples presença. Viver além de si mesmo é convidar os outros para que saiam de seus casulos, para que andem sem bases ou tendências pelo mundo. Sendo mobilidade, ora somos o namorado que sofre o fim do namoro, ora somos o pai recém-nascido que pula no hospital. Ainda assim, não perdemos contato com nossa natureza que não é nem pai nem namorado, nem filha nem viúva. É essa confiança além de nós mesmos que nos tira o medo de incorporar com paixão cada personagem e mergulhar de cabeça em cada história.

Quando sentimos que somos alguém, quando acreditamos em alguma base, temos medo de avançar, pois é nossa vida que está jogo. Vivemos com o pé atrás, sem intensidade. Se o personagem despencar, pensamos que caíremos juntos. Se somos excluídos dos grupos nos quais somos alguém (família, trabalho, amigos), o que sobra? Tudo o que menos desejamos é desabar.

Quando já sabemos, logo de saída, que não somos ninguém, quando não acreditamos, não há medo de desabar, não há nada em jogo, não há seriedade alguma que possa ser abalada. Podemos assumir quantos personagens forem necessários para adentrar os mundos ao nosso redor. Podemos ser tolos, ridículos, passar vergonha, humilhação. Sem acreditar em nossas histórias, não vamos ignorar o que o outro encena para nós. Não! Nós vamos olhar tudo como encenação. Não vamos ignorar o que o outro nos oferece, apenas não vamos acreditar, assim como não acreditamos que filmes sejam verdadeiros e não deixamos de chorar, assim como a percepção da artificialidade dos castelos de areia não nos impede de brincar.

No outro, não há identidade oculta, há apenas a encenação e a liberdade que ele já está desfrutandopara se auto-enganar. Então, nós vamos sorrir para o processo que já está ocorrendo. Sem alterar nada, vamos nos relacionar com ambos: personagem e liberdade, jogo e abertura, condicionamento e espacialidade.

Já podemos parar de ensaiar, afinal nunca estivemos fora do palco. Livres de nós mesmos, vamos enfim viver.

Originalmente publicado em http://nao2nao1.com.br/viver-alem-de-si-mesmo/

 

“À luz de uma definição moderna de liberdade como a capacidade de alcançar o que é de valor em uma gama de circunstâncias (Maxwell, 1984), a tradição budista claramente enfatiza que os seres sencientes ordinários não são inteiramente livres, porque estamos limitados por aflições mentais tais como o desejo, a hostilidade e a ilusão, que por sua vez nascem da nossa ignorância da verdadeira natureza da realidade; e, enquanto vivemos nossas vidas sobre o domínio dessas aflições, nos mantemos na prisão de seus resultantes sofrimentos. Mas o Buda trouxe uma hipótese verdadeiramente surpreendente, que o sofrimento e suas causas internas não são intrínsecas às mentes dos seres sencientes, pois em cada ser existe uma dimensão da consciência “brilhantemente luminosa” que, embora velada por contaminações passageiras, é em si mesma livre da ignorância e das aflições mentais, e que pode ser revelada pela prática espiritual. 

Uma compreensão Budista moderna do “livre arbítrio” não foca na questão se a vontade é condicionada por causas e condições prévias, mas na extensão em que nós temos liberdade para tomar decisões que são condutivas à nossa própria felicidade e à felicidade genuína dos outros. Tais escolhas são condicionadas, com certeza, somente por sabedoria e compaixão, ao invés de desejo, hostilidade e ilusão. Meditações praticadas com a mente ordinária são conduzidas para dentro do campo de interações causais, levando à liberdade cada vez maior para fazer escolhas sábias. Quando alguém se liberta da consciência ordinária em direção à atenção primordial, transcende a dimensão do intelecto e da causalidade, e é aqui que a liberdade verdadeira e primordial é descoberta. Isso não é algo que possa ser provado com a lógica, mas pode ser percebido através da experiência direta que nasce de uma prática de meditação rigorosa e regular. A tradição Budista concordaria com (William) James quando ele diz, “O pensamento lida somente com as superfícies. Pode nomear a grossura da realidade, mas não pode penetrá-la, e sua insuficiência aqui é essencial e permanente, não temporária”. (…) Com o desenvolvimento da atenção sustentada, ativa, a consciência pode estar introspectivamente focalizada nos próprios sentimentos, desejos, pensamentos e intenções, enquanto elessurgem de momento a momento. Como o Indiano Nagasena ensinou ao Rei Milinda, a prática Budista da atenção requer dirigir a atenção para tendências benéficas e não benéficas, e as reconhecendo como tais, de modo que se possa cultivar as primeiras e rejeitar as últimas. Tal consciência discernente, metacognitiva, permite a possibilidade de escolher livremente se permite ou não um desejo que conduza ou permita uma intenção que resulte em ação verbal ou física. Resumindo, a liberdade da vontade depende da habilidade de reconhecer os vários impulsos que surgem involuntariamente na mente e escolher entre eles, aceitar ou rejeitar.

Sem tal monitoramento interno dos estados e processos mentais, a mente cai sob o domínio do condicionamento prejudicial, habitual, com a atenção se focalizando compulsivamente em fenômenos atrativos (subha-nimitta), por meio disto, reforçando o desejo ardente, e em fenômenos desagradáveis (patigha-nimitta), por meio disto reforçando a hostilidade. Tal atenção mal orientada está também propensa a levar alguém a perceber como permanente o que é impermanente, como satisfatório o que é insatisfatório, e como um eu, o que é não eu. Para superar tais modos ilusórios de perceber a realidade, deve-se acrescentar ao cultivo da quietude meditativa (samatha), o desenvolvimento do insight (vipassana), através da aplicação rigorosa da atenção (satipatthana) ao corpo, aos sentimentos, à mente e aos fenômenos. Somente através da unificação da quietude meditativa e do insight, se pode adquirir completa liberdade das aflições mentais e do seu sofrimento resultante, revelando assim a pureza inata da mente brilhante.

Alan Wallace,  ”Uma Visão Budista do Livre Arbítrio: Além do Determinismo e do Indeterminismo”

 

BUDISMO E LIVRE ARBÍTRIO 

Dizes então que és livre – Livre de sentir amor ou raiva em função das circunstâncias… Tu é que decides, em função das circunstâncias… Amas ou odeias, em função das circunstâncias.

Eis a ilusão do cata-vento! Também ele se sente livre, girando no seu eixo para a direita e para a esquerda… em função das circunstâncias.

Mas será o cata-vento assim tão livre? Pura ilusão! O cata-vento não vai para onde quer. O cata-vento vai para onde o vento (circunstâncias externas) o leva, limitando-se a girar para a esquerda ou para a direita (mente dual).

O ser humano não sente o que quer, mas sim o que é definido pelas condições que o rodeiam. O ser humano reage normalmente aos fenómenos de forma automática, num misto de ligeira consciência e instinto, onde este último ocupa lugar predominante. O ser humano exerce apenas os movimentos que lhe são permitidos pela sua mente dual: ou gosta, ou não gosta… e manifesta-se em conformidade com essas impressões.

E tal como o cata-vento, também o ser humano se encontra prisioneiro de um eixo… o eixo da Roda da Vida, onde se encontram os três Klesha: apego, aversão e ignorância.

É dentro do limite imposto pelos três Klesha que nos movemos: o vento vem pela esquerda, aversão… o vento vem pela direita, apego… o vento pára e… devido à ignorância que nos faz depender do apego ou da aversão para interpretarmos e nos relacionarmos o mundo, ficamos também parados… sem saber o que fazer!

Quando alguém me diz que tem “livre arbítiro” e que se irrita com fulano tal “porque quer”, recordo-me sempre de um cão que conheci na minha infância: O pobre vivia preso por um cadeado que deslizava “livremente” ao longo de um arame esticado entre as paredes do quintal. Com demasiada frequência esquecia-se que a sua liberdade era apenas relativa, pelo que, de tempos a tempos, o esticão no pescoço fazia-o cair para o lado em pranto, trazendo-o de volta à realidade de forma dolorosa. E assim é o ser humano… convencemo-nos constantemente que somos livres de sentir o que queremos, até a vida nos provar o contrário de forma dolorosa.

“Ah.. mas eu só sinto raiva porque quero” Será? Será que queres mesmo sentir raiva? Acaso alguém se sente bem (psicologicamente e até fisicamente) quando está enraivecido??? Acaso alguém se sente feliz quando está enraivecido??? Acaso os efeitos da raiva são benéficos para ti ou para alguém por natureza??? Tu sentes raiva… porque não consegues exercer o teu legítimo direito de alternativa! Apenas isso.

Livre arbítrio, ou liberdade, só se podem caracterizar como tal quando deixamos de ser reativos e passamos a ser proativos, definindo nós mesmos o que fazer com os impulsos básicos que sentimos.

Liberdade é poder optar conscientemente por ser compassivo perante uma qualquer situação externa que deixaria todos os outros instintivamente irados.

Liberdade é poder optar conscientemente por ser feliz, independentemente de toda e qualquer condição exterior, ter ou não ter, ser ou não ser isto ou aquilo.

Liberdade não é girar sobre o próprio eixo sem ir a lugar algum, como o cata-vento, mas sim voar como um pássaro, contra ou a favor do vento, aproveitando o melhor que cada brisa tem para chegarmos ao nosso objectivo.

A liberdade surge da CONSCIÊNCIA – ao conhecermos os agregados que nos compõem e ao aprendermos a usar o melhor possível o seu mecanismo de manifestação, eventualmente reprogramando a máquina, para que gere aquilo que todos procuramos: FELICIDADE (nossa e de todos os seres).

A liberdade surge da COMPAIXÃO – porque através da mesma podemos libertar-nos do eixo do ego e voarmos num universo bem maior que o nosso mundinho pessoal do costume.

Mas como se consegue então alcançar essa tal liberdade de ser feliz? Como descobrir em nós a necessária harmonia entre compaixão e consciência?

Eis uma das grandes virtudes da prática contínua e sistemática da meditação, na qual se exercitam e fortalecem convenientemente esses músculos atrofiados através de rotinas próprias para tal.

Em pouco tempo, os efeitos da meditação vêem-se plasmados no nosso dia-a-dia. A pouco e pouco, passamos a dar importância relativa a coisas antes consideradas “vitais”. Passo a passo, torna-se cada vez mais fácil optar por ser feliz em vez de nos deixarmos ser vítimas, por exemplo, de qualquer insulto ouvido no meio da rua, que normalmente nos faria “perder a cabeça”.

Yatri Lhundup 

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