O que é ser um bom praticante Padma Dorje

Você diz num vídeo algo como “não sou um bom praticante…” fiquei intrigada com isso…

Partindo do princípio que você mesmo ventilou de que a prática é usar hábitos contra hábitos até superar os hábitos, desde que tudo faça sentido realmente e a gente passe a se mover no mundo com esse olhar, isso em si não é a prática? Não está tudo intrinsicamente ligado?

Essa resposta tem três partes. A primeira coisa a esclarecer é a tradição budista, mas particularmente tibetana, de autorrebaixamento. Então é preciso dizer um pouco sobre proporções e magnitude, e o fato de se estar satisfeito com a própria prática ser visto como um obstáculo. Enfim, é preciso explicitar a diferença, que existe apenas para iniciantes como eu, entre prática formal e prática informal, e talvez tentar dizer o que é efetivamente prática para um iniciante.

  1. A humildade dramática dos grandes professores

Peço desculpas, uma vez que sou uma pessoa arrogante, totalmente imersa numa cultura arrogante — em que o atual presidente dos Estados Unidos da América xinga civis por serem feios, pobres e burros — e sou portanto incapaz de expressar humildade verdadeira, mesmo sendo efetivamente muito menor do que até mesmo na minha falsa humildade me caracterizo.

Sou mesmo uma pessoa arrogante. Você pode perguntar a qualquer pessoa que me conheça, todos naturalmente se sentem burros ao meu redor — e não é porque sejam necessariamente burros mesmo (o que poderia até ser o caso!), mas porque minha pomposidade e falta de condescendência para com a situação alheia (veja só como escrevo!) naturalmente os faz se sentir mal. Sempre foi assim, e sob muitos aspectos, sou bem pior que Donald Trump. Mais grosseiro, mais sem noção.

Porém eu tive o mérito de ser exposto a alguns professores e a alguns textos da tradição budista, e aos poucos eu comecei a imitar como um macaco desajeitado seus trejeitos sublimes. Evidentemente que o mero imitar, essa falsa humildade, tem o pequeno mérito de gerar interdependência e treinar a mente. O pequeno mérito de ser pelo menos uma forma fabricada de devoção.

É claro que, nessa cultura de Trump, as pessoas não entendem. Elas são incapazes de reconhecer e regozijar na confissão pública de faltas, ou no autorrebaixamento. Elas acham que é falta de autoestima ou algo assim, enquanto que, na verdade, é simplesmente uma forma elegante de se portar no mundo. Se você sabe de uma qualidade sua, você esconde bem; se você sabe de uma falta, você alardeia para todos — é assim que os mestres da linhagem de Atisha foram ensinados, e é isso que eu aspiro poder sempre praticar.

As pessoas nesse mundo treinam o oposto, e nem entendem quando surgem bons exemplos. Sem a perspectiva do darma sublime, elas particularmente não entendem se há algum tipo de honestidade dramática em jogo – em que não há nenhuma falsidade em dizer como e o quanto se é podre, porque se sabe o quanto isso é bom para a própria prática, e o quanto é liberador.

Talvez eu não recomende se portar assim numa entrevista de emprego, ou tentando conquistar alguém por quem se tem atração (nesse caso, com bom humor, às vezes a autodepreciação também funciona) – mas ao falar de sua conexão com o darma? Sim. Se o Dalai Lama é apenas um monge, um mero ser humano nesse planeta, pode ser que eu soe muito pretensioso ao dizer que gostaria de um dia pertencer à linhagem de Atisha. Com relação a esconder as próprias qualidades (se é que há alguma!) e expor as próprias falhas, eu sempre recomendo tentar superar o Dalai Lama. Essa arrogância de treinar a mente para ser um praticante melhor do que o Dalai Lama na linhagem de autodepreciação de Atisha é algo que recomendo a todos.

Podemos começar com falsa humildade, que a ideia é que depois de um tempo se torne bem natural esconder as qualidades e berrar para todos as próprias faltas. Isso funciona melhor quanto mais verdadeiras forem as qualidades e as faltas, escondidas e alardeadas respectivamente – quanto mais honestidade existir – mas podemos começar com algum grau de falsidade, e, para mim mesmo, como sou bem iniciante, é muito evidente que apenas sou capaz de praticar a falsa humildade. Bem falsa, bem desonesta. É evidente a todos que me acho o máximo até mesmo ao imitar a prática de humidade de seres sublimes! Eu não precisaria nem mesmo escrever isso, mas é melhor forçar a barra, é melhor esfregar a cara de todos na minha torpeza, de forma que a pura vergonha um dia me leve a efetivamente praticar o que Atisha ensinou.

Infelizmente, nestes tempos de degenerescência há até aqueles que ostentam títulos de professor e não se engajam nessa prática. Tempos de Donald Trump, tempos deselegantes.

 

  1. O alvo é sempre mais acima

A principal função de se ter um professor, de usar a ideia de professor no caminho, é projetar nele as qualidades que você quer para si mesmo. Ajuda muito que esse ser tenha mesmo pelo menos uma boa parte do que você projeta. Então, não é adequado nos contentarmos com professores menores.

Efetivamente, a mente comparativa não é boa. Mas se ela está aí, vamos usar a nosso proveito. Será que eu quero mesmo estar satisfeito com minha prática atual? A minha prática possível é medida pela diligência de Milarepa, pela sabedoria de Longchenpa, pela erudição de Tsongkhapa, pelo poder de Virupa. Se eu vou me comparar com alguém, vou fazer isso para melhorar minha aspiração à prática — não vou aspirar só ter a mesma prática do meu colega de sanga um pouco mais diligente. Melhor usar os exemplos mais extremos que conhecer, aspirar é de graça.

Se Guru Rinpoche, que já surgiu iluminado neste mundo, nunca precisou de prática, mesmo assim praticou diligentemente para dar exemplo, como eu vou ficar satisfeito com o que eu faço?

Esse é um Mara na prática – achar que já se ouviu o suficiente, que já se meditou o suficiente, que já sabe direito o que está fazendo e onde se pode chegar (não muito longe, achamos). Temos que aspirar de forma mais vasta, não achar que é suficiente. Reconhecer o quanto se está perdido no samsara é o que nos levou ao darma em primeiro lugar. Nunca devemos nos sentir satisfeitos com relação ao que podemos estar fazendo com relação ao darma. Se Guru Rinpoche, que manifestava resplandecente os três kayas sem esforço ou parcialidade, não demonstrava estar satisfeito com o que podia fazer pelos seres ou pela prática, eu não quero nada menos do que isso para mim mesmo.

 

  1. O que é prática?

Tanto seres sublimes quanto falsos professores, os dois, podem passar a ideia de que a prática é fácil. Hoje em dia, aqueles que ostentam títulos de professor algumas vezes nem fazem mais prática formal, se acham acima disso: já teriam integrado completamente a prática na própria experiência cotidiana. Será mesmo? Questionável. Alguns seres sublimes, por outro lado, escondem bem o quanto são diligentes na prática, porque em nossa cultura as pessoas acham qualquer coisa difícil, então eles evitam talvez engendrar uma aversão pelo darma nessas pessoas, nunca revelando o quanto se esforçam formalmente.

Por esses dois motivos, muita gente que se interessa pelo darma nem sequer chegou a ver prática do darma no seu sentido intenso, formal.

Porém, para iniciantes como eu, prática é algo que eu tento fazer na artificialidade de sentar na almofada. De preferência em grupo, por várias horas ininterruptas por dia. Todo dia sozinho. Em grupo, muitas vezes ao ano, muitas vezes ao longo dos anos. É acumular mantras nos sete, oito ou nove dígitos (milhões, dezenas de milhões e centenas de milhões). É esse tipo de compromisso com a prática que iniciantes devem desenvolver. Muito tempo, muitos mantras.

Patrul Rinpoche acumulou 25 vezes o ngondro. E no entanto há gente hoje que deseja entender os ensinamentos profundos sem ter feito sequer 100 prostrações. Se Patrul Rinpoche, que era um mestre renascido e reconhecido, um professor erudito dos ensinamentos mais profundos, acumulou 2.5 milhões de prostrações, parece existir certa soberba no sujeito que chegou ontem no darma e argumenta que acumular prostrações “é um aspecto cultural desnecessário”.

Novamente, algumas vezes um ser sublime desses deixa escapar uma qualidade, como o fato de que já fez 100 milhões de mantras do guru. E você pensa, “bom, ele é um rinpoche, isso não é para mim”. Mas ele então diz que não está satisfeito com a acumulação dele, e que precisa fazer mais alguns milhões. Ele não está satisfeito com a prática dele, e você, que recém fez seu um, dois ou três milhões, estava começando a ficar satisfeito com a sua? Somos podres! Se nos colocamos nesse caminho para revelar essas qualidades naturais da mente, temos esse exemplo a nossa frente, e nos contentamos com uma prática “suficiente”? Com os seres aí ao redor sofrendo do jeito que estão, cada um deles “sua mãe com cabelos em chamas”, e você com nenhuma capacidade de ajudar efetivamente, ou mesmo dar algum alento no momento da morte pro seu bichinho de estimação ou algum amigo? Você, que se deprime com a morte do seu gato, está satisfeito com a sua prática?

É claro, para seres que atingiram uma estabilidade suprema no resultado, não há nenhuma diferença entre prática formal e prática no cotidiano. Esses podem jogar o mala na latrina, tacar fogo na almofada, parar de estudar. “Integrar tudo que surge no caminho”. Ainda assim, a maioria desses que eu conheço – acho que eu só conheço um ou dois, o Dzongsar Khyentse Rinpoche, por exemplo – seguem, como Guru Rinpoche, fazendo prática formal para dar exemplo aos seres. E não é pouca prática formal. (Aliás, o Rinpoche está sempre dizendo que é preguiçoso. Eu aprendi um pouco dos métodos de Atisha com ele, mas chego a desconfiar que sou talvez mais sincero do que ele quando digo que sou preguiçoso… ai ai ai. Na vida em que num mesmo ano eu lançar dois ou três livros, filmar um longa metragem, e ensinar incansavelmente por meses em tournée ao redor do mundo, mesmo não estando 100% de saúde, eu retorno a essa discussão.)

Então, para iniciantes, quando falamos em prática, estamos falando em sentar, em prática formal. E se quanto a prática formal eu sou um mau praticante, porque não sou diligente, porque faço bem menos do que poderia, porque em 20 anos não fiz quase nada – com relação à prática cotidiana eu sou mesmo alguém que só dorme, come e faz cocô. E não como Jamgon Kongtrul Rinpoche, que sempre dizia isso sobre si mesmo, mesmo sendo tipo um Leonardo da Vinci em termos de produção e impacto no mundo… não, no meu caso, eu sou mesmo assim, eu não tenho nada para mostrar. Eu sou tão podre que termino uma explicação sobre prática dizendo que sou mais sincero que Khyentse e Kongtrul. Esse é o tipo de pessoa com que você está lidando. Cuidado.

Se você quer saber o que é um bom praticante, olhe para um bom exemplo, não olhe para youtuber, celebridade local, “aluno conhecido”, seu parceiro de sanga. Olhe para os realmente grandes que ainda andam pela terra, e olhe para os grandes mestres do passado: Atisha, Guru Rinpoche, Milarepa.

O próprio Buda é o exemplo consumado. Se ele precisou demonstrar ascetismo por vários anos… se ele precisou praticar sob a árvore Bodhi, talvez seja um pouco pretensioso achar que nós tenhamos que nos engajar um átomo menos do que ele em prática formal. É até bem possível que nós tenhamos que fazer mais esforço do que ele.

A cada dia que passa, mais um obstáculo revelado, mais a necessidade de prática se torna urgente. Bom, como dizia o Chagdud Rinpoche, keep going

eduardo-pinheiro-1Padma Dorje é praticante budista e autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos.  Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org.

 

Comentarios:

comments

  • ~omn~

    “- Sinto que me tornei um grande babaca.
    – Babacas têm mania de grandeza.”
    André Dahmer

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  • Long Johnson (The)

    Menos de 300 anos para as consequências do aquecimento global extinguir a humanidade não deixa muita margem para ‘keep going’. Se em 2500 anos surgiram uns 18 anos seres iluminados, talvez em outro kalpa o Budismo reveja a logística da iluminação, pq dessa vez o darma deixou de fora algumas centenas de bilhões de pessoas. Assim como Chagdud Riponche não foi um vagalume em contraste a DKR e o autor do texto, Eddie Pinheiro não é esse praticante desleixado que entende mais de Budismo que Riponche que já renasceu 20 vezes, enganar a mente com aspectos religiosos questionáveis talvez não esteja funcionando. Caso tivesse sido mais efetivo em todo esse tempo, talvez aí sim, haveria espaço pra tanta defesa, por ora, continua o clube do bolinha do tibete.