Nojo pelo nirvana: o bodisatva e a intenção iluminada Padma Dorje

Um praticante no caminho do bodisatva deve abandonar qualquer expectativa de paz e felicidade própria enquanto houver um único ser senciente sofrendo. Como ficar em paz com todos estes seres-mães com cabelos em chama rodopiando pelo samsara? A prática, portanto, envolve a coragem do trabalho contínuo com os seres, sem nenhuma esperança de recompensa. Isso quer dizer que bodisatvas não se iluminam nunca? Ou que de alguma forma faltaria autocompaixão aos bodisatvas?

Para dissolver essa questão complexa, o primeiro ponto a compreender é a noção de ensinamentos definitivos e expedientes. O Buda não ensinava apenas o que é verdadeiro, mas também o que é útil, ou aplicável numa determinada circunstância. Isso dependia do acúmen dos seres a serem beneficiados pelos ensinamentos. Para alguns, ele ensinava algo que servia por um tempo, para então o ser ficar numa posição de ouvir mais. Para outros, ele já dava o ensinamento final.

Por exemplo, conta-se que em certa ocasião o Buda encontrou um primo que não apresentava nenhum interesse no darma. Ele de algum modo conseguiu mostrar a esse primo as boas experiências nos reinos de felicidade temporária, tais como riquezas, parceiras sexuais atraentes, status, boas roupas e comida. Isso chamou a atenção dessa pessoa, atiçou seu interesse, e ele viu no Buda finalmente um professor – alguém que podia ensinar algo de valor. Então ele insistiu que o Buda lhe desse instruções para obter tais resultados. O Buda disse “pratique virtude que você chega lá”. Em outras palavras, as experiências condicionadas de felicidade vêm através da geração de mérito, que se obtém por trazer felicidade, e evitar trazer sofrimento, aos outros – isto é, a prática de virtude. Esse é um ensinamento bastante genérico, e, ainda que bastante positivo, não é sequer propriamente budista. No entanto, o Buda advertiu o resto da sanga para não dar muita trela para esse praticante do caminho mundano, já que sua motivação para a prática de virtude era um tanto estreita.

Em todo caso, esse primo do Buda praticou com muita diligência. De fato, praticou a virtude com tanta ênfase, ainda que com a motivação errada, que sua mente começou a se abrir para aspectos mais profundos. Então o Buda finalmente encontrou uma oportunidade para revelar que todas aquelas conquistas que o primo ansiava tanto eram, no fundo, insatisfatórias, impermanentes, e um tanto desimportantes, e que, se ele fosse realmente esperto, devia praticar para reconhecer a natureza da própria mente e da realidade, e não para obter mais brinquedos e diversões. Como os méritos estavam presentes para ele reconhecer isso como verdadeiro, dotado dessa compreensão mais refinada, este praticante que era parente do Buda retificou sua motivação, ouviu ensinamentos mais sofisticados, e se tornou efetivamente um praticante do darma, e não apenas alguém querendo fazer engenharia da experiência cíclica para se dar bem. Tudo isso, é claro, sem abandonar a prática da virtude, que continuava sendo uma boa base, melhor ainda com a motivação correta.

Essa história ilustra o fato de que o Buda ensina, em alguns casos, métodos expedientes. Numa perspectiva particularmente profunda, tudo no caminho budista é expediente. Mesmo conceitos como “buda” ou “iluminação”, que dizer artifícios rituais como “postura de meditação”, devem ser abandonados no momento certo, quando há mérito para uma profundidade e simplicidade além dos conceitos, totalmente “não elaborada”. Porém, ainda considerando o caminho budista de que pode se falar, e seus conceitos sublimes, há uma classe deles que são ditos “definitivos” – os que falam de natureza de buda, vacuidade, e assim por diante. Eles são como um “espelho conceitual” da compreensão última, não elaborada, não conceitual. Outros conceitos, tais como meditação, virtude, etc. são expedientes no sentido mais geral. Isso de forma alguma quer dizer que eles são inferiores – de fato eles são úteis de uma forma geral para um maior número de pessoas, que não tem como, nesse momento, conceber coisas como vacuidade ou ausência de reificação.

Uma divisão central nos ensinamentos budistas diz respeito ao que algumas vezes se chama, até por vezes pejorativamente, de “hinayana”, em contraposição ao mahayana. Estes dois seriam “veículo mesquinho” e o “veículo grandioso”, aquilo que leva a uma liberdade do sofrimento mas numa perspectiva autocentrada, e o que leva a um altruísmo grandioso e a superação de toda elaboração. Esses são conjuntos vastos de ensinamentos do Buda supostamente ensinados para classes de pessoas diferentes. Aqueles seres que possuem uma coragem específica chamada “bodicita” ou “intenção iluminada”, que são capazes de abrir mão de um descanso definitivo na cessação das emoções aflitivas para trabalhar incansavelmente pelos seres, esses são o alvo dos ensinamentos mahayana. Os ensinamentos hinayana (“veículo estreito”) são para aquelas pessoas que não se consideram capazes de beneficiar os seres de uma forma ampla. Assim o Buda proveu para estes um caminho específico, com um resultado menor, chamado de “nirvana”. A cessação definitiva das aflições mentais, e portanto, do sofrimento que elas produzem para si próprio e para os outros.

Historicamente, essas palavras são associadas a grupos de pessoas, ou tradições budistas, mas não precisamos seguir essa tendência que se torna uma forma de sectarismo, o que é abjeto. O que nos importa como supostamente aspirantes ou praticantes do mahayana não é criticar um grupo ou outro, ou mesmo uma determinada pessoa, pela sua suposta ausência de coragem, mas verificar se nós mesmos possuímos essa característica, e assim depurar nossa motivação. Os textos mahayana dizem que até mesmo desconfiar que essa capacidade seja possível é um mérito tão vasto que o próprio Buda se disporia a nos puxar tal como se fosse um animal de carga – isto é, nos ajudar diretamente em nossa prática de beneficiar os outros –, coisa que ele não faria em benefício de nem mesmo 500 Arhats (seres que atingiram o resultado máximo do hinayana, isto é, o nirvana, a cessação completa das aflições mentais).

Tanto hinayana quanto mahayana possuem suas próprias noções de ensinamentos expedientes e definitivos, mas o mahayana considera absolutamente todo o hinayana expediente. Em outras palavras, tudo que é praticado sem essa motivação grandiosa é um ensinamento temporário, para seres que não possuem essa confiança na própria capacidade iluminada. Isso inclui a perspectiva budista que visa o nirvana, ou a cessação definitiva do sofrimento através da extinção das aflições mentais, com uma motivação individualista.

Para alguém que não se comprometeu com o caminho mahayana, pode ser um tanto adequado ansiar por uma espécie de resolução definitiva pessoal, em que os seres-mães permanecem rodopiando por aí por conta própria, com os cabelos em chamas. Essa expressão dos “cabelos em chamas” é uma metáfora usual no mahayana: cada um dos seres já foi nossa mãe incontáveis vezes, cada um deles cuidou de nós com toda dedicação, e para eles nós fomos repetidas vezes a coisa mais importante. Cada um desses seres agora se encontra totalmente sem rumo, produzindo sofrimentos para si, e algumas vezes para os outros, e muitas vezes sem entender nada das condições que levam a felicidade e o sofrimento. Eles, mesmo que pareçam acomodados ou até confortáveis em suas vidas comuns, estão no fundo, na percepção do bodisatva, como alguém com o cabelo em chamas: uma situação urgente de desespero que não permite nem mesmo considerar o que fazer para prover alívio a si próprio.

Portanto, Shantideva diz no Caminho do Bodisatva que alguém que realmente considera o sofrimento dos seres, e entende o que é samsara – a experiência cíclica de insatisfatoriedade –, essa pessoa deveria sentir ânsia de vômito perante a perspectiva de vencer as próprias aflições mentais com a mera motivação autocentrada de atingir um estado de paz definitivo. Ela tem que sentir ânsia de vômito perante a motivação hinayana de atingir isto, que é chamado de nirvana.

A principal renúncia do caminho mahayana é ao próprio nirvana. E isso não quer dizer aceitar o samsara. O bodisatva pratica além dos extremos de samsara e nirvana – nem buscando felicidade na experiência cíclica (porque sabe que isso é impossível), nem buscando um estado de paz definitivo que o impede de agir diretamente em benefício dos seres. Como já escrevi, iluminação e nirvana são conceitos diferentes.

Embora muitas vezes as pessoas procurem os centros budistas esperando paz e simplicidade, na verdade o caminho mahayana envolve o voto de nunca abandonar os seres por eles mesmos no sanatório de paredes pintadas com excrementos que é o samsara. E embora o hinayana possua o conceito de compaixão e efetivamente trabalhe para beneficiar os seres, a diferença entre uma motivação focada no próprio autodesenvolvimento, e outra que tem a coragem de já começar olhando para os outros em primeiro lugar é o que faz uma coisa ser considerada estreita e a outra ampla.

Mas de onde vem essa capacidade? Como alguém pode conceber uma coisa grandiosa assim? Como alguém pode chegar a ter ânsia de vômito ao considerar o resultado máximo do hinayana, o nirvana? E como manter amor e proximidade com os seres difíceis e ranhentos, enquanto se poderia permanecer numa santidade nobre e isenta?

Isso só é possível porque, no mahayana, a base dessa coragem é o próprio resultado. Isto é, a presença viva do próprio resultado desde o princípio. A intenção iluminada, só é possível por causa da “mente da iluminação” – as duas coisas são traduções de “bodicita”. Ela é uma coisa já presente, e uma coisa que revelamos ou desenvolvemos. Não é algo criado de causas e condições, embora causas e condições a acessem. Como a mente desperta já está presente em pelo menos certo sentido, samsara e as aflições mentais não são algo sólido – não são um inimigo real. Ainda assim, os seres tomam estas coisas por sólidas, e por isso sofrem. Ir, portanto, para um estado de paz desconectado dos seres não é uma opção. O nirvana também é reconhecido como algo não sólido, nada mais que um ensinamento expediente do Buda para seres pouco corajosos. Crucial para eles, mas abjeto para quem viu um lampejo da natureza de Buda, em si mesmo e nos seres que sofrem tanto por não reconhecê-la.

Tecnicamente falando, o caminho do bodisatva coloca ênfase na manifestação de qualidades incomensuráveis, tais como amor, compaixão, equanimidade e alegria. Apenas em segundo lugar, usa antídotos quanto aos kleshas, ou aflições mentais, tais como a raiva e o orgulho. E o diferencial não é só a ênfase: a motivação hinayana para se libertar dos kleshas é apenas parar de sofrer – considera-se, é claro, que provavelmente há algum benefício incidental aos outros em fazer isso, porque pelo menos provê um exemplo aos seres. Porém, azar o deles se não conseguem conceber isso ou não vão com sua cara! Já a motivação mahayana, mesmo quanto a usar antídotos contra os kleshas, é altruísta em princípio, e isso envolve quaisquer meios hábeis disponíveis. O foco não é se safar do samsara, esquecer os seres e partir para uma gandaia livre de incomodações.

Mas como o bodisatva pode, em meio a esse suposto “fardo”, ser alegre, ou ter autocompaixão? Na visão mahayana, uma realização como o nirvana é inferior porque ainda reifica, por projeção, o samsara. O samsara cresce como bicho papão na mente do ser que espera se livrar dele. Algumas vezes se usa a expressão “não dualidade”, e se frisa o fato de que nirvana é apenas uma contraposição ou negação do samsara, só existindo em relação a este. Além disso, o cultivo dessa coragem compassiva no mahayana ganha tons quase marciais em Shantideva: é a proximidade com o samsara que efetivamente nos inspira a avançar. Samsara é um professor. Shantideva fala daquele lutador, que, ao ser ferido pelo oponente, em vez de desanimar, luta com ainda mais gana. A visão do próprio sangue brotando do ferimento recém-recebido revela recursos de energia antes aparentemente inacessíveis. Nossas cicatrizes no ringue do samsara são nossos distintivos e nossa inspiração. Esta é a atitude do mahayana. A confiança na intenção iluminada, na iluminação subjacente de todos os seres – a natureza de buda – é uma panaceia universal, e nenhuma encenação dolorosa no palco do samsara é capaz de a abafar ou a fazer menor. Pelo contrário, quanto mais o bodisatva se engaja no samsara, maior sua compaixão, mais a intenção iluminada brilha.

E existe regozijo tremendo nessa perspectiva. O burnout daqueles que se colocam numa posição de compaixão fabricada não pode surgir no “espírito esportivo” de ver o samsara como inerentemente ilusório. Um mero sonho, uma bolha.

Assim, sentir-se “atropelado pelo samsara” repetidas vezes só nos revela o quanto ainda reificamos essa experiência cíclica, e o quanto ainda acreditamos que em algum lugar dela poderemos encontrar felicidade. Há uma esperança autodestrutiva em esperar uma solução na perspectiva do samsara. E o bodisatva não é masoquista, ele não busca ser atropelado pelo samsara (que tipo de benefício isso traria?). Apenas que, na medida em que o sofrimento venha, ele necessariamente surge como uma revelação de um aspecto de sabedoria que havia sido encoberto. Milarepa não tinha quase nada no mundo, mas um de seus objetos queridos era a tigela com que se alimentava de sopa de urtiga. Um dia essa tigela quebrou e Milarepa gargalhou e seguiu cantando com lágrimas de felicidade. Ele ainda acreditava em algum tipo de permanência, e a tigela quebrar lhe ensinou algo sobre a realidade das coisas. A bondade de seu professor o comoveu e produziu êxtase, com a quebra de uma tigela velha e suja.

Por acaso já não sabíamos que ia ser assim? Por acaso achávamos que há algum lugar seguro fora da intenção iluminada, que reconhece todas as aparências como um sonho? A prática do bodisatva produz necessariamente a equanimidade no êxtase inerente às coisas como elas são. Nada supera a felicidade da sabedoria.

Tudo reconverte para essa base. Compaixão e autocompaixão são a exata mesma coisa. Na realidade, os seres nunca foram separados. Agora, quando o martelo bate em nosso dedo, isso dói, porque é “nosso dedo”. Caso bata no dedo do outro, temos uma reação de dor por empatia, mas não dói realmente em nós. Isso é assim porque não usufruímos de sabedoria. Nossa ignorância é que produz essa separação absolutamente artificial.

A compaixão é boa até mesmo para o hinayana, onde ela nos ajuda no caminho. Temos compaixão para termos uma mente mais tranquila e praticarmos melhor. No mahayana a compaixão não vem com essa negociação – ainda que o benefício seja do mesmo tipo, apenas que infinitamente maior. Compaixão é reconhecer a realidade da inseparabilidade com todos os seres. O que é idêntico à sabedoria.

Estritamente falando, um praticante do hinayana que tome refúgio com devoção no Buda e se engaje corretamente nas práticas, atinge o nirvana em no máximo sete vidas de prática. O mahayana, no entanto, segundo os textos, demanda três incontáveis eras de renascimentos com prática incansável em benefício dos seres – o que para o Buda Sakyamuni foram 500 vidas, e para nós mesmos possivelmente sejam ainda mais – para atingir a iluminação completa. O mahayana parece um mau negócio, não é mesmo?

Parece um mau negócio porque não somos capazes de inferir a bem-aventurança que é se engajar dessa forma no benefício dos seres. Em certo sentido, é um pouco como quando a moça mais bonita nos dá bola, mas não acreditamos nisso, porque, afinal de contas, não pode ser. Não merecemos tudo isso. Nossa falta de confiança se torna uma profecia autorrealizada, e então nos consolamos dizendo que provavelmente ela nos faria sofrer.

As coisas muito boas, até mais do que as coisas muito ruins, nos fazem sair de nossa zona de conforto. E o mahayana é assim: tudo é cheio de bem-aventurança, se apenas abandonamos qualquer expectativa ligada a uma zona de conforto – seja espiritual, seja mundana. Essa é a coragem magnânima dos bodisatvas – mas é uma simples confiança na própria natureza de buda, que não é diferente da própria sabedoria.

Para quem essas incontáveis vidas de trabalho pelos seres, versus sete vidas de prática, seriam um mau negócio? O seu nirvana produz algum pequeno benefício aos outros, isso é inegável. Você não os incomoda mais, e um ou outro pode se inspirar. Porém a expressão completa de um buda é incomensuravelmente mais benéfica.

Mais do que isso, mesmo um bodisatva no início do caminho produz mais benefício aos seres do que alguém que tenha meramente atingido o nirvana. Apenas por esses dois aspectos, a mente ampla de coragem e compaixão já deveria saber fazer uma escolha sábia entre os dois veículos. Mas o fato é que essa coragem e compaixão espelham o buda já presente – essa coragem e compaixão são sua própria expressão. Renunciar ao nirvana é o ato de um ser iluminado.

O que é o tempo senão uma característica do samsara, onde tudo é uma projeção do não reconhecimento da própria natureza? Como o bodisatva vê tudo à frente como um sonho, que diferença faz a duração do sonho?

Mas o samsara tem mesmo um fim? O Buda não respondia essa pergunta. E é fácil entender por quê.

“Samsara” é um ensinamento expediente. Para os seres que precisam entender os próprios obstáculos, um mundo com causalidade, espaço, tempo, seres e sofrimento é detalhado. Ao fazer essa descrição, como um adendo pouco importante, acrescenta-se “mas é só um sonho”. Caso a pessoa reifique demais o samsara e seu sofrimento, ela vai acabar ansiando por algo menor como o nirvana. Algo que seja o oposto do samsara. Então, para seres com maior acúmen, o Buda frisa justamente a natureza ilusória do samsara. Para seres com menor acúmen, ele oferece uma cenoura na forma de um resultado individual.

Samsara e nirvana não existem, eles são ensinamentos sobre enganos que podemos cometer. São enganos particularmente renitentes e intensos — particularmente brilhantes e intensos, fantásticos e aterradores –, mas nada mais que enganos.

O bodisatva, portanto, penetra no próprio engano com a espada de sabedoria, e assim alegremente corta as conexões dos seres com a reificação a seus estados particulares. Se ele projeta um tempo, é um tempo enorme de regozijo na virtude. Se ele não projeta um tempo, é o próprio repouso na intenção iluminada. Bodisatvas corajosamente abandonam qualquer expectativa de resultado. Que dizer aplauso ou recompensa. A alegria é exercer a intenção iluminada. Essa é a única recompensa.

Na perspectiva vajrayana, que é ainda mais sofisticada, fazemos o voto de não distinguir budas e bodisatvas. Afinal de contas, na visão atemporal, além dos enganos, todos surgem como expressões consumadas da intenção iluminada. De fato, podemos adicionar também todos os seres sencientes, mesmo os totalmente perdidos e sem caminho espiritual algum, ou mesmo qualquer tipo de coerência, positiva ou negativa — já que eles tem esse potencial completo, e na visão vajrayana, até mesmo totalmente já expresso –, apenas não reconhecido. E esse reconhecimento da natureza pura de tudo é a própria prática do vajrayana.

A pergunta “samsara tem um fim” não faz sentido porque início e fim fazem parte do samsara. Na perspectiva da sabedoria, samsara é só um ensinamento expediente – um remédio que damos para alguém com uma doença específica, e que deve parar de ser tomado assim que a pessoa melhore. Nirvana, por sua vez, é um remédio ainda mais específico – para certo tipo de praticante que foi além da perspectiva mundana com que o primo do Buda começou, mas que ainda está preso a certos conceitos sobre separação dos seres e solidez do samsara, e do tempo e do espaço, assim por diante.

No mahayana samsara e nirvana não só são de uma só natureza (projeções da mente), eles são extremos a serem evitados. Não se perturbar no samsara só é possível porque não acreditamos no samsara, mas repousamos na intenção iluminada. Não cair na paz abjeta do nirvana só é possível porque não abandonamos a compaixão pelos seres que não reconhecem sua própria natureza. O bodisatva não reifica, e assim, ele não está no samsara enquanto age no samsara, e ele não se afasta do nirvana, embora nunca adentre o nirvana. Esse estado é uma expressão da intenção iluminada, que é inata no sentido mais profundo, de não ser algo que começa (e muito menos termina). É a própria sabedoria, e a própria realidade que essa sabedoria reconhece.

O Sutra da Coração da Prajnaparamita, diz que, na realidade:

Não há ignorância, nem extinção da ignorância, nem [os elos subsequentes] até velhice e morte ou extinção da velhice e morte. Do mesmo modo, não há sofrimento, origem [do sofrimento], extinção [do sofrimento], ou caminho [para a extinção do sofrimento]. [Não há as Quatro Nobres Verdades].

Não há sabedoria, realização ou sequer não realização.

Portanto, Sariputra, uma vez que os Bodisatvas não têm nada para atingir, eles repousam na confiança na Prajnaparamita. Uma vez que não há obscuridades mentais, não há medos, e indo completamente além de qualquer engano, atingem a liberação.”

Os incontáveis seres a serem liberados já estão libertos no reconhecimento de tudo como um sonho puro. Ainda assim, na mera não elaboração, os bodisatvas exibem comportamento compassivo incessante como expressão natural de seu reconhecimento duplo. Isto é, o reconhecimento de que não há nada a atingir, e a confiança na sabedoria; o reconhecimento de que os seres se enganam, e o reconhecimento de que nenhum engano pode ser permanente.

eduardo-pinheiro-1Padma Dorje é praticante budista e autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos.  Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org.

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  • “uma vez que os Bodisatvas não têm nada para atingir, eles repousam na confiança na Prajnaparamita”
    E-ma-ho
    Om gate gate paragate parasamgate bodhi svaha