Mais que esse corpo: Despertando a mente através da dor

Texto traduzido por Mariana Valente de Sá publicado originalmente em inglês na revista Tricycle.

A dor, por definição, é algo bem chato. Por isso, emoções desagradáveis como o medo e a raiva geralmente surgem junto com ela, criando uma experiência especialmente desmoralizante. Então, geralmente, tentamos nos livrar dela. A cura da dor é o resultado que nossa cultura nos ensina a esperar — carregamos uma ideia de que temos o direito de viver necessariamente sem dor. Mas uma das piores partes da síndrome de dor – seja o desconforto de curto prazo, como na meditação, ou de longo prazo, com a dor crônica – é que a nossa dor física e a nossa ânsia de anulá-la se alimentam uma da outra em um loop muito infeliz e nossa vida passa a girar em torno do nosso desconforto.

É essencial entender que tanto a nossa dor quanto o sofrimento que surge a partir dela são, de fato, nosso caminho, nosso professor, no sentido de que podemos aprender com eles e experimentar nossa vida de maneira mais profunda como resultado da dor. Uma vez que entendamos que a dor é nosso caminho, podemos começar a trabalhar com nossa dor e nosso sofrimento de maneira mais consciente. Pelo menos, podemos considerar nossa dor uma oportunidade de aprender sobre nossos vários apegos – especialmente nossos apegos ao conforto, à imagem corporal, ao controle, e, no caso da dor crônica, ao nosso sofrimento aparentemente sem fim.

Praticar com nossa dor gradualmente nos liberta desses apegos. Quando a dor surge, ao invés de imediatamente pensar “Como posso me livrar disso?” podemos dizer “Olá” para a dor e perguntar “O que posso aprender com isso?”. Nem sempre é fácil fazê-lo, mas, quando é possível, gira toda a experiência de cabeça para baixo.

Quando nos lembramos de perguntar o que podemos aprender, é essencial que notemos a diferença entre a dor em si e como nos relacionamos com ela. Muitas vezes combinamos as duas coisas em um todo confuso. Dor é a experiência física de desconforto; a maneira pela qual nos relacionamos com ela, todavia, é mental e emocional. Por exemplo, durante a meditação, quando nos relacionamos com uma dor no joelho ou nas costas com medo ou auto-piedade, isso exacerba a sensação física desconfortável. Se nos relacionamos com a dor com um elemento de curiosidade, todavia, a experiência se torna muito mais tolerável.

Dito isto, há momentos em que nada nos alivia. Nesses casos, é saudável nos distrairmos intencionalmente de nossos corpos e mentes. Isso pode incluir atividades de que genuinamente gostamos – como caminhar na natureza ou ouvir música – já que é bastante fácil, quando estamos com dor, esquecer as coisas que nos trazem felicidade. Ao redirecionarmos nossa atenção dessa maneira, cultivamos bondade amorosa conosco mesmos e com nossa situação.

Embora praticar com a dor física e sua doença emocional relacionada possa se provar difícil, na maior parte das vezes, vale a pena.

Primeiro, ao trabalhar com as emoções que associamos à dor física, precisamos reconhecer nossos julgamentos – especialmente em que medida normalmente os aceitamos, sem questioná-los, como verdadeiros. Esse reconhecimento nos permite enxergar como nossa crença cega no pensamento solidifica nossa experiência física desagradável da dor. Uma tendência particularmente perniciosa é catastrofizar tudo, automaticamente esperando o pior. Se temos uma dor de barriga que dura alguns dias, talvez comecemos a acreditar que estamos com câncer. Para contrariar esse tipo de pensamento, podemos utilizar uma frase simples para nos lembrar que essas indisposições imaginárias “não estão acontecendo agora”. Outra tendência perniciosa é o filtro seletivo, com o qual ignoramos experiências positivas e exacerbamos experiências negativas. No caso da mesma dor de barriga, concentramos toda a nossa atenção em como nossa dor nos incomoda, ao invés de nos concentrarmos no fato de que nossos olhos, ouvidos, pernas e todo o resto estão funcionando perfeitamente.

Reconhecer com precisão nossas crenças relacionadas à dor é o primeiro passo na direção de diminuir o seu poder sobre nós. Ao reconhecermos esses padrões podemos começar a objetificá-los, rotulando-os ou até mesmo anotando-os. Rotular pensamentos como “Não consigo aguentar isso”, “O que vai acontecer comigo?” ou “Por que eu?” permite que saiamos de dentro deles. Na ausência de rótulos, podemos vir a nos enxergar como vítimas da nossa dor. Com a consciência objetiva que vem de criar rótulos, no entanto, esses pensamentos com o tempo aparecem somente como pensamentos-nada mais. Começamos a perceber que eles podem nem mesmo ser verdadeiros.

Além de trabalhar com as crenças e reações que surgem da dor, precisamos aprender a trabalhar com a própria experiência da dor. Uma maneira eficaz de fazê-lo é nos concentrarmos diretamente nas sensações específicas da dor. Levamos nossa atenção a todos os locais em que sentimos um aperto ou uma ausência, dissolvendo a tensão nessas áreas dolorosas. Então, gradualmente sentimos a textura da dor – o dolorido, as pontadas, a queimação ou qualquer característica da dor que possa estar presente. Quando fazemos isso com a curiosidade de um cientista, paradoxalmente isso nos permite experimentar a dor, pelo menos uma parte do tempo, como nada mais que uma sensação forte.

“Neste aspecto, a dor efetivamente nos força a realizar o que nós aspiramos o tempo todo: uma mente desperta e presente.”

Ao nos permitirmos ficar com a dor, podemos notar que ela não permanece a mesma. De fato, as sensações muitas vezes mudam rápido e às vezes até desaparecem completamente. Essa percepção nos tira da mentalidade catastrófica que imagina que nossa dor sempre vai ser horrível ou insuportável.

Embora ficarmos com sensações desconfortáveis seja uma maneira de trabalhar com a dor, outra maneira eficaz é levar a atenção para a respiração. Normalmente, quando estamos com dor, as sensações desagradáveis preenchem toda a nossa consciência. Mas quando incluímos a respiração, uma parte da nossa atenção repousa do ritmo da nossa inspiração e da nossa expiração, o que coloca a dor em um ambiente maior de consciência.

Podemos até usar a respiração para ajudar a curar a dor, inspirando e expirando as sensações físicas como quem faz uma massagem suave. Isso é especialmente útil com dores de longo prazo ou crônicas, como os períodos de náusea com que lido há 20 anos, sintomas de um distúrbio do sistema imunológico. Quando a náusea fica forte, eu me encolho em posição fetal na cama, respirando em direção ao centro do peito na inspiração e espalhando bondade amorosa para meu sistema imunológico por meio da expiração. Não pretendo fazer a náusea ir embora, mas me relacionar com ela de maneira mais amigável. Quando eu subsequentemente percebo a náusea não como dor mas como energia física, sou tomado por um senso de alegria calma no qual fica claro que sou mais do que somente este corpo.

Concentrar-se na respiração para revelar uma consciência mais aberta é uma prática muito popular; mas a verdade é que uma atenção tão expansiva à abundância de nossos estímulos sensoriais e ambientais é uma ocorrência rara. Ela resulta de um cultivo consciente, com um esforço contínuo e suave para aumentar a atenção e levá-la além dos nossos sintomas físicos de dor. Nesse sentido, a dor de fato nos impulsiona a atingir aquilo a que aspiramos todo o tempo: uma mente desperta e presente.

Ao praticar com nossa dor, também desenvolvemos compaixão por outros que podem estar sofrendo de desconfortos semelhantes. Uma coisa que faço durante ataques de dor física forte é visualizar pessoas que eu sei que também estão sentindo dor, e, depois, imaginar incontáveis outras pessoas que também estão com dor naquele exato momento. Na inspiração eu inspiro as imagens das pessoas com dor no centro do peito e na expiração, espalho o desejo de cura para mim e para os outros. Desta maneira, nossa dor pessoal nos conecta com a dor dos outros, a dor do mundo. Isso pode aprofundar nosso senso de compaixão e nosso desejo de que o sofrimento dos outros seja curado. Também diminui o senso de isolamento que geralmente sentimentos quando estamos com dor.

Inevitavelmente, haverá momentos em que nos sentimos soterrados ao lidar com desconforto físico – quando a experiência de impotência cerca firmemente nosso pequenino senso de identidade. Uma prática que muitos acreditam ser útil ao nos sentirmos sobrecarregados é levar a consciência para o centro do peito, inspirando como se estivesse inspirando os sentimentos obscuros diretamente para o centro do peito. Com cada respiração, você inspira os sentimentos um pouquinho mais profundamente. Então, com uma expiração longa e vagarosa você expira, sem tentar mudar ou soltar nada, mas simplesmente sentindo o que está lá. O que acontece na verdade durante esse processo de respirar para dentro do centro do peito é um mistério, mas você pode ver por si mesmo como essa prática permite que suportemos com graça o que, de outra forma, pareceria insuportável. Ao nos rendermos aos nossos medos mais profundos, nos colocamos em contato com a consciência fundamental de simplesmente ser – a fundação verdadeira que está sempre disponível para nós.

Mesmo se não tivermos uma dor intensa, vale muito a pena trabalhar com pequenas dores para que não fiquemos desnorteados com dores mais fortes mais tarde. De qualquer modo, vamos tentar lembrar que, embora preferimos nunca ter dor, ela pode ainda assim nos levar a estados que, de outra maneira, jamais alcançaríamos: para uma experiência mais profunda, e, em última análise, mais apreciativa do que é estar verdadeiramente vivo. 

Ezra Bayda pratica meditação desde 1970 e atualmente ensina no Zen Center San Diego. Ela é autora de muitos livros, incluindo The Authentic Life (A Vida Autêntica). 

Texto traduzido por Mariana Valente de Sá, praticante budista e tradutora do inglês. Ela compartilha versos em naneira.wordpress.com.

 

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