Oceano de Darma | Chögyam Trungpa Rinpoche por Barry Boyce

Por Barry Boyce | Tradução Alessandra Gusatto

Chögyam Trungpa Rinpoche, uma figura seminal do Budismo no século XX, morreu em 4 de abril de 1987. Nesta edição da Shambhala Sun 2011, Barry Boyce pesquisa seu vasto corpo de ensinamentos e seu impacto duradouro sobre como o Budismo é entendido e praticado.

  1. Além do Materialismo Espiritual

No verão de 1968, um monge tibetano de vinte e nove anos viajou da Escócia para o Butão para fazer um retiro em uma caverna pequena e úmida em um alto precipício, um lugar onde Padmasambhava, que trouxe o budismo ao Tibete, praticou 1.200 anos antes. Ele trouxe consigo um de seus pequenos grupos de estudantes ocidentais. Para o aluno, foi uma viagem exótica cheia de dificuldades, incluindo a ingestão de pimentas que nenhum inglês deveria ser convidado a comer. Para o monge, Chögyam Trungpa Rinpoche, foi um desafio de maneira diferente. Ele sentiu-se aprisionado por suas circunstâncias. Ele tinha sido treinado desde os cinco anos de idade em um sistema rigoroso de estudo e prática meditativa, concebido como um caminho direto para a realização do Buda. Passada de professor para aluno em uma linhagem ininterrupta por mais de mil anos. Ele queria compartilhar esse treinamento e a compreensão, mas não conseguia ver bem como, em sua nova casa, o budadarma era um brinquedo estrangeiro, intelectualizado ou romantizado.

Em 1959, com dezenove anos, tinha fugido do Tibete, deixando para trás os professores que o tinham treinado, os mosteiros pelos quais foi responsável e uma sociedade em que seu papel era claro. Depois de alguns anos na Índia, havia viajado à Grã-Bretanha para estudar em Oxford e eventualmente estabeleceu um pequeno centro no interior da Escócia. Em vestes de monge neste lar adotivo, ele sentia muitas vezes que era tratado como uma peça de estatuária asiática desenraizada de seu contexto sagrado e exposta no Museu Britânico. Alguns poucos colegas tibetanos ofereceram apoio, parecendo sentir que ocidentais eram doces, porém incivilizados e incapazes de treinar no Darma genuíno. Profundamente em seu coração, ele sentiu que deveria ser de outra forma. O que fazer?

Anos mais tarde, Trungpa Rinpoche aconselhou aos alunos confrontados com circunstâncias intimidantes a não se direcionarem “ao alto muro de insanidade,” forçando respostas que podem não estar prontas para aparecer. Em vez disso, ele aconselhou que permitissem que a incerteza desses momentos cruciais desdobre-se completamente e confiassem na disciplina meditativa para manter-se no chão, assim como o Buda notoriamente fez quando tocou a terra pouco antes de sua iluminação. Na caverna de Taktsang, Trungpa Rinpoche permitiu a incerteza crescer e crescer. E ocorreu um grande avanço.

Com grande clareza, ele viu que o obstáculo a um florescimento dos ensinamentos e práticas de Buda no mundo moderno não era simplesmente uma melhor comunicação intercultural. Era o materialismo. Não somente a riqueza material, mas uma forma mais sutil, mais profunda de conforto: “materialismo espiritual.” Ele cunhou este termo para descrever o desejo de um caminho espiritual que levasse o praticante a tornar-se algo, para atingir um estado do qual pudesse se orgulhar, em vez de um caminho que desmascarasse o seu auto-engano. A convicção era de que se as pessoas pudessem ver o materialismo espiritual e cortá-lo – ir além dele -, elas iriam encontrar o verdadeiro caminho espiritual e isto traria realização instantânea. O caminho em si seria o objetivo. Ele deixou o retiro com intenção de encontrar alunos dispostos a fazer esta viagem com ele.

Como resultado desta descoberta, Chögyam Trungpa Rinpoche passou a ser um pioneiro do Darma. Ele viveu de acordo com o nome Chögyam, “Oceano de Darma” e deixou um corpo volumoso e variado de ensinamentos. Agora mesmo você pode baixar oito volumes de coletânea de seus trabalhos em um iPad ou Kindle, umas 4.500 páginas, cobrindo todo o tipo de prática budista, história, arte, educação, poesia, teatro, guerra e política. Existem outros livros esperando para formar futuros volumes de coletâneas e mais de uma centena de potenciais livros a serem criados a partir de transcrições de seus ensinamentos entre sua chegada nos Estados Unidos em 1970 e sua morte em 1987. Ele é o autor de uma pequena prateleira de best-sellers seminais que moldaram como o oeste compreende o Darma, como a Meditação em Ação, Além do Materialismo Espiritual, O Mito da Liberdade, Journey Without Goal – (Viagem sem Objetivo ainda não traduzido ao português) e Shambhala: O Caminho Sagrado do Guerreiro. Seu arquivo é um tesouro de caligrafia, pintura, fotografia e cinema, bem como, de áudio e vídeo de muitos eventos de ensinamentos. Aqui nós iremos mergulhar nosso pé neste oceano.

Há muitas histórias da vida de Trungpa Rinpoche, mas focar aí pode induzir em erro. Você pode concluir “você tinha que estar lá.” Na verdade, ninguém pode declarar ter estado lá por mais de uma modesta fatia da incrível quantidade de ensinamentos que ele comprimiu em seus quarenta e oito anos. Ele viveu para deixar um legado, para que no futuro as pessoas pudessem experimentar o Darma que ele ensinou não como um artefato de um tempo e lugar passado, mas sempre como “pão recém assado.”

  1. O Campo de Carniça

Trungpa Rinpoche, um mestre Vajrayana ou tântrico, esforçou-se para dissipar a noção equivocada sobre o exotismo do tantra. Ele não se coibia de usar imagens gráficas tântricas, mas enfatizou a perspectiva do que as imagens representavam. Ele apresentava isso como uma imagem sutil e elaborada do que a nossa mente experiencia. A perspectiva tântrica é transmitida com potência em um texto de prática que surgiu na mente de Trungpa Rinpoche na caverna em Taktsang: o Sadhana do Mahamudra. Durante quarenta anos tem sido cantada em dias de lua nova e cheia em centros fundados por ele e está disponível para ser praticada por alunos do Darma, recentes e antigos.

Como parte dessa prática é recitada uma descrição longa sobre o “campo de carniça”. Desde os tempos mais antigos, praticantes budistas praticavam em cemitérios, rodeados de lembretes poderosos da impermanência da vida. Abstendo-se de afirmações filosóficas sobre “impermanência”, o tantra sugere que nossa vida é na verdade um campo de carniça. Mais que um cemitério, como descreveu Rinpoche, é um ambiente onde “nascimento, vida e morte ocorrem. É um lugar para morrer e um lugar para nascer, igualmente, ao mesmo tempo”.

Nossa perspectiva de vida tende a ser exigente, ressaltou. Projetamos uma realidade parcial para se adequar a nós mesmos, mas a perspectiva do tantra considera todo o cenário. Gostaríamos que as coisas fossem apenas de um jeito — confortável para nós e que nunca acabe — mas há dicotomias inquietantes por todo o lado: assim que nascemos, começamos a morrer. Sempre que estamos felizes, há um toque de tristeza. Nós desejamos estar unidos, mas sabemos que estamos sozinhos.

Sentimo-nos miseráveis, ele observou. Há tanta coisa errada com a gente. E ao mesmo tempo, somos gloriosos. Nós somos os Budas do futuro. Em certo sentido, nós somos Budas neste exato momento.

Se pudermos achar coragem para enfrentar a totalidade de nossas circunstâncias — a negatividade, bem como a riqueza — um mundo de energia revigorante será revelado. As dicotomias começam a resolver-se, porque paramos de tentar aliar-nos com uma perspectiva menor ou outra. Por exemplo, ele ensinou que se confiarmos muito no nosso intelecto para resolver as coisas, ignoramos as nossas emoções. E se dermos plena passagem às nossas emoções, perdemos nosso insight. O que a visão e o treinamento tântrico podem nos ensinar a fazer, ele disse, é “unir emoção e insight. O insight torna-se mais emocional e a emoção torna-se mais perspicaz”. Podemos exercitar controle e relaxamento ao mesmo tempo, ele disse.

Tal visão encontraria apelo entre jovens em busca espiritual no Ocidente, que se desiludiram com a sociedade e as formas tradicionais da prática religiosa oferecidas. Ser chamado de completamente miserável e glorioso tinha a ver. Significava que você não estava louco por sentir-se mau e bom ao mesmo tempo. Ele proclamou aos seus estudantes que não era somente bom, mas maravilhoso estar num lugar de nascimento e morte ao mesmo tempo, celebração e luto, e que na verdade o estado búdico não era um lugar distante. Que existia em meio ao cemitério, onde os lugares que costumamos fugir podem ser um terreno fértil para a descoberta, onde, como diz o Sadhana do Mahamudra:

O que quer que se veja participa da natureza do conhecimento que transcende o passado, o presente e o futuro. Daqui vieram os budas do passado; aqui vivem os budas do presente; esse é o solo primevo de onde virão os budas do futuro.

  1. Apenas sente-se… Então sente-se mais

Depois de dois anos de seu retiro revelador no Butão, Trungpa Rinpoche estava na América. Uma casa de fazenda, celeiro e área cultivada circundante no norte do estado de Vermont que logo foi pontilhada com cabines de retiro e tornou-se o primeiro lar para os seus ensinamentos e comunidade. Ele tinha largado a vida de monge, casado e se estabelecido entre um corpo crescente de estudantes inspirados por sua avaliação honesta da maneira como as coisas eram: tanto a miséria quanto a glória. Um seminário após o outro ocorreu em uma tenda montada no gramado da frente. Era uma atmosfera de festival condizente com a era hippie.

Além dos perigos do materialismo espiritual, predominou um tema: a centralidade da “prática de meditação sentada.” Ele foi inflexível. A única maneira de perceber as possibilidades tântricas descritas no Sadhana do Mahamudra — onde “dor e prazer igualmente tornam-se ornamentos agradáveis de usar” — é sentar-se e sentar-se e sentar-se mais. Quando eu assisti meu primeiro seminário como um investigador adolescente ansioso, depois de alguns dias, fomos para o ginásio/prefeitura para um dia inteiro de meditação sentada. Nem acreditei. Tãoooo chato e claustrofóbico. E ainda assim em algum lugar lá dentro, um pequeno espaço, uma pequena glória emergiu. O caminho começou.

Esta fundação sustenta os ensinamentos de Trungpa Rinpoche. Se você senta consigo mesmo, sem nenhum projeto a seguir além de uma técnica simples de prestar atenção, gradualmente irá familiarizar-se com a textura da mente. Ao longo do tempo, a técnica cai fora e você é deixado com a consciência dos detalhes da vida e consciência do espaço circundante. Não é nada além do que o próprio Buda ensinou, mas Trungpa Rinpoche apresentou a mensagem de Buda em um vernáculo novo que ele estava descobrindo.

Ao cruzar o país, estabelecendo-se em Boulder, no Colorado e ensinando em cidade após cidade, ele mudou os termos em que o Darma era abordado. Em um período anterior, o Budismo tinha sido ensinado como filosofia ou religião. Ele expressou isso em termos de ideias sobre a mente humana, emprestando termos da psicologia ocidental e desenvolvendo novos caminhos para traduzir o léxico budista. Ele falou de ego e ausência de ego (que o dicionário de inglês Oxford English Dictionary credita a ele), neurose e sanidade, emoções conflitantes, condicionamento, padrões habituais, projeção, o mundo fenomênico e assim por diante. Seus ensinamentos descreveram elaboradamente os processos da mente mais do que doutrinas. A mensagem era que ao tornar-se familiarizado com a mente de uma forma íntima, vê-la no espaço descontraído de meditação sentada, encontramos a nós mesmos totalmente pela primeira vez.

Prática budista rigorosa, como descreveu, é científica e exploratória. Aprendemos o que é verdade — que apego a um ego é a causa de todos os nossos problemas — através de nossos próprios esforços, não porque nos foi dito que é verdade. Porque é nossa própria descoberta, tem mais poder. Ele confiava que qualquer ser humano, independentemente do contexto cultural, pode envolver-se totalmente em prática sentada e alcançar o que o Buda alcançou. Ele era o mais conhecido e mais prolífico de um corpo de professores, tais como, Ajahn Chah, Mahasi Sayadaw, Suzuki Roshi, Maezumi Roshi, Lama Yeshe, Kalu Rinpoche, que começaram a ensinar os ocidentais na crença que eram capazes de enfrentar os rigores da prática, não apenas sentar-se às margens com uma apreciação intelectual do que os praticantes verdadeiros estavam fazendo. Budismo no Ocidente estava livre e sentado.

  1. O Ponto sensível

Uma das dicotomias na vida de Trungpa Rinpoche foram seus cães. Ele tinha um grande cachorro, um mastim chamado Ganesh, e um cão pequeno, um lhasa apso chamado Yumtso ou Yummie. Ganesh intimidava e Yummie agradava. Duro e suave. Quando Yummie ia atrás de Rinpoche em seu caminho para a sala para ensinamentos, você não podia deixar de rir e quando ela pulava no seu colo enquanto ele estava ensinando, tocava seu coração — não de alguma forma espiritualmente grande, mas da forma com a qual estamos todos familiarizados. Trungpa Rinpoche chamava isso de “ponto sensível”. Todos temos isso. Pode ser tão simples como amor por sorvete, uma forma em que somos humanos, apaixonados, vulneráveis.

Nosso ponto sensível representa natureza búdica embrionária. Cada um de nós em nossa natureza essencial é um Buda completo, perfeito. Pode exigir ser descoberta, mas como resultado dessa natureza básica temos um grande coração aberto, ou bodichita, que ele muitas vezes traduziu como “coração desperto.”

Trungpa Rinpoche usou o ponto sensível como um salto para ensinar o Budismo Mahayana, o Caminho do Bodhisattva. Em meados da década de setenta, ele começou a dedicar uma atenção considerável para estes ensinamentos. O caminho fundacional da atenção plena e consciência, no sistema que ele seguiu, é conhecido como o caminho estreito, focado em libertar-se a si mesmo do sofrimento. O Mahayana é o caminho largo, focado em libertar os outros. O Vajrayana é o caminho da totalidade, que permite uma dança com todas as energias do mundo dos fenômenos. Embora tenham metodologias distintas, os caminhos se entrelaçam, e na tradição de Rinpoche, todos os três estão implícitos de uma só vez.

Em um certo ponto no caminho, chegamos a limitação de trabalhar exclusivamente em nós mesmos. Estamos mantendo a esperança em um lugar de descanso final com o nosso nome. Como Trungpa Rinpoche expressava, queremos testemunhar a nossa própria iluminação, ou mais incisivamente, o ego gostaria de estar presente no seu próprio funeral. Neste ponto, é necessário crescer, colocar outros antes de nós mesmos. Nós agora estamos pisando no caminho da compaixão, o caminho largo do Mahayana, mas isto traz seus próprios perigos. Se a compaixão torna-se uma exibição inventada pelo ego para seu próprio engrandecimento, estaremos de volta na armadilha do materialismo espiritual.

Seguindo os ensinamentos budistas clássicos, Trungpa Rinpoche ensinou que a única maneira de a verdadeira compaixão emergir de sua própria vontade é em conjunto com a sabedoria. Sabedoria, neste caso, significa reconhecer shunyata. Este termo tem por muito tempo fascinado e confundido estudantes do Budismo com espírito filosófico. Estudiosos ocidentais inicialmente descreveram isso como o vazio, como nada. O novo termo “vacuidade” foi uma melhoria, mas ainda poderia deixar você perplexo. Mais uma vez, Rinpoche ensinou sobre isso experimentalmente:

Shunyata literalmente significa “abertura” ou “vazio”. Shunyata é basicamente o entendimento da não-existência. Quando você começa a entender a não-existência, você pode ser mais compassivo, doar mais. Percebemos que nós mesmos somos, na verdade, não existentes. Então podemos doar. Temos muito a ganhar e nada a perder nesse ponto.

Para apresentar esses ensinamentos mais minuciosamente, Trungpa Rinpoche deu um extenso comentário sobre um texto Mahayana clássico construído em torno de uma série de provérbios, que ele se refere como máximas. (Estes comentários foram publicados no livro Training the Mind -Treinar a Mente). Uma máxima como “ser grato a todos,” quando memorizado, pode surgir em sua mente em um momento oportuno — não como uma regra que você está lutando para seguir, mas como um catalisador repentino para seu ponto suave. Você encontra a possibilidade de colocar os outros antes de si mesmo — sem ter que criar estratégias.

Uma prática fundamental para cultivar o bodichita é tonglen, literalmente “enviar e receber.” Você envia calor e abertura aos outros e toma sua dor e dificuldade. Esta prática, similar à prática de metta do Theravada, tornou-se o foco dos livros de Pema Chödrön, que aprendeu com Trungpa Rinpoche. Esta ótima mudança, onde o primeiro pensamento é nos outros, é a essência da compaixão genuína e uma chave para a verdadeira libertação.

  1. Arte na Vida Cotidiana

No início de seu tempo na América, Trungpa Rinpoche estava chamando um táxi em Nova York. O poeta beat Allen Ginsberg estava tentando pegar o mesmo táxi. Eles foram apresentados e Trungpa Rinpoche, sua esposa Diana, Ginsberg e seu pai enfermo dividiram o táxi. Depois de deixar o pai de Ginsberg, eles continuaram ao apartamento de Ginsberg, onde permaneceram noite adentro conversando e escrevendo poesia. Na introdução ao volume sete da coletânea de trabalhos (dedicado à poesia, arte e teatro), a editora Carolyn Gimian observa que este encontro casual começou uma longa e frutífera amizade: “No fronte budista, Rinpoche era o professor, Ginsberg o aluno; no fronte poético, Rinpoche reconheceu quanto ele tinha aprendido de Ginsberg e Ginsberg também creditou a Trungpa Rinpoche considerável influência em sua poesia.”

Rinpoche tinha recebido treinamento em poética tibetana, onde as formas métricas eram bem estabelecidas e os tópicos restritos ao espiritual. Ginsberg era um poeta mundano, compondo em um estilo livre. Ainda que compartilhasse o apreço de Rinpoche pelas formas clássicas, acreditando que aprender a métrica tradicional permite ter boas regras para quebrar. A poesia tornou-se uma arena na qual Rinpoche poderia brincar e exibir senso de humor. Para ele, humor não significava piada, mas ver as dicotomias e a totalidade de uma vez, que permitia que se brincasse com a comunicação, com a percepção, com os gestos. Isso evidenciava a verdadeira liberdade.

OPORTUNA CHUVA
Nas selvas do ego em chamas,
Que possa haver um iceberg de fresco bodichita.

Na pista da burocracia,
Que possa haver a caminhada de um elefante.

Que possa o suntuoso castelo da arrogância
Ser destruído pela confiança vajra.

No jardim da gentil sanidade,
Que você possa ser bombardeado por cocos de vigilância.

Trungpa Rinpoche viu a arte e as artes não como diversões para dar um alívio ao lado sério da vida, nem como algo para uma elite que podia pagar o tempo e o dinheiro. Ele falou de “arte na vida cotidiana,” que a vida podia ser vivida artisticamente. Nosso discurso, nossos movimentos, nossos gestos, nosso artesanato, podem ser feitos com graça, não conscientemente como uma performance, mas intrinsecamente como parte de nosso ser, e como uma consequência da meditação. Na verdade, ele sentiu que a arte e fazer arte emergiram do espaço da meditação: Beethoven, El Greco ou a minha pessoa favorita em música, Mozart — acho que todos eles se sentaram. Sentaram-se na verdade no sentido de que suas mentes tornaram-se vazias antes que fizessem o que estavam fazendo. Caso contrário, eles possivelmente não poderiam fazê-lo.

Desde cedo, ele brincava em muitos reinos: cinema, teatro, música, fotografia, pintura, caligrafia, arranjo floral. Em 1974 ele fundou o Instituto Naropa (hoje Universidade Naropa) como um lugar onde sensibilidade artística pode ser parte integrante do ensino superior. Ele disse que a educação no Naropa casaria intelecto e intuição. Como Gimian aponta, na noção japonesa do “do”, como em chado, o caminho do chá, ou kado, o caminho das flores — ele viu um modelo de como atividades seculares de todos os tipos poderiam tornar-se caminhos para o despertar.

Obtendo treinamento formal em arranjos florais, usou-os como meios para transmitir certos princípios, como céu, terra e humano — com o céu representando o espaço aberto, terra como o chão e o humano que conecta a dicotomia. No teatro, ele criou exercícios que ajudaram os atores a envolver o espaço em torno deles, vindo a conhecer o relaxamento através da tensão. Em artes visuais, explorou o processo de percepção, a interação entre a mente investigadora que olha e a grande mente que vê. Esses ensinamentos formaram a base para um programa chamado Dharma /Arte, que usava exercícios simples como organização de objetos para ajudar os alunos a irem além dos limites da percepção baseada nos pontos de referência pequenos do ego. Ele e uma equipe de estudantes criaram instalações de arte contendo arranjos descomunais de objetos naturais e construídos que poderiam levar a um apagamento da mente. (Isto pode ser visto no filme Discovering Elegance – Descobrir a Elegância). No caminho do Dharma / Arte, mundano e espiritual se misturavam completamente e tornaram-se, em suas palavras “uma bomba atômica que você carrega na sua mente.”

  1. Vitória sobre a Guerra

Em meados dos anos setenta, o que tinha começado como uma associação de hippies seguindo um guru que evoluiu para uma comunidade multifacetada. As pessoas tinham crescido e formado famílias e suas responsabilidades aumentaram. Trungpa Rinpoche começou a enfatizar o cuidado com a vestimenta e como conduzir o seu lar. Havia protocolos simples. Para palestras, por exemplo, ele esperava que os alunos sentassem e prestassem atenção ao invés de ficar desleixadamente.  Professores senior das linhagens tibetanas de Trungpa Rinpoche foram hospedados para turnês através do país. O chefe da escola Kagyu, sua Santidade o XVI Karmapa, fez a primeira de suas três visitas aos E.U.A. em 1974. Foi um assunto monumental. Trungpa Rinpoche transformou-se diante dos olhos dos seus alunos. Eles viram sua grande devoção para com o Karmapa e sua linhagem. Ele foi ao encontro do grande sorriso radiante do Karmapa com um sorriso igual e uma reverência de respeito. Nós, seus alunos queríamos seja lá o que eles estivessem tendo.

Para garantir a devoção e o serviço, um professor deve genuinamente incorporar os ensinamentos. Em última análise, estudante e professor realizam um encontro de mentes no nível dos olhos. Relativamente, o estudante suplica e serve o professor. Como Trungpa Rinpoche demonstrou como fazer isso por Sua Santidade, aprendemos a fazê-lo mais para Trungpa Rinpoche. Isto é como ele tinha aprendido com seus professores na longa tradição que começou na Índia com os primeiros mestres de Vajrayana. Servir o professor significa ajudar na propagação do Darma e pode abranger tudo, desde a tradução para dar instruções de meditação até ajudar a administrar uma casa e agir como um secretário para agendar compromissos. Ao convidar alunos para assumir papéis para servir e atender, tornou-lhes possível aprender o Darma em situações do dia a dia, “a hora da verdade”. Descobrimos que servir o professor pode ser um elemento poderoso no caminho espiritual, parte do processo para desgastar o ego e abrir o aluno para ensinamentos que desafiam hábitos caros e pontos de vista acalentados.

Uma forma desta prática de serviço foi chamada de Dorje Kasung, que traduzido significa algo como aqueles que protegem os ensinamentos e ajudam a torná-los acessíveis. O kasung poderia ajudar o professor a criar um bom local no qual os ensinamentos podem ser ouvidos e experimentados. Uma sala de meditação que está limpa e tranquila, e bem iluminada e ventilada fornece um local excelente para a prática de atenção plena e para ouvir os ensinamentos. Da mesma forma, se alguém se senta no portão em uma postura ereta, olhando para fora como um lembrete aos alunos para participarem atentamente — e fazer uma transição da velocidade da vida diária — eles serão inspirados para ouvir os ensinamentos, internalizá-los e despertar.

Aqueles de nós que se juntaram ao Dorje Kasung vestiam uniformes simples e nosso papel era bem sabido entre os alunos. Alguém poderia sentar-se por horas fazendo quase nada fora de uma sala de meditação, agindo como uma espécie de porteiro, assim como nos templos antigos. Nós fornecíamos informações e orientação para aqueles que entravam no centro pela primeira vez. Também estávamos lá em caso de emergências, tais como uma queda de energia ou incêndio ou roubo. Estudantes começaram a sentir que o kasung ajudava a garantir uma atmosfera calma e segura para a prática e o estudo, um bom local. Rinpoche tinha ensinado meditação e meditação em ação, e agora ele ensinava meditação-em-interação. Ele deu seminários especialmente para o Dorje Kasung, que incutiram em nós certos princípios, tais como gentileza, colocar os outros em primeiro lugar e ação destemida em meio a situações caóticas. Os ensinamentos eram frequentemente expressos em metáforas que poderiam ser desvendadas e descompactadas naquelas longas horas a olhar para um tapete e um cachorro na porta de entrada para a residência do professor:

Se há muitas nuvens na frente do sol, seu dever é criar vento para que as nuvens possam ser removidas e o sol claro possa brilhar.

O treinamento frequentemente focava em como nossas mentes respondem à ameaça. A disciplina, que provou ser valiosa em muitas facetas da vida, aperfeiçoou a sua capacidade de manter-se alerta e espaçosa ao mesmo tempo. Incentivou a aprender a “ser como uma montanha”, em meio a provocações e até mesmo situações de ameaça — com suavidade e precisão, não criando uma grande cena. Você era exortado a tornar-se um “guerreiro sem raiva”.

Trungpa Rinpoche decidiu levar esse treinamento para um nível superior. Instituiu um acampamento anual, que seguia protocolos militares. As pessoas passavam dez dias vivendo em tendas, vestindo uniformes e sendo treinadas — uma forma de meditação em movimento da forma que ele a encarava. Em sua agenda ritualizada, auto-suficiência, experiência direta dos elementos, prática regular de atividades meditativas e a mesma vestimenta, era uma forma ocidental do monasticismo, ele disse.

Foi o monasticismo aguçado— iria apertar botões profundos. Nós fomos envolvidos em um combate simulado, uma versão de capture a bandeira. Havia humor barulhento, mas nós, meninos e meninas, também estávamos chocados e humilhados por encontrar a agressão e a raiva que poderia surgir em nossas mentes ao jogar um mero jogo infantil.

Desse programa de prática veio o lema para o inteiro Dorje Kasung: Vitória sobre a Guerra. Em essência, ele estava ensinando como a guerra poderia ser cortada em sua origem. Conflitos testam o caráter de nossa consciência. Se nossa disciplina não nos prepara para enfrentá-los, vamos reverter isso para profundos padrões negativos e criar grande destruição. É assim que nasce a guerra. Está matando as pessoas o tempo todo. Está matando agora. Esta forma de meditação-em-interação que encorajou as pessoas no meio de situações desafiadoras a manifestar-se com ternura e humor — em vez de raiva e medo — carregou implicações para desafios aparentemente insuperáveis que enfrentamos no mundo em geral.

  1. Sociedade Iluminada

Em 1976, oito anos se passaram desde o momento crucial no Butão quando ele viu uma maneira de trazer o Darma para o oeste. Nesse curto período, ele tinha ensinado centenas de seminários, iniciou muitas centenas de alunos em práticas avançadas do Vajrayana, fundou um conjunto de instituições e centros de meditação e infiltrou o Darma em território desconhecido como o teatro avant-garde e a poesia beat. Agora, surgiu outra pausa gestativa.

O Sadhana do Mahamudra era um tipo de texto revelado, conhecido como terma. Tradicionalmente, o terma pode emergir como um todo na mente de um grande praticante. Eles não são considerados como trabalho pessoal do professor, e marcas especiais são colocadas no texto para indicar isso. Sendo revelados, eles transcendem a personalidade e a posse do professor que os recebe. Eles têm uma qualidade inerentemente sem ego, você poderia dizer. Eles também são oportunos.

No Outono de 1976, Trungpa Rinpoche começou a descobrir mais termas. Estes falavam de uma forma de ensinamentos que não eram estritamente budistas. Eles se tornaram a base para o treinamento Shambhala, que Rinpoche concebia como um meio secular de treinamento da mente. Ele chamou de Caminho do Guerreiro. Guerreiro neste caso não se referia a alguém que lutou para ganhar território, mas alguém que era valente, que estava disposto a trabalhar com seus medos. No Caminho do Guerreiro, você trabalha com seu medo não o empurrando para baixo, mas “inclinando-se para ele.” Nesse ponto, ele ensinou que você descobre o destemor, o que não é ausência de medo, mas a capacidade de montar na sua energia.

A descoberta que ele teve durante este período ocorreu em vários níveis. Por um lado, Rinpoche deu um passo atrás na sua intensa agenda para entrar em retiro de um ano. Quando ele retornou, ele começou a exortar os seus alunos para “animarem-se”! Ele sentiu que sua prática do budismo tinha ficado presa em muitos aspectos, arrastando-se seriamente e um hábito de olhar para dentro, tanto pessoalmente ou em comunidade. Embora muitos tenham resistido fortemente no início, os ensinamentos do guerreiro de Shambhala ofereceram maiores possibilidades de abertura, sob a forma de uma grande visão da sociedade:

Visão de Shambhala aplica-se a pessoas de qualquer fé, não apenas as pessoas que acreditam no budismo. Qualquer um pode se beneficiar sem minar sua fé ou sua relação com seu ministro, seu padre, seu bispo, seu papa, quaisquer que sejam os líderes religiosos que sigam. A visão de Shambhala não distingue um budista de um católico, um protestante, um judeu, um muçulmano, um hindu. É por isso que chamamos de Reino de Shambhala. Um reino deveria ter várias diferentes disciplinas espirituais.

O que ele chamou de reino aqui, ele também se referia como sociedade iluminada, onde cada pessoa poderia perceber que possui bondade fundamental. Através de práticas sentadas em grupo juntamente com a contemplação dos princípios de destemor e ternura do guerreiro, o treinamento Shambhala foi projetado para incutir uma apreciação da bondade fundamental em todas as suas dimensões. Se essas sementes são plantadas uma por uma, nossa sociedade poderia tornar-se iluminada.

Como com o Sadhana do Mahamudra e o Dharma / Arte, o poder dos ensinamentos Shambala não estão baseados em impor uma ideologia, mas em uma percepção direta do mundo, descrito neste contexto como “descobrir a magia,” experienciar uma qualidade conhecida em tibetano como drala:

Drala quase poderia ser chamada de uma entidade. Não está tanto no nível de um deus ou deuses, mas é uma força individual que existe. Portanto, não só falamos de princípio de drala, mas falamos de encontrar os “dralas”. Os dralas são algo que conecta você com a qualidade elementar da realidade, qualquer coisa que lembra você da profundidade da percepção.

  1. Tal Tempestade

O final dos anos setenta e os oitenta foram palco de enorme aprofundamento e maturação dos ensinamentos e instituições estabelecidos por Trungpa Rinpoche. Ele apresentou os níveis mais refinados do que ele havia ensinado e tinha descoberto. Às vezes, esses ensinamentos poderiam ser difíceis de entender, mas ele forneceu o comentário para que as futuras gerações pudessem seguir as pegadas e ver por si mesmas o que elas podem revelar. No final de sua vida, ele tinha conduzido pessoalmente treze seminários Vajradhatu, programas de treinamento de três meses nos ensinamentos Hinayana, Mahayana e Vajrayana. Rigorosos períodos de estudo e prática durante todo o dia alternados em uma maneira que não tinha nenhum precedente nos regimes de treinamento tradicional que Trungpa Rinpoche fora submetido. Ele disse a alguns que era esse o seu maior feito.

Em 1987, ele morreu. E tivemos que deixar ir. Sua morte foi comemorada com grande pompa em um prado elevado sobre a terra de Vermont, onde começou sua jornada na América. Milhares prestaram homenagem. Proeminentes professores tibetanos, mestres Zen e outros professores budistas que ele havia influenciado, artistas, poetas e políticos juntaram-se aos estudantes que tinham caminhado os muitos caminhos que ele apresentou. Foi triste e ainda assim alegre. Ele deixou tudo de si para todos verem. Muito mais pessoas no futuro irão auferir benefício de seus ensinamentos do que aqueles que o conheceram em vida. Em seu testamento, deixou estas palavras de despedida:

Nascido um monge, morreu um rei.

Tal tempestade não pára.

Iremos assombrar você junto com os dralas.

Feliz boa sorte!

 

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