O aspecto de clareza Dzongsar Jamyang Khyentse Rinpoche

Assim que falamos sobre um caminho como o budismo, pensamos a respeito de sua linha de chegada — algum tipo de resultado ou objetivo. Porém no Mahayana não há objetivo. No Sutra Prajnaparamita, por exemplo, ouvimos que “Forma é vazio, vazio é forma. Sem olhos, sem ouvidos…” e tudo mais. Não há nada a se obter. E não há “não nada” a se obter.

O caminho Mahayana é como descascar camadas de pele e finalmente descobrir que não há semente dentro. Temos que obter liberação dessas peles, mas isso é algo difícil de fazer — amamos nossas peles. Quando crianças, um castelo de areia é uma coisa muito importante para nós. Depois, aos dezesseis anos, o skate é muito importante, e a essa altura o castelo de areia já se tornou uma pele apodrecida. Tudo isso são camadas de pele. E mais importante: até mesmo os caminhos que praticamos são todos camadas de pele, que utilizamos para nos ajudar a descascar as outras peles. A pele interna ajuda a pensar sobre a pele externa e nos motiva a descascá-la. Mas no caminho Mahayana, em última instância, deve-se estar livre de todos os sistemas, de todas as peles.

Mas o que acontece quando todas essas peles tiverem sido descascadas? O que resta? Será que a iluminação é uma negação total, como a extinção de um fogo ou a evaporação da umidade? Será que é algo assim? Não, estamos falando de algo que é o resultado de uma eliminação. Por exemplo: se a sua janela está suja, você pode limpá-la e remover a sujeira; então, na ausência de sujeira, a janela é rotulada de janela “limpa”. Não há nada além disso. O fenômeno que estamos chamando de “janela limpa”, a qualidade que consiste na ausência de sujeira, não é algo que produzimos ao limpar a sujeira. Eu não acho que deveríamos sequer chamar isso de “janela limpa”, porque a janela em seu estado original nunca foi manchada pelos extremos de sujeira ou limpeza. Não obstante, o processo de se desfazer da sujeira pode ser rotulado como o surgimento da janela limpa.

Aqui estamos falando de natureza búdica — e se quiser saber mais sobre ela, o Shastra Uttaratantra de Maitreya é o texto que você precisa estudar. É importante tomar cuidado ao estabelecer a ideia de natureza búdica, porque caso contrário ela pode acabar se tornando algo como um atman ou uma alma verdadeiramente existente. Os shastras Mahayana falam sobre as qualidades da liberdade, ou eliminação, tais como os dez poderes, os quatro destemores, as trinta e duas marcas maiores, as oitenta marcas menores, e por aí vai. Se não tomar cuidado, você pode começar a pensar sobre a natureza búdica de uma forma teísta — ou seja, em termos das qualidades de um deus, uma alma ou uma essência permanentes. Porém todas essas qualidades, mencionadas nos shastras Mahayana, são simplesmente qualidades da ausência de sujeira.

Quando falamos do resultado da eliminação, automaticamente pensamos que estamos nos referindo a algo que vem depois: primeiro ocorre a eliminação e em seguida vem seu efeito. Mas não estamos, de forma alguma, falando disso, porque nesse caso estaríamos caindo em um extremo eternalista ou teísta. “Eliminação” implica em ter algo para eliminar. Entretanto, no Prajnaparamita entendemos que não há nada a eliminar — e essa é a grande eliminação. O resultado dessa eliminação não é obtido depois. Ele está sempre lá, e por isso é chamado de tantra, ou “contínuo”. Essa qualidade permanece ao longo da base, do caminho e do resultado. A janela continua desde antes da sujeira estar presente, enquanto a sujeira está sendo lavada, e depois da limpeza ter sido completada. A janela sempre foi livre dos conceitos de sujeira e de liberdade da sujeira. É por isso que os sutras Mahayana dizem que o resultado está além da aspiração. Você não pode torcer ou rezar pelo resultado da eliminação, porque ele já está lá; ele continua o tempo todo, e portanto não há necessidade de aspirar a ele.

A essência de todos os ensinamentos do Buda é a vacuidade, ou originação interdependente. Nada surge, permanece ou cessa independentemente. Portanto, não há nada permanente. Não existe um eu verdadeiramente existente. Tudo que pensamos que existe, ou que não existe, ou ambos ou nenhum dos dois — todas essas coisas são fabricações da nossa mente. Nós as fabricamos e depois nos apegamos a elas. Porém não percebemos que são nossas fabricações. Acreditamos que são reais, mas basicamente toda concepção ou apego que temos é algum tipo de processo fanático. Os sutras Mahayana ensinam a vacuidade, ou shunyata, para nos levar além de todos esses extremos e fabricações.

Quando falamos sobre vacuidade, algo além da fabricação, imediatamente pensamos em um estado de existência que não possui função alguma, como um rato de sofá ou um pedaço de pedra, mas isso é totalmente incorreto. Esse algo não é meramente uma negação, eliminação ou recusa. Não é como a extinção de um fogo ou a evaporação da água. Ele é plenamente funcional, e nós chamamos essa função de atividade búdica, que é um aspecto da natureza búdica. Essa natureza possui um aspecto de sabedoria ininterrupta. Eis a dificuldade, porque assim que falamos em sabedoria, pensamos em termos de cognição e dos sentidos e seus objetos sensoriais. Temos curiosidade em saber como um buda percebe as coisas. Entretanto, embora a natureza búdica aparentemente seja algo cognoscente, ela não possui objeto, e portanto não pode ser um sujeito. Além disso, ela não é inanimada — e tampouco é animada, no sentido da mente. É por isso que o Shastra Uttaratantra na verdade é complementar aos ensinamentos Mahasandhi (Dzogchen), que sempre dizem que mente e sabedoria são separadas — a mente dualista de sujeito e objeto é separada da sabedoria não-dual, que não é outra coisa senão a natureza búdica.

Você pode dizer que quando Nagarjuna explica o Prajnaparamita, ele se concentra mais no aspecto de vazio, ao passo que quando Maitreya explica a mesma coisa ele se concentra mais no aspecto de “-dade”. Esse “-dade” é a natureza búdica. Você pode se perguntar porque o Buda ensinou nos sutras que todos os fenômenos são como nuvens — instáveis, naturalmente ilusórios e vazios. Porque será que, ainda que possamos experienciá-los, eles não possuem essência, como um sonho ou uma miragem?

Por que tudo isso é ensinado como vacuidade nos ensinamentos Madhyamaka e no Sutra Prajnaparamita? E, como Mipham Rinpoche pergunta em seu comentário ao Shastra Uttaratantra, por que nesse terceiro giro da roda do dharma o Buda diz que essa natureza búdica existe dentro de todos os seres sencientes? Isso não é uma contradição? Além disso, como a natureza búdica é muito difícil de compreender, até mesmo para seres sublimes que estão no caminho, porque ela é ensinada aqui para seres ordinários? Vamos ao texto de Maitreya:

Ele havia ensinado em vários lugares que qualquer coisa cognoscível é sempre vazia, como uma nuvem, um sonho ou uma ilusão. Então porque o Buda declarou que a essência da budeidade existe em todo ser senciente? (Estrofe 156)

Em primeiro lugar, não há contradição entre o segundo giro da roda do dharma, no qual o Buda ensinou que todas as coisas são vacuidade, e o terceiro giro da roda, no qual o Buda ensinou que todos os seres sencientes possuem a natureza búdica. Nos Sutras Prajnaparamita do segundo giro, o Buda enfatiza que nada é verdadeiramente existente. Portanto, quando o Buda diz aqui que a natureza búdica existe, ele não está dizendo que a natureza búdica existe verdadeiramente. Na verdade, ele está enfatizando seu aspecto de clareza. Quando falamos sobre a união de clareza e vacuidade, é importante que compreendamos os dois aspectos, e não apenas o aspecto de vacuidade.

Além disso, os ensinamentos do Buda sobre a natureza búdica lidam com cinco enganos específicos, para neutralizá-los:

Existem cinco enganos: pusilanimidade, desprezo em relação aos de menor habilidade, acreditar no que é falso, falar erroneamente sobre a verdadeira natureza, e estimar a si mesmo acima de todo o resto. Para que aqueles nos quais os aspectos acima estavam presentes pudessem se livrar deles, isso foi declarado. (Estrofe 157)

Em geral, ao longo do budadharma, e especialmente no Mahayana, a coisa mais importante é gerar a mente iluminada. Se você ler o Sutra Bhadrakalpa (o Sutra da Era Afortunada), você vai ouvir sobre como, no princípio, mil budas geraram a mente iluminada. Gerar a mente iluminada é uma promessa, ou um compromisso, de iluminar a si mesmo e todos os seres sencientes — e para praticantes no caminho é a coisa mais importante. Por exemplo: quando você ora, porquê a oração funciona? Ela funciona por causa dessa determinação, desse compromisso de ajudar os seres sencientes. Tudo se baseia nisso. Portanto, existem cinco motivos para ensinar sobre a natureza búdica, cada um lidando com um desses enganos — e esses cinco motivos são totalmente voltados para nos ajudar a cumprir esse compromisso.

Primeiramente, se a natureza búdica não fosse enfatizada, então um bodhisattva no caminho poderia sentir-se desencorajado, porque o caminho é longo, duro e interminável. Além disso, a pessoa poderia desprezar a si mesma, pensando “Como alguém impuro e inútil como eu pode alcançar a iluminação?”. Bodhichitta — a vontade de iluminar todos os seres sencientes — não irá surgir em pessoas que sintam esse tipo de desencorajamento e que desprezem a si mesmas.

Quando sabemos que a natureza búdica está dentro de nós, como uma moeda de ouro enterrada na lama, isso gera um grande encorajamento. Sabemos que a iluminação é possível porque a natureza búdica está dentro de nós. Isso traz alegria para o caminho. Se não soubéssemos que existe uma estátua de ouro dentro do molde, não haveria alegria em quebrá-lo. Mas quando sabemos, o desejo de encontrar a estátua dentro é tão grande que nem sequer notamos o processo de quebra do molde — que é gerar a mente iluminada.

Em segundo lugar, como bodhisattvas temos que beneficiar todos os seres sencientes. Se não soubermos que a natureza búdica reside dentro de todos, talvez não respeitemos os outros. Ao invés disso, talvez pensássemos que somos ótimos porque somos bodhisattvas, e então desprezássemos os outros seres sencientes. Isso poderia se tornar um grande obstáculo, nos impedindo de beneficiar outros seres.

Imagine que você pense ser um bodhisattva que possui a natureza búdica e que os outros seres sencientes não a possuem — e, portanto, precisam da sua ajuda. Você acha que precisa inserir o buda dentro deles de alguma forma. Isso é um engano enorme. É o que nós chamamos de exagero ou imputação. A visão budista é que todos possuem a natureza búdica. Ela não vai mudar. Ninguém, nenhum guru, nenhum Buda pode inseri-la. O máximo que alguém pode fazer é se tornar um tipo de caminho para possibilitar que as pessoas a realizem por si mesmas.

O terceiro motivo para que a natureza búdica seja ensinada é dissipar os obstáculos que nos impedem de ter prajna. Existem dois desses obstáculos. O primeiro é a imputação: ainda que não exista uma natureza búdica, nós imputamos ou imaginamos sua existência pensando que todas essas qualidades búdicas existem, como o ushnisha, a protuberância no topo da cabeça do Buda, que simboliza sua grande sabedoria e iluminação. Mas elas não existem.

Também precisamos superar o segundo obstáculo à sabedoria: pensar que as qualidades búdicas não existem, ou que não existem qualidades búdicas dentro de nós, o que é um tipo de crítica. Essa é o quarto motivo para que a natureza búdica seja ensinada.

Por fim, o quinto motivo é dissipar os obstáculos que nos impedem de compreender que nós somos iguais aos outros. Se não soubermos que a natureza búdica existe igualmente dentro de todos os seres, pode ser que tenhamos mais apego a nós mesmos e mais aversão aos outros.

Essas são os cinco motivos pelos quais a natureza búdica é ensinada.

A natureza búdica é pura e livre de todos os tipos de fenômenos compostos, desde o princípio.

A verdadeira natureza última é sempre desprovida de qualquer coisa composta, portanto diz-se que as impurezas, o karma e sua plena maturação são como uma nuvem, etc. (Estrofe 158)

Portanto, a natureza búdica é livre dos três tipos de emoções: desejo, agressão e inveja. Ela é livre das emoções de formação kármica, como as ações virtuosas e não-virtuosas. E ela é livre do resultado das emoções, os cinco agregados. Portanto, as emoções são como nuvens.

Diz-se que as impurezas são como nuvens, o karma é equiparado à experiência dos sonhos, e a plena maturação do karma e das impurezas — os agregados — são equiparados a conjurações. (Estrofe 159)

A natureza dos seres é primordialmente pura; é por isso que a chamamos de natureza búdica. Embora as emoções sejam fingidamente aparentes e fingidamente teimosas, parecendo uma segunda natureza, elas nunca o são de fato. Elas são como nuvens adventícias, e não uma parte verdadeira sua. Esse ponto é bem importante. No budismo nós sempre chegamos à conclusão de que essas emoções e impurezas são temporárias. Quando estamos olhando para um céu cinzento e nebuloso, talvez o chamemos de céu nebuloso, mas ele não é realmente um céu nebuloso. As nuvens nunca são o céu. As nuvens são temporárias ou adventícias.

A próxima parte é crucial para nossa compreensão de karma. Como as emoções são temporárias, aquilo que chamamos de karma ou ação é como um sonho. Isso é importante porque muitas pessoas pensam que o karma é quase uma espécie de substituto para Deus. Eles acham que é como alguém que te pune, te recompensa e decide o seu destino. Mas no budismo nunca é assim. Na verdade, o karma é como um sonho. Em um sonho você pode vivenciar todo tipo de êxtase, mas não importa o quão ofegante e suado você fique, é apenas um sonho.

Quando dizemos “É apenas um sonho”, há às vezes uma conotação de que nós o desprezamos por não ser real. Mas também não é assim. Se você se apaixonar por um elefante de sonho, então no próprio sonho você irá passar pelo êxtase de conhecer o elefante, a tristeza de sentir saudades do elefante e, eventualmente, a agonia de não ter mais o elefante. É assim que o karma funciona.

Essa estrofe é um grande resumo do budismo. As emoções são temporárias, então a ação é como um sonho, e portanto os agregados o resultado das emoções e da ação são como uma miragem: quanto mais você se aproxima deles, mais fúteis ou sem essência eles se tornam. Nós nos esforçamos tanto para chegar perto do elefante, mas ainda que haja um noivado, uma troca de anéis, uma cerimônia de casamento, ou o que quer que seja, o elefante continua sendo uma miragem.

Para enfatizar isso, o Buda ensinou a vacuidade nos primeiros giros da roda do dharma. No Sutra Prajnaparamita, por exemplo, ele disse que forma é vazio, vazio é forma, e tudo é como uma miragem ou um sonho, e por aí vai. Então, depois disso, a fim de dissipar os cinco tipos de obstáculos ou quedas, o Buda ensinou a natureza búdica no terceiro giro da roda do dharma.

Agora chegamos ao benefício de ouvir sobre a natureza búdica. Quando ouvimos falar da natureza búdica, sentimos alegria ou entusiasmo em relação ao caminho, porque sabemos que a iluminação é possível. Até mesmo um cão, já que possui a natureza búdica, é digno de  reverência. Não importa quantas emoções você tenha em erupção dentro de si, você saberá que elas são removíveis. Isso é sabedoria. Ao mesmo tempo, você saberá que todas as qualidades do Buda se encontram dentro de você isso é sabedoria primordial.

Então quando ouvir, ler ou enxergar qualidades búdicas maravilhosas, você não irá tratá-las como algo separado de você, pensando “Bom, eles são assim, mas eu sou diferente.” Você não irá pensar coisas desse tipo porque sabe que todas as qualidades do Buda, até o último fio de cabelo, existem dentro de você. Não existe nada para te fazer sentir inveja ou cobiça, porque você possui tudo. E quando você sabe que todo mundo possui a natureza búdica, a bondade amorosa cresce. Você consegue ver como a vacuidade isolada não te permite fazer essas coisas?

Portanto, qual é o efeito de saber que você possui essas grandes qualidades? Você sente confiança, e então a negatividade — literalmente: “as indizíveis ações negativas”— não pode te dominar facilmente. Você se torna um desconhecido para a negatividade, e desconhecidos possuem algum tipo de dignidade. Quando se é um desconhecido, os outros não possuem acesso a você. Eles não chegam e se sentem em casa com você, porque você tem coragem. O segundo efeito de saber que possui a natureza búdica é que você não vai olhar com desprezo para aqueles que estão desamparados, pensando que são inferiores a você. Você não terá arrogância, nem tampouco irá se sentir inferior quando encontrar um ser sublime, alguém que tenha alcançado muitas coisas. Não existe razão para se sentir inferior; você possui tudo que esse ser sublime possui. Você não tem mais nem menos do que o Buda Shakyamuni ou do que qualquer um dos mil budas. Basicamente, devido à natureza búdica, não há mais nenhum complexo de inferioridade ou superioridade.

Quando as negatividades surgirem, você saberá que elas não são verdadeiramente existentes. Quando coisas boas surgirem, tais como pequenos sinais das qualidades iluminadas, você não ficará empolgado, porque sabe que já as possui. Então existe a bondade amorosa. Com tudo isso, você irá alcançar a iluminação.

Tradução de Gabriel Falcão; revisão de Gustavo Gitti e Luís Oliveira do texto originalmente publicado no site Lions Roar.

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