Paz no Dia a Dia e Superação de crises

A resolução de conflitos é um tema tradicional no budismo. Todos os ensinamentos tratam basicamente disso, da superação de obstáculos através da percepção da liberdade da mente. Os oitos passos do Nobre Caminho ensinado pelo Buda são o processo padrão para se resolver conflitos. Temos conflitos de várias ordens, e a única forma de realmente resolvê-los são os oito passos do Nobre Caminho.

A percepção da liberdade da mente pode se manifestar como resolução de conflitos, o que está ligado à mudança de paradigma. Na verdade o termo paradigma não é abrangente o bastante para dar conta do que acontece, mas tem sido usado neste sentido.

Em seu primeiro ensinamento – as Quatro Nobres Verdades –, o Buda menciona a roda da vida. A primeira nobre verdade é: “Estamos presos a uma experiência cíclica”, ou seja, estamos presos na roda da vida.

O Buda fala sobre duka, a experiência cíclica na qual alegria e sofrimento são inseparáveis. Seu objetivo não é nos fazer pensar que não existe saída. Pelo contrário! Se abordarmos a roda da vida de forma elevada, perceberemos que toda experiência é criada pela liberdade da mente. Se usarmos a liberdade da mente, poderemos cruzar naturalmente por dentro da roda da vida. Ao falar da experiência cíclica, o Buda fala de um jogo mental que montamos e de nossa capacidade de criar jogos, circunstâncias, mundos.

No ensinamento básico sobre a roda da vida, vamos tratar apenas de coisas depressivas, difíceis. O objetivo é que acordemos para uma situação grave. Dentro da atual perspectiva que temos de nós mesmos, a experiência da roda da vida é catastrófica. Não importa em que ponto estejamos hoje, inevitavelmente tudo o que tentarmos sustentar irá desabar. O Buda nos alerta para isso. É como se tivéssemos entrado em um túnel inacabado, bloqueado. O Buda nos avisa que o túnel não tem saída.

Não foi o Buda quem criou a obstrução, ele é nosso aliado. Se nossa ação mental e nossa ação no mundo forem estreitas, inevitavelmente colheremos a impermanência. Este é o ensinamento do Buda, que diz:  “Observe, veja se alguma coisa que você está fazendo tem alguma chance de não ser impermanente.” Se olharmos com atenção, perceberemos que tudo que vivenciamos é marcado pela impermanência.

Apesar disso, a primeira nobre verdade tem um sentido libertador. Ela remove nossa culpa. É bom lembrarmos que todos os seres estão submetidos à impermanência. Quando a desgraça desaba sobre nós, sofremos dois impactos. No primeiro constatamos: “Isso realmente aconteceu.” No segundo concluímos: “Sou um fracasso.”  No entanto, compreendendo a primeira nobre verdade, lembrando que todos os seres estão submetidos a estas circunstâncias e não têm como conter a impermanência e as dificuldades, nos damos conta de que não há por que desenvolver uma culpa pessoal; esta é uma situação que afeta todos os seres.

 

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A cada dez anos, mais ou menos, nos defrontamos com determinadas perguntas: “Quem sou? Onde estou? Para onde devo ir?” De tempos em tempos nosso mundo desaba, e não sabemos o que fazer. Temos a sensação de que morremos, o universo desabou; ainda assim, após um tempo, ressurgimos naturalmente. Saímos do buraco e dizemos: “Certo, agora sou mais experiente, mais esperto. Aprendi.”

Depois de cada crise a pessoa se julga mais esperta, experiente e capaz de definir a direção correta, mas o processo de desabamento e recomeço segue se repetindo. Lá pelo quinto grau de esperteza, depois de 50 anos tentando acertar, a pessoa pergunta: “Quanto tempo ainda me resta?” Talvez nesta hora finalmente peça ajuda ao Buda.

Quanto antes pedirmos ajuda ao Buda, melhor. Cada vez que tentamos estabilizar algo não estabilizável, encontramos uma descontinuidade um pouco adiante. Quando a descontinuidade surge, nós a chamamos de crise.

No budismo, todas as crises são bem-vindas. São circunstâncias que a pessoa deve aproveitar. O budismo ensina como lidar com isso, como se comportar em meio às crises para que estas não sejam vistas como tal. Além disso, os ensinamentos indicam como agir para para diminuir as possibilidades de que as crises ocorram e a vida humana preciosa possa ser preservada.

 

Absoluto e relativo

As crises podem ser vistas de modo absoluto e relativo.

Na abordagem absoluta, reconhecemos que, se repousarmos na natureza ilimitada, nenhuma crise será possível. Nossa natureza encontra a liberdade frente às circunstâncias, a liberdade natural que não manifesta rigidez nem no próprio ideal de liberdade. Se reconhecermos isto, estaremos livres de crises.

Nossa natureza essencial simplesmente não entra em crise. As crises só se dão no âmbito das identidades, no âmbito das percepções relativas. Nossa natureza essencial nunca entra em crise, isto acontece com as identidades impermanentes que montamos. São identidades separativas, vivendo em meio a paisagens mentais ou materiais também impermanentes. Não temos como conter o processo de mobilidade que leva inevitavelmente ao desabamento.

Se nossa natureza reconhece que estamos além das circunstâncias, se ela se reconhece livre das circunstâncias – como a natureza divina, luminosa, a natureza de espacialidade, de Buda –, estamos livres de qualquer crise. Este é o aspecto absoluto que nos impede de entrar em crise.

Existem métodos relativos, duais, para reduzir as crises. São métodos que usamos com nossas identidades separativas. Como a dualidade permanece, não é possível erradicar as crises, mas elas podem ser reduzidas. Tanto na abordagem absoluta como na relativa, temos de entender como as crises são montadas e evitar os fatores que as desencadeiam, seja pela visão transcendente, absoluta, ou pela visão dual, relativa.

 

Complicações

Os problemas começam quando fixamos identidades, aspectos que não queremos de modo algum que se movam. Podemos criar fixações através de seis motivações básicas: orgulho, inveja, desejo/apego, obtusidade mental, carência e raiva/medo. São as seis motivações mentais através das quais estruturamos identidades.

Usamos estas motivações em diversas combinações, e isto produz impulsos. Logo depois surgem as complicações, porque os impulsos geram as dez ações não-virtuosas. Temos impulsos para matar, roubar, manter conduta sexual imprópria, mentir, agredir os outros verbalmente, criar intrigas, falar inutilmente, ensinar coisas indevidas, sentir aversão a outros seres e manifestar avareza. Se praticamos estas dez ações, nossa vida se complica, ficamos cercados de inimigos e circunstâncias difíceis.

Se temos a percepção última, absoluta, naturalmente não vamos praticar as dez ações não-virtuosas, nem manifestar as emoções perturbadoras. Estamos liberados. Não haverá mais crises. Se não temos a percepção absoluta, se não atingimos a liberação, inevitavelmente vamos trabalhar com as emoções perturbadoras e cometer ações não-virtuosas.

Neste caso, devemos utillizar um método relativo para evitar as crises. Este método consiste em evitar ao máximo a prática das dez ações não-virtuosas. Não se trata de uma regra externa imposta sobre nós. Trata-se de um compromisso conosco mesmo, de evitar as dez ações por saber que trazem sofrimento e complicam nossa vida e a dos demais. Assim, mesmo que nossa mente opere apenas de forma limitada e as circunstâncias do mundo desabem sobre nós, lidamos com as crises direcionando positivamente nossas emoções e ações.

 

Mestre irado

Na roda da vida, existe um ser terrível, cheio de dentes, unhas enormes, enrolado numa pele de tigre, de aparência horrível, chamado Senhor da Roda da Vida, Yama, ou Maharaja, ou ainda Mara. Ele personifica todas as nossas complicações. De tempos em tempos, Maharaja aparece como o vizinho do andar de cima, o chefe, o guarda de trânsito, o ex-marido. Nós o personificamos, nós criamos esta noção.

O que significa a personificação das dificuldades? Vemos as dificuldades na pessoa que está à nossa frente, não lembramos que aquela mesma pessoa era um amigo inseparável há um tempo.

No budismo é essencial que nos demos conta do papel de Maharaja. Ele tem uma especialidade: pôr o dedo em cima de nossas fixações. Se temos uma fixação, temos um dedo de Maharaja; duas fixações, dois dedos; três fixações, três dedos; e assim por diante. Maharaja é melhor que computador, tudo está gravado em sua memória, e não acontece pane, o sistema sempre funciona. Ele nos dá um tempo, mas, cedo ou tarde, vai em cima de cada uma das fixações.

Podemos dizer que Maharaja é um grande mestre, um mestre benigno. Ele apaga todas as nossas complicações. Mas também dizemos que é um mestre irado. Maharaja nunca perdoa, põe o dedo em cima de qualquer imperfeição, aponta e cobra. Não adianta camuflar os defeitos, Maharaja sempre os descobre.

De modo geral, camuflamos as ações ruins no meio das boas, misturamos coisas boas com ruins. Fazemos com que as coisas boas sejam um pouquinho maiores, e as ruins – aquelas que não queremos mexer – vão junto. Envolvemos tudo num pacotão dourado e vamos puxando. Maharaja sempre dá um jeito e põe o dedo só naquilo que não serve, salvando as coisas boas. Ele é perfeitamente justo.

O que significa ação equivocada, o que significa erro? Fixação. O problema surge onde perdemos a liberdade. Se temos fixações, iremos nos defrontar com elas quando a impermanência se manifestar. Aquilo que não queremos que mude vai mudar, e a dor correspondente vai surgir. O que é flexível não produz dor, pois permitimos que se altere. Onde temos compreensão e lucidez, não existe dor. Onde temos fixação, o movimento produz dor. Este é o processo.

No meio disso temos a sensação de que Maharaja está presente, as desgraças estão presentes. Se percebermos que Maharaja está apontando as regiões de fixação e se formos capazes de olhar esse ensinamento, poderemos aprender. Ele precisa nos ensinar de alguma forma. Como ele vai parar nossa ação? Como vai frear nosso processo de loucura?

É como uma criança que não sabe o que fazer e a mãe diz: “Vá lá brincar com seu joguinho.” Quinze minutos depois a mãe diz: “Venha almoçar, depois escove os dentes e vá para o colégio.” Para a criança, a mãe é Maharaja quando acaba com a diversão. Se isto acontece com uma coisa completamente virtual, o que ocorre quando Maharaja chega e diz à mãe: “Este mês você não vai receber seu pagamento.” A mãe ouve aquilo, e a situação parece muito concreta. Como ela vai pagar as contas no final do mês?

As coisas para nós parecem todas muito concretas, da mesma forma que para as crianças. Os mundos são todos muito concretos. Essencialmente, Maharaja vai apontar o dedo sobre aquilo que não queremos nem pensar que, eventualmente, possa se modificar.

 

Saída

Você seria capaz de fazer uma lista do que não gostaria de pensar que eventualmente possa mudar? Todos nós temos pelo menos uma dúzia de coisas que não queremos que aconteçam de jeito algum. Estamos na mão de Maharaja. É provável que cada uma das coisas que não queremos que se mova venha a se alterar um dia. É uma situação muito difícil. Chegamos a ficar um pouco tontos quando repassamos os itens de nossa lista de fixações. Procuramos uma saída, e ela aparentemente não existe. No mundo condicionado não temos como evitar a dissolução das coisas construídas. Esta é a primeira nobre verdade.

Mas nossa natureza está além dessas circunstâncias. O príncipe Sidarta percebeu isso. Na quarta vez que saiu de seu palácio, ele encontrou um monge. Então deu-se conta de que a liberação era possível, de que havia uma linhagem de seres que ensinava como alcançá-la. Sidarta percebeu que aquele era o único caminho a seguir.

Existe o caminho monástico, mas existe também o caminho da prática na vida cotidiana. Em meio à nossa vida, podemos atuar de forma livre, reconhecendo a ação de Maharaja, mas reconhecendo que nossa natureza é maior do que as circunstâncias que ele possa produzir. O ensinamento do Buda afirma que existe uma saída e que nem sempre esta saída está no lugar onde esperamos. Como achamos que ela estará em uma determinada direção, não vemos as possibilidades das outras direções.

O Buda não trouxe uma mensagem pessimista, de tristeza, de incapacidade. Ele veio nos livrar disso. Não foi o Buda quem inventou a depressão. Ele apresentou a forma pela qual vamos superá-la.

Se formos capazes de olhar para nossas dificuldades e reconhecer a ação de Maharaja como a manifestação da impermanência naquilo que não queremos que se modifique, poderemos localizar nossa rigidez, nossas construções. Esta é a primeira forma de utilizar a adversidade – existem outras mais sutis.

Devemos seguir a sugestão de Sua Eminência Chagdud Tulku Rinpoche: aprender a nadar antes de cair no rio. Se cairmos no rio antes de saber nadar, será mais difícil aprender. Devemos aprender a reconhecer a natureza de liberdade mesmo em meio à adversidade. Quando tudo aparentemente desaba, o que fazemos? Como reconhecer no meio do desabamento a natureza que não desaba? Este é o ponto.

Se não percebemos a natureza da liberdade quando estamos numa situação mais ou menos confortável, é mais difícil ainda quando tudo desaba. Por isto é necessário reconhecer e treinar esta liberdade de tal maneira que, quando as circunstâncias mais difíceis acontecerem, haja lucidez para operar no meio delas. Este ensinamento se relaciona às quatro etapas finais do Nobre Caminho Óctuplo.

 

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Na quinta etapa do Nobre Caminho Óctuplo vamos perceber que nossa mente é mais ampla do que nossa identidade, e isso oferece outra perspectiva frente às ansiedades, circunstâncias negativas e crises. A crise pode simplesmente desaparecer quando se dá um “salto quântico”. Como isso acontece?

Vamos supor que exista uma locadora onde os filmes estão classificados de acordo com os seis reinos – deuses, semideuses, humanos, fantasmas famintos, infernos e animais.¨* Tiramos uma fita do reino dos infernos. É sucesso garantido! Ao assistirmos o filme, teremos os impulsos correspondentes ao reino dos infernos – medo, aversão, raiva. Terminado o filme, retornamos às circunstâncias comuns de nossa vida.

Breve explicação dos Seis Reinos, por Monge Genshô publicado em Daissen.org.br

O primeiro é o “Mundo dos Infernos” que é caracterizado pela raiva, ódio e egoísmo. Nesse reino só há sofrimento. Não existe compaixão. No nosso mundo isso é perfeitamente verificável, por exemplo, lugares de guerras e crimes violentos, onde não existe qualquer tipo de compaixão. No mundo dos traficantes por exemplo, não se pensa no mal que as drogas irão causar, o objetivo é o lucro, as mortes e a destruição das famílias não são levadas em consideração.  

O segundo é o “Reino dos Pretas” ou “Fantasmas Famintos”, onde reina absoluta a ganância. Local de avareza onde de tudo se faz para obter vantagens e existe um desejo sem fim, pois as pessoas nunca se satisfazem. Na mitologia Budista, são seres com pescoço muito finos que sofrem de sede e fome pois não conseguem engolir o suficiente. Tem grandes estômagos mas pescoços finos. Onde podemos verificar isso em nosso mundo? Nas pessoas que nunca estão satisfeitas e querem sempre mais. Podem acumular enormes fortunas, mas nunca é o suficiente. Não existe no mundo riqueza para satisfazer sua ambição. E não estou falando só de coisas materiais, mas também de poder. No mundo empresarial conheci uma pessoa que três vezes anunciou um sucessor, mas quando chegava a hora do sucessor por ele escolhido assumir seu lugar, ele desistia, não conseguia largar o poder, até o dia que morreu.  

O terceiro mundo é o “Mundo Animal” cuja característica é a obscuridade, não existe clareza ou lucidez e onde se age por instinto. No nosso mundo podemos observar esse reino nas pessoas que só pensam em comer, em sexo ou em prazer imediato. Vivem instintivamente. Não raciocinam e atropelam tudo em seu caminho. Mundo também caracterizado pelo uso da força, é o mundo dos mais fortes.  

O “Mundo Humano” é o quarto reino, mundo de grande oportunidade, onde temos alegria e tristeza, ignorância e sabedoria, ganhos e perdas. Insatisfeitas, as pessoas procuram o Dharma. Como o ser humano experimenta as duas coisas, sente o impulso de procurar o Dharma. No mundo dos animais, os seres não têm lucidez suficiente para procurar o Dharma. É mais ou menos como as pessoas que trabalharam a vida inteira e só enxergam aquilo para que foram condicionadas. Quando pequeno, seus pais lhe diziam para estudar para conseguir um bom emprego. Depois de conseguir o emprego ele trabalha para adquirir segurança e então se aposenta. Quando se aposenta a vida acaba e ele fica triste e deprimido, toda sua vida perde o sentido e ele fica apenas à espera da morte. O único sentido em sua vida eram as tarefas que tinha que cumprir. Uma pequena parcela dos seres humanos, como Buda, enxerga nascimento e morte, vê o sofrimento e deseja sair disto, não basta uma pequena felicidade ou dinheiro no bolso. Como ele deseja algo mais profundo, então procurará o Dharma. Ele não irá para a sangha apenas para resolver seus pequenos problemas como um casamento desfeito ou uma demissão. Essas pessoas deixam de frequentar logo que recebem apoio e sentem-se melhores, ele possui energia para continuar a busca pela iluminação nessa vida. Ele deseja escapar desse ciclo, deseja morrer com a melhor mente possível.  Ele deseja escapar da rede, esse é o significado da palavra “Todatsu”, o peixe que escapa da rede.  

O quinto reino é um mundo de grande poder, luta e ambição onde se tem inveja dos deuses, o “Mundo dos Semideuses”. Esses são os executivos, têm dinheiro, poder e estão sempre lutando é o mundo dos negócios. Geralmente suas mortes não são fáceis, muitas vezes com testamentos muito complicados. Essas pessoas vivem com medo da queda e da perda.   

Por fim, o sexto reino é o “Mundo dos Deuses” e, no Budismo, os deuses são seres inferiores aos Budas porque também morrem. Embora tenham longas, prazerosas e poderosas vidas, eles decaem. Por terem acumulado bons carmas, suas vidas são muito boas, mas suas virtudes se esgotam e seu carma vai decaindo até o dia em que morrem. Não é nosso objetivo no Budismo nos tornamos deuses nem semideuses, mas Budas. Os Budas se libertam de serem deuses e semideuses e voltam para a grande unidade sem a obrigação de nova manifestação. 

O que aconteceu no filme que nos fez sentir aquela angústia? Sentimos angústia e raiva porque ficamos dentro de um tipo de operação mental. Não dá para culpar a televisão, as cores, riscos, imagens e sons que apareceram ali, porque a raiva não estava ali, o medo não estava ali. Não estávamos ligados a um cabo que nos trazia o medo através de uma polaridade elétrica. O filme apenas fez surgir o que já estava dentro de nós. Aquelas emoções estavam latentes, tínhamos tudo preparado. Se examinarmos a tela depois do filme, veremos que ela continua igual, não tem nada lá. No filme havia fogo, mas a tela não está chamuscada. Havia tiros, mas a tela não está furada. Onde tudo aquilo ocorreu? Onde todas aquelas emoções ocorreram?

Aquilo tudo ocorreu dentro de uma paisagem, de um universo mental que validou aquelas circunstâncias. Achamos que isso só acontece num filme, mas não é verdade. Quando começamos a estudar, vemos que o universo onde nos movimentamos é um universo de delusão. Temos uma natureza cármica que escolhe as opções de marcas mentais de que dispomos e nos oferece uma experiência emocional e uma experiência cognitiva junto com a aparência que as coisas então adquirem. Isso não é um fenômeno que só acontece no cinema, é algo que acontece em nossa vida.

A arte talvez seja uma linguagem a ser explorada no Darma, porque proporciona experiência. A experiência não está dentro do objeto de arte; o objeto apenas permite que vejamos diretamente o que está dentro de nós, o nosso conteúdo. Toda forma de arte é um espelho que revela direta e palpavelmente o que temos de marcas e carmas.

 

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Começamos a avançar sobre a sexta e a sétima etapa do Nobre Caminho quando reconhecemos que o mundo que estamos vendo é exatamente isso – o mundo como nós o vemos!  O mundo surge inseparável da experiência de “eu”. Quando digo: “Eu surjo”, o mundo surge junto. Se a cada dez anos mudamos nossa identidade, a cada dez anos o mundo também muda. Se olharmos fotografias, elas serão diferentes agora. Se olharmos livros, eles serão diferentes. Lembramos das pessoas, e elas também são diferentes.  Temos impulsos diferentes, compreensões diferentes, e tudo se torna efetivamente diferente.

Por que as coisas ficam diferentes? Porque são inseparáveis de nós; quando mudamos, as coisas mudam. Essa percepção é essencial no budismo, sem ela não há liberação.

Para haver uma crise, é necessário acreditarmos que as circunstâncias nas quais elas acontecem são completamente rígidas, fixas. É preciso acreditarmos que aquilo é como é. Não percebemos que as coisas são inseparáveis da forma como nós mesmos surgimos. Se surgimos dentro de nossa natureza ilimitada, a crise cessa instantaneamente, seja ela qual for. Mesmo a morte cessa, a experiência de morte cessa, ainda que o corpo morra.

Este é o ponto essencial. O Buda aponta para o reconhecimento desta liberdade. Então, quando voltamos para nossa crise, ela parece estreita. Parece a crise de uma criança cujo doce caiu no chão.

O exemplo do Buda foi receber a ação de Mara e compreender a liberdade que havia dentro da circunstância que ele estava vivendo. O Buda sentou sob a árvore bodhi e disse a Mara, o Senhor da Roda da Vida: “Vou derrotá-lo!” Então surgiram exércitos e coisas completamente inauspiciosas, que se dirigiram ao Buda para atacá-lo. Isto corresponde a todas as possibilidades, incertezas e aflições que ele pôde localizar dentro de si. É como se olhássemos para nossa lista de coisas que nem queremos pensar que possam eventualmente desabar e ameaçássemos Mara, dizendo: “Vou derrotá-lo!” O que vai acontecer? É certo que ele vai atacar nossa listinha.

Quando Mara atacou a lista do Buda, ele já estava livre dela. O Buda transformou o ataque de Mara em flores e perfumes. Ele olhou aquelas coisas e pensou: “Estou livre disso! Minha natureza é mais ampla, minha identidade se dissolveu, as fixações se dissolveram. A natureza ilimitada não pode ser alcançada por isso!”  Não foram apenas pensamentos, foi a experiência da natureza ilimitada.

E assim, um por um dos ataques de Mara transformou-se no ornamento da experiência da natureza liberta. Este é o ensinamento do Buda – um ensinamento sobre como viver as crises. Ele atingiu a iluminação não por ter encontrado um mestre que dissesse: “Vou lhe ensinar um jeito de nunca ter problemas”, mas por ter evocado o mestre dos problemas, o terrível Mara.

Maharaja foi mal entendido. Ele é inseparável da natureza ilimitada de Buda. Como poderíamos nos livrar de nossas fixações se não passando pela prova final de nos libertarmos delas? Mas nem queremos pensar nisso porque estamos efetivamente presos a nossas fixações. Estamos presos a universos mentais. Nossa condição não é a oitava etapa do Nobre Caminho, que foi quando o Buda experimentou a libertação. Na sétima ele estava em treinamento, foi quando passou seis anos na floresta contemplando a natureza da realidade de uma forma profunda. Quando atingiu a maturidade desta compreensão, sentiu-se capaz de desafiar Mara.

 

Moralidade

Para reduzir as crises, praticamos a quinta etapa do Nobre Caminho, exercendo a amplidão de nossa natureza, que é maior do que nossa identidade. Nesse caso já estamos manifestando a liberdade natural da condição de Buda, estamos operando além de nossa identidade. Quando fazemos isso, surgem a felicidade e a alegria.

Quando examinamos as melhores coisas que fizemos, as coisas que mais nos deram satisfação, geralmente estão ligadas a algo generoso que fizemos para alguém, um momento no qual transcendemos nossa limitação e fizemos algo realmente bom para alguém. Este tipo de ação se torna permanente, a lembrança disso sempre produz energia e estabilidade para nós.

O que fizemos de bom para nós às custas dos outros torna-se cada vez mais amargo com o passar do tempo. O que fizemos de bom para nós já se foi. No entanto, o fato de termos causado mal a alguém para fazer bem a nós mesmos fica cada vez mais doloroso.

A base do budismo está em reduzirmos o sofrimento para nós e para os outros. Quando causamos sofrimento aos outros, com o tempo isto traz sofrimento também para nós. Por isso evitamos fazê-lo.

A moralidade não é uma regra externa a ser obedecida. Toda ação moral no budismo está ligada a lembrar que, quando nos movemos, podemos estar trazendo sofrimento para os outros ainda que sem querer. A conseqüência será sofrimento para nós mesmos mais adiante. Não é isto que queremos, queremos felicidade. Então, devemos cuidar nossas ações e agir de forma que a felicidade seja possível. Praticando as dez ações não-virtuosas, criaremos sofrimento para nós.

Temos três etapas para evitar o sofrimento. Na primeira, a mais simples e direta, evitamos causar mal e tentamos produzir benefícios para os outros, tentamos conter nossa mente de alguma forma. Na etapa intermediária, olhamos para os obstáculos e reconhecemos que eles apontam nossas fixações. Tentamos então trabalhar essas fixações. Tentamos reconhecer que nossa natureza está além disso. Na etapa final, reconhecemos a natureza ilimitada, a natureza de inseparatividade que nos liga a todas as circunstâncias. Reconhecemos também o brilho da natureza última produzindo a aparência da realidade, a aparência de nós mesmos. Reconhecemos aquilo que não nasce e não morre.

É como se tivéssemos duas etapas de preparação e uma etapa culminante. Na etapa culminante, que também é a oitava etapa do Nobre Caminho, reconhecemos toda manifestação, seja de sofrimento ou de alegria, como inseparável, como a mente luminosa – curiosamente, a mesma mente que olha para uma tela no cinema e tem emoções, compreensões e escolhas, mas não morre quando os personagens morrem. Nossa natureza é assim, não nasce e não morre, mesmo que tenhamos a impressão de que ela nasce e morre.

 

Mudança de paradigmaimages

Às vezes os ensinamentos podem parecer pouco práticos. Você pode dizer: “Tudo bem, lama, entendi tudo, mas tenho um pequeno problema: hoje é dia dezoito, e no dia vinte tenho de saldar uma conta. O que vou fazer? Explicar ao gerente do banco o Nobre Caminho Óctuplo? Ele pode até compreender,  mas não vai poder me ajudar…”

Como achamos que não é prático, temos de resolver caso a caso. Quando quatro montanhas desabam sobre nós, temos de ver quais são nossos méritos para  escapar. Se estamos em crise é porque temos a compreensão disto e de vários outros aspectos como sólidos. Então é necessário olhar da forma mais ampla possível, temos que ver o que queremos e podemos flexibilizar. Não é possível flexibilizar tudo, não temos essa disponibilidade, pois ainda não alcançamos a liberação.

Neste caso, é necessário alguém que nos ajude, que perceba quais liberdades que permitimos e quais são possíveis trabalhar. A lucidez dessa pessoa está na percepção de liberdade que pode ver em nós. Se a pessoa que pretende auxiliar não vê liberdades e posições de flexibilidade em nós, não tem como ajudar.

Quando queremos ajudar alguém, temos de ter habilidade para oferecer opções de flexibilidade e também de reconstruções positivas mais estáveis em alguma direção. Para ajudar, precisamos ver liberdades que o outro não está conseguindo ver. O processo é sempre esse. Temos de nos ampliar, reconhecer nossa natureza mais e mais ampla. Às vezes parece completamente impossível, mas, com uma troca de paisagem, as coisas se tornam viáveis.

Vou usar como exemplo um caso verídico, ocorrido na Editora Peirópolis, de São Paulo. Um assaltante entrou na empresa com um revólver na mão, gritando: “É um assalto! Todos para o banheiro!” Naturalmente, todos obedeceram. Alguém teve a idéia de jogar um vaso na cabeça do assaltante, mas os outros não concordaram, pois contrariava os ideais pacifistas do grupo. Um outro então perguntou ao assaltante sobre sua vida, se ele não ficava nervoso durante o assalto, como havia sido sua infância… O assaltante começou a contar sua história. Um pouco mais tarde, todos estavam conversando animadamente. O assaltante então percebeu que estava cheio de carteiras na mão e começou a devolvê-las. Continuaram a conversa, tomaram um chá, e o assaltante foi embora.

O que aconteceu? Uma mudança de perspectiva, uma mudança de paradigma. Alguém olhou o assaltante de outra forma, e o assaltante também mudou de visão. De repente, ele não era mais assaltante.

Qualquer pessoa pode objetar: “Isso não dá! Ladrão é ladrão, vítima é vítima.” Mas esta rigidez não existe. O que aconteceu com o assaltante pode acontecer conosco. Estamos nos sentindo vítimas e, de repente, não nos sentimos mais. Ou estamos nos sentindo agressores e, de repente, este papel desaparece. Temos esta liberdade. É muito bom que nos lembremos disso. É isso que o Buda veio ensinar.

Não somos rígidos como parecemos ser. Quando estamos em sofrimento, estamos enrijecidos em alguma coisa. Temos mecanismos de fixação e, quando o sofrimento começa, parece que enrijecemos mais e mais. Aí só pensamos conforme os panoramas nos quais o sofrimento é sólido, visível.

Já vimos o resumo dos três aspectos de como o budismo trabalha as crises e de como podemos agir em termos práticos. Agora, se não temos a visão clara e estável disto, é bom que peçamos ajuda. É importante pedir ajuda em situações nas quais não temos competência isoladamente.

[…]

Podemos manobrar coisas, dar jeitinhos, mas existe um limite. Quando manobramos, o ensinamento budista diz: isso não é liberação, isso é o modo de agir na roda da vida, mas a efetividade desta ação não passa de um certo ponto. Em um determinado momento, vamos ter mesmo que cruzar pelas piores circunstâncias. Quando isto acontece, surge a possibilidade de liberação, como ocorreu com o Buda, a revelação da natureza ilimitada que está além da roda da vida.

O ensinamento budista não diz que você vai se livrar das dificuldades. O budismo ensina que, no meio das dificuldades, sua natureza última não entra em sofrimento, não pode ser afetada. Este é o ensinamento mais sutil sobre crise. No budismo dizemos que sofrimento e alegria têm a mesma face quando contemplados a partir da natureza última. A natureza última não é corrompida na alegria, e não entra em crise no sofrimento.

(Ensinamento proferido no Centro de Estudos Budistas Paramitta, em Curitiba, Paraná, em 18 de agosto de 2000)

Paz no dia-a-dia

A paz na vida cotidiana pode ser examinada em vários níveis. Num sentido absoluto, paz é iluminação, liberação completa. Enquanto não se obtem essa condição, a paz não é possível. Podemos trabalhar pela paz, avançar em sua direção, mas, enquanto não atingimos a liberação, estamos presos à experiência cíclica – e, por definição, perdemos a paz. Entretanto, mesmo dentro da experiência cíclica podemos ter momentos de paz. Existem ensinamentos que nos auxiliam a aumentar a paz e reduzir a ansiedade.

A primeira coisa que podemos analisar em relação à paz é que se trata de nossa experiência natural, é uma condição não-construída. Não podemos conquistar a paz, pois ela é nossa experiência básica. Podemos perdê-la se surgirem perturbações, mas ganhá-la não faz sentido. Se pensarmos que a paz surgirá por uma boa razão ou sob condições externas, nunca a encontraremos. Uma vez perdida, a paz só retornará se removermos as perturbações que surgiram.

A paz não surge de um processo lógico sob condições; se nossa paz estiver baseada em argumentos lógicos, não será verdadeira, será uma condição construída e frágil. Por outro lado, todas as experiências de aflição são construídas e surgem sob condições específicas que podemos localizar analiticamente. A análise de nossa situação permitirá descobrir as condições sob as quais perdemos a paz, mas o processo para recuperá-la consiste apenas da remoção de obstáculos – não iremos agregar coisas, mas remover as artificialidades que impedem a experiência original.

 

Estabilidade condicionada

Quando praticamos meditação silenciosa, podemos entrar em estados de grande serenidade, tranqüilidade e paz. Diz-se que, quando os praticantes chegam a um certo nível, a experiência cíclica, a experiência do mundo, perde o apelo. Porque, quando as pessoas meditam, sentem tamanha paz, serenidade e estabilidade que têm vontade de não retornar a suas atividades. Esta experiência de grande felicidade não é definitiva porque, quando o praticante interrompe a meditação e retorna ao mundo das relações, a sensação acaba.

Pode surgir na mente a idéia de que o mundo está todo errado e de que o melhor seria ficar em meditação incessantemente, separado do mundo, das relações. Esta atitude é um obstáculo, uma interpretação equivocada. Na verdade, o objetivo da meditação é chegar a um equilíbrio que não cesse quando retornamos às atividades. O problema é que não meditamos de forma perfeita. A meditação imperfeita gera estabilidade a partir de estados mentais artificialmente produzidos, mas não há a verdadeira estabilidade, natural e livre de qualquer construção. Deste modo, vê-se que os estados meditativos, por serem construídos, não são a solução para se ter paz.

Conseguir manter a meditação estável é muito raro e precioso. E, apesar de frágeis e transitórias, a felicidade e estabilidade condicionadas surgidas da meditação têm efeitos positivos, curativos. Apesar de artificiais, oferecem certa autonomia: até então a pessoa imaginava que a felicidade surgia na dependência de situações externas ligadas ao ganhar e perder, mas agora a vê surgir de uma condição interna, administrável por ela mesma.

Ainda que tenha apenas a experiência condicionada, limitada e impermanente da paz surgida de fatores internos durante a meditação, a pessoa reconhece que, no mundo das experiências cíclicas, no mundo das relações, no mundo em que se ganha e perde, ela nunca teve uma experiência de paz e felicidade com tal brilho e intensidade. Esta experiência, ainda que impura e imperfeita, produz um impulso importante para que o praticante aprofunde a compreensão de seu mundo interno. Seguindo este rumo, mais adiante ele reconhecerá que seu mundo interno é tão grande quanto o universo ilimitado. Não terá mais a experiência de que meditar é delimitar seu interesse ao mundo interno, mas reconhecerá que o mundo interno e o mundo externo são efetivamente inseparáveis e que a compreensão de um leva à direta compreensão do outro. Isto permitirá a ele reconhecer melhor sua condição natural de paz e o ajudará a remover os obstáculos aparentemente externos que justificam a perda da experiência natural de paz.

 

Três venenos

Entre os ensinamentos do Buda sobre o caminho da iluminação, encontramos o Sutra do Diamante, que aborda os vários paramitas, ou seja, formas de prática espiritual que podem conduzir à liberação final. O terceiro paramita trata especificamente da paz, tranqüilidade e paciência e dos obstáculos que se interpõem e nos fazem perder esta condição. O texto começa examinando nossas identidades e localiza nelas a origem dos obstáculos.

Quando nos entrincheiramos em nossas identidades, a paz começa a ser perdida. Seria a identidade realmente o problema? É necessário ter consciência de uma identidade para que o problema surja? A resposta talvez seja não. Mesmo seres que não pensam em si mesmos como identidade, ou que não têm consciência clara de seus propósitos, podem perder a paz. Ao examinar esta questão, veremos que existe um nível mais fundamental, onde atuam três componentes que são como venenos que sustentam nossa manifestação.

O primeiro destes venenos é a ignorância. É um veneno básico que toca todos os seres. Ignorância não é propriamente o desconhecer de algo. É uma experiência muito sutil, na qual desenvolvemos as mais variadas fixações sem perceber. Quando operamos numa fixação, todo o universo toma sentido a partir disto. Aplicamos este referencial para definir o que é vantajoso e o que não é.

O segundo veneno é a aversão, a raiva, a explosão, uma espécie de recurso que usamos quando nossa fixação é ameaçada. Quando sentimos a ameaça, entendemos que precisamos de uma energia extra. Esta energia extra gera uma violência, uma ação agressiva. Mas a agressão não acontece se não houver algo a ser defendido. Então deve haver uma definição prévia do aspecto a ser defendido, mesmo que não seja consciente.

O terceiro veneno é a atividade incessante, ligada à sensação de carência, urgência, desejo, apego. A partir de nossa fixação, consideramos que existem elementos que vão nos favorecer e tornar as condições ao nosso redor mais estáveis, de modo que aquilo a que nos fixamos possa ser sustentado mais facilmente e com mais segurança. Assim, estamos incessantemente preparando condições mais favoráveis e tentando remover o que nos traz perigo. A sensação de perigo ou de vantagem surge das próprias fixações.

Veremos exemplos destas manifestações em todas as direções que olharmos. Estes três aspectos são a microestrutura de nossa identidade, que só surge se houver fixações. Junto com as fixações temos a possibilidade de explosão e a atividade incessante que busca produzir estabilidade sem explosão. Com base nisto cada um de nós pode avaliar melhor o que anda fazendo em sua vida e quais as causas de suas dificuldades e instabilidades.

 

Fixaçõesdownload

As fixações podem ser mentais, emocionais e físicas. Curiosamente, nem sempre elas estão de acordo. Por exemplo: estamos numa palestra, e a mente está atenta. Mas para o corpo há um incômodo, um desconforto, uma impaciência crescente. O nível emocional não está definido. De repente a emoção pergunta ao corpo: “Você está interessado, ou está desistindo?” O corpo diz: “Isto não lá é muito interessante”, mas a mente retruca: “É interessante sim, vamos aguardar um pouco mais.” Aí o corpo reclama: “Mas sou eu que estou sofrendo, você está só ouvindo.” Temos diferentes fixações neste diálogo, é como se fossem diferentes identidades. Todos os seres passam por este processo incessantemente.

Quando analisamos nosso cotidiano, vemos que de modo geral estamos muito ocupados. E nossa ocupação está sempre ligada a alguma fixação. Podemos ter optado pela fixação ou não. Simplesmente vamos em frente, e a vida segue. Não temos propriamente a decisão de andar numa determinada direção. Também pode acontecer o contrário: fizemos o vestibular e estamos cursando a faculdade; houve uma decisão em certo momento. Quando a decisão torna-se ação, sentimo-nos vivos, tudo faz sentido, temos a experiência de viver.

Ao olharmos para o passado, vemos que já tomamos várias decisões, seguimos objetivos quase que cegamente, mas em certo momento tudo se desfez. Quando isto aconteceu, tivemos uma experiência próxima da perda de identidade, um colapso, parecia que a vida não era mais possível. Então elegemos novos referenciais e recomeçamos a nos movimentar. Aí respiramos – parecia estarmos vivos de novo. E seguimos novamente. Lá pelas tantas, os novos objetivos também se dissolvem, nossa identidade entra em outra crise, passamos por um bardo, ou seja, um estado intermediário, não sabemos bem o que queremos, nem para onde vamos. Na seqüência, tudo se reestrutura, ganha novo sentido, e vamos andando.

Quando em movimento, estamos sob domínio das emoções perturbadoras – orgulho, inveja, desejo/apego, obtusidade mental, carência e raiva/medo. Sem isto, não parece que estejamos vivos. Quando estamos em marcha, aparecem obstáculos. O próprio andar impede a paz. Quando interrompemos o andar por um obstáculo, ocorre a defesa explosiva e, com ela, a sensação de amargor, sofrimento, ansiedade, luta. Aí dizemos que há sofrimento ou que a paz desapareceu. Estas situações ocorrem ciclicamente.

Quando saímos de uma situação, quando os referenciais e os mundos deles surgidos se dissolvem, entramos num estado intermediário e depois renascemos em outra condição. Não temos a experiência de que o renascer seja uma perda de paz, de que a fixação em novos referenciais seja uma perda de estabilidade. Ao contrário, imaginamos que é isto que nos trará nova estabilidade. Usualmente só achamos que a paz se foi quando ocorre a explosão. Mas, quando fixamos novos referenciais e nos colocamos em marcha, a paz já está comprometida. Isto significa que estamos presos ao que chamamos de experiência cíclica, onde as coisas surgem, caminham por um certo tempo, se estabelecem e depois se dissolvem. Como não temos esta noção, pensamos que a fixação nos referenciais e na atividade incessante é algo favorável, perfeito. Não suspeitamos da impermanência.

 

Sob domínio da impermanência

Precisamos entender que, quando fixamos referenciais e nos colocamos em marcha, ficamos sob domínio da impermanência. Mais dia, menos dia, aquilo que construímos, aquilo em que nos fixamos, vai se mover. É o que o Buda chama de experiência cíclica. Ou seja, iniciamos num ponto, fazemos tudo crescer e num certo momento aquilo volta a se dissolver e a produzir uma experiência de sofrimento, ansiedade, dor.

Olhamos os seres ao nosso redor e as circunstâncias concretas em que estamos imersos a partir de nossas fixações. Quando surgem as dores, sentimos como se viessem de fora. Se estamos num jogo de futebol, não pensamos que a dor vem de estarmos fixados no campeonato. Pensamos que a dor vem porque o adversário fez um gol. Então temos alguém para culpar, temos um adversário. O fato de estarmos num campeonato pressupõe vitória e derrota. E é assim em tudo.

Se temos fixação por resultados e nos movemos incessantemente para produzir o que consideramos favorável, não entendemos que isto seja um problema. Achamos que as circunstâncias externas não foram suficientemente favoráveis para que tivéssemos êxito. Desejamos que as circunstâncias externas se transformem e fazemos um esforço incessante para que isto aconteça.

Os seres humanos estão sempre mudando alguma coisa em suas vidas. Tentamos mudar as coisas concretas ao nosso redor. Erguemos cidades, destruímos florestas, construímos estradas e unidades fabris, e acreditamos que precisamos de mais e mais circunstâncias favoráveis.

Também tentamos transformar a nós mesmos o tempo todo, buscamos outras aptidões e novas qualidades. Tentamos transformar os filhos, a esposa, o marido, todos que convivem conosco. Todas as coisas são vistas como favoráveis ou desfavoráveis. Sentimo-nos bem, sentimo-nos mal, sempre na dependência destes fatores.

Temos uma espécie de impermanência interna. É como se trocássemos de time de quando em quando. A pessoa torce pelo Atlético, de repente muda para o Coritiba. E aí tudo fica ao contrário: antes ela queria que todos torcessem pelo Atlético, agora pode até tornar-se inimiga dos antigos companheiros. Vivemos num incessante processo interno de transformação de referenciais. Na medida em que eles se transformam, olhamos ao redor com olhos diferentes, e isto produz sofrimentos correspondentes.

 

Referenciais

A perda da paz está intimamente relacionada aos referenciais que elegemos ou ao fato de elegermos referenciais. Quando os elegemos, surgimos como identidades. É um processo mental. Mas podemos também operar diretamente no nível da emoção. Podemos gerar apegos emocionais a circunstâncias, locais, atividades e pessoas.

Quando estamos fixados, parece que aquilo é cósmico, que sempre foi assim. Se é em relação a uma pessoa, dizemos: “Certamente eu a encontrei em outra vida, ou em muitas vidas anteriores.” Pode ser verdade, mas nem sempre esta conexão tão forte é favorável. Quando isto se estabelece, podemos passar a viver em função do outro. Podemos nem nos dar conta claramente do processo, mas, quando o outro se aproxima, nossos nervos detectam. Respiramos mais fácil, ficamos mais alegres. Quando o outro vai embora, respiramos pior, ficamos meio deprimidos.

Se o outro nos abandona, é uma grande tragédia, porque nossa experiência de energia interna está na dependência daquela presença. É como se não soubéssemos viver, experimentamos uma dor incessante por dentro, pode até surgir uma dor física. Ficamos tão deprimidos que nem conseguimos respirar. Isto porque a energia tomou como referencial um aspecto condicionado, então passa a funcionar desta maneira.

De modo geral os namorados passam por esta síndrome. É uma situação grave. Não é um referencial lógico, é um referencial energético. Não é em nível de pele, mas em nível de energias, é interno. Quando aquele ser maravilhoso está próximo, temos uma condição de energia em que tudo parece fácil. Quando o ser se afasta, tudo parece difícil e penoso, e ficamos deprimidos. Não é uma depressão lógica, do tipo: estou com problemas; portanto, estou deprimido.

Os namorados vivem um dentro do outro. Exercem seu efeito num nível sutil. É outro tipo de referencial, outro tipo de fixação. Esta fixação dá origem a outras. Transcende o aspecto mental, lógico, e se manifesta como uma energia. Mas, quando não olhamos para isto de forma exata, podemos cair em algumas armadilhas. Entre estas está o fato de pensarmos que estamos namorando a outra pessoa. Na verdade estamos namorando nosso estado energético. Ficamos fixados a uma energia interna. Se a energia está presente, achamos ótimo. Se a energia não está presente, ficamos mal. Descobrimos que a energia está presente se o outro está próximo.

No início do namoro dizemos: “Sempre que o outro está próximo, aquilo está presente dentro de mim.” Na metade do namoro constatamos: “Às vezes aquilo está presente quando o outro está comigo, às vezes não.” No final do namoro, é o contrário: “Quando o outro está presente, a energia não está.” Como temos uma fixação pela energia, dizemos: “O outro passou.” Aí nossos radares vasculham em volta. De repente, localizamos algo, e a energia surge: “Agora sim!” Aquilo funciona por um tempo, depois tem um período médio e por fim há uma fase de sofrimento, e fica tudo ao contrário. O ser que antes tinha aquele poder hoje passa perto e nada acontece. Mas ele continua com uma aparência muito semelhante. E aquelas fotos que produziam efeito agora não produzem mais. Isto diz respeito à ingenuidade em relação aos referenciais internos.

Quando temos uma relação de proximidade, é bom que o referencial interno seja apenas um adorno. Porque, se for a base da proximidade, talvez esta não dure muito. Porque, do mesmo modo que não sabemos como isto começou, não sabemos por que irá terminar. Quando surge o magnetismo, a eletricidade, dizemos: “Por que eu quereria paz, se tenho esta eletricidade maravilhosa?” Quando ela se inverte, dizemos: “Eu gostaria de ter paz, mas é impossível.” O fato é que todo este processo começa quando geramos fixação por certo tipo de referencial – neste caso, um referencial ligado a uma eletricidade interna, a um estado de energia interna.

 

Referenciais de corpo

Além das fixações mentais e emocionais, existe um terceiro tipo, que se manifesta perto do meio-dia. A pessoa passa a mão pelo estômago e se pergunta: “O que teremos para o almoço hoje?” Aí pensa: “Batatas fritas!” E imediatamente ela saliva. Ela também pode lembrar: “No sábado vai ter churrasco. Vamos comer e beber do meio-dia à meia-noite.” Só de pensar naquilo surge um condicionamento no corpo: brota saliva, todas as glândulas cooperam automaticamente. A pessoa diz para o estômago: “Sim! Sim!” É ele que comanda. E aí surgem várias sensações. Podemos ser comandados pelo estômago ou por qualquer parte do corpo, sejam elas dignas ou não. Todas produzem fixações, referenciais que produzirão resultados.

Tomemos como exemplo o que poderia acontecer se um inseto pousasse em nossa pele enquanto meditamos. Estamos sentados em meditação, pensando: “O Buda tem razão, estou iluminado, que serenidade!” Aí o Buda se transforma num mosquito que voa ao redor, e a serenidade se evapora. O mosquito pousa bem perto do olho, e não podemos permitir tamanha invasão. No entanto, fizemos voto de não nos mexermos. Para o corpo, aquela microagulha que penetra a pele é intolerável. Sentimos o peso do mosquito, e depois o vôo pesado dele. Esta fixação surge no nível do corpo, não é um  processo intelectual. A emoção pode vir, mas essencialmente é o corpo invadido que vai produzir a fixação.

Eventualmente podemos ter competição entre os vários referenciais. O corpo deseja uma coisa; a emoção, outra; e a mente, uma terceira coisa. Estes níveis operam quase que independentemente, às vezes em conjunto, às vezes em oposição. Quando as fixações são definidas, não temos a sensação de que estejamos entrando numa área de perigo. Achamos completamente normal. Pensamos: isto é viver, é assim mesmo.

Elegemos fixações de forma consciente ou não, e elas parecem o exercício de uma liberdade completamente natural. Mas são elas que geram condições que fazem nossa paz desaparecer. A partir daquele momento, a paz só será possível se as fixações não forem perturbadas, se permanecerem satisfeitas – e às vezes elas são contraditórias. A mente pode determinar: “Não coma açúcar”, mas o corpo pede: “Quero chocolate.” Aí a emoção diz: “Você não vai me deprimir, não é mesmo? Olha que eu fico deprimido… Dê-me um pouco de açúcar.”

É muito difícil encontrarmos equilíbrio a partir dos referenciais, mesmo que sejam apenas internos. Por isso o Buda enunciou a primeira nobre verdade: todos os seres têm a experiência de duka. Ou seja, quando estão alegres, é uma preparação para o sofrimento; quando sofrem, é a condição de vida. É como se a harmonia não fosse realmente possível. Como a harmonia não é possível, existe um segundo tipo de sofrimento, que vive do próprio sofrimento. Sofremos por razões objetivas e também porque não queremos sofrer. Sofremos porque gostaríamos que a harmonia fosse possível. Elegemos a harmonia como fixação. E a perseguimos a vida inteira.

 

Oscilações

Quando perseguimos a harmonia, podemos viver seis experiências distintas. Na primeira, a harmonia parece possível. Na segunda, descobrimos que existem seres que têm mais harmonia que nós, e isto nos perturba. Na terceira, olhamos para os seres mais harmônicos e constatamos: “Certo, você tem mais do que eu, tem uma vida maravilhosa. Para ter isto eu precisaria de…” Aí vem uma lista de requisitos, de coisas que precisamos transformar ou adquirir. No quarto tipo de experiência, a pessoa desiste de ter harmonia. Ela afirma: “Vou esquecer esta situação, vou esquecer todos os problemas. Vou me defender esquecendo.” Então esquece tudo e gera uma mente obtusa, desconectada. No quinto tipo, a pessoa fica desesperada porque falta alguma coisa. No sexto tipo, ela desiste de vez e diz: “Ok, todos são terríveis comigo. Também serei terrível com eles.” Neste estágio a harmonia não é mais o objetivo; ao contrário, a pessoa quer provar que ela não é possível e, quando vê alguma coisa funcionando, vai lá e a sacode.

Oscilamos por estas seis formas de emoção. Inicialmente, gostaríamos que a harmonia fosse possível. Esta é a grande dificuldade. Fazemos esforço a vida inteira, por vidas incontáveis, tentando encontrar a felicidade estável. Mas, como o que chamamos de felicidade depende de fatores específicos, a felicidade é fugidia. Às vezes conseguimos, às vezes sofremos profunda decepção. Isto porque os fatores são impermanentes, flutuantes. E assim nossa felicidade nunca é possível. Logo, a paz não se torna possível. E vida após vida perseguimos isto.

Todas estas circunstâncias decorrem de elegermos referenciais específicos, a partir dos quais consideramos: “Só posso ser feliz se…” Temos referenciais de mente, emoção, corpo e de energias internas.

A noção de refúgio pode brotar quando entendemos esta situação cíclica, de impermanência interna e externa. Dizemos: “Eu gostaria de tomar por referencial alguma coisa que estivesse fora disto.” Mas, como não temos o olhar de sabedoria, nunca conseguimos encontrar o que é estável. Faz parte de nossa situação só vermos o que é impermanente. É como se não tivéssemos olhos para reconhecer o que está além de nossa experiência cíclica, de nossos referenciais.

Os seres libertos, que habitam as regiões sutis, rezam por nós sem cessar, soprando: “Acordem!” Mas não escutamos. Ou pior: escutamos errado. Aparece um ser na nossa frente, ouvimos aquele sopro e concluímos: “Deve ser minha alma gêmea!” Mas o ser estava soprando: “Cuidado!” Não conseguimos entender a linguagem do silêncio.

O silêncio está ao nosso redor, a natureza de liberdade pré-existe a nós, nos sucede e existe simultaneamente conosco. Não entendemos. Sofremos de uma identidade para outra, de um pensamento para outro, e não conseguimos ver algo que nos dê idéia de permanência.

Quando saímos da condição de feto na barriga da mãe para a condição de bebê, e depois nos tornamos crianças, adolescentes e adultos, temos a sensação de que é uma continuidade. Mas somos completamente diferentes em cada fase. Temos amigos, objetivos e fixações diferentes. E não entendemos o que se mantém estável. No corpo tudo muda. Passamos por várias vidas e não entendemos o que se mantém enquanto as vidas se sucedem. Olhamos para o céu, para as estrelas, vemos movimentos incessantes –  nunca descobrimos o que não muda quando tudo muda.

[…]

 

Natureza de Budamu

Nossa dificuldade está no olhar. É como se olhássemos para o mar e só víssemos as ondas. Quando vemos as ondas, pode ser que não vejamos o mar. É como se víssemos as ondas separadas do leito do oceano. Assim surgimos nós: separados. Então vêm os seres de sabedoria, como ondas também – porque somente vemos as ondas –, para nos explicar o que é estável, o que está além da impermanência, para nos ensinar o que são os refúgios. Eles vêm e dizem: “Observem a natureza da liberdade além das fixações.” E, sempre que os seres de sabedoria dizem isto, nós acordamos; eventualmente os vemos. E eles dizem: “Esta é a sua face.”

O Zen questiona: “Que face você tinha antes de seu pai e sua mãe nascerem?” É o tipo de pergunta sem resposta. Antes do pai e da mãe nascerem, ou seja, antes das condições surgirem, que face nós tínhamos? Nossos pais e mães não são pais e mães biológicos. Nós surgimos das condições. Antes das condições surgirem, qual era a nossa face? Esta é uma boa pergunta. Nossa face era a face de Buda.

Essencialmente, nossa face é a face não-construída, a face natural, a face antes do espaço e do tempo. Ou a face que está além de espaço e tempo, nome e forma, vida e morte. Devemos tomar refúgio nesta natureza, elegê-la como referencial, como fonte de segurança. Se buscamos segurança no que nasce e morre, não temos segurança verdadeira, porque estas coisas desaparecem. Mas a natureza que existe antes de nossos pais e mães surgirem não nasce e não morre. Isto é a natureza de Buda.

Se tivermos a felicidade de tomar por referência a natureza que não nasce e não morre, poderemos entrar alegremente no mundo dos referenciais, no mundo das coisas que nascem e morrem, porque saberemos onde estamos e o que somos. Estaremos livres desse movimento. E assim poderemos fazer como os bodisatvas: estar no mundo para ajudar os seres a reconhecerem esta natureza.

Podemos dizer: “Tomo refúgio na natureza incessante de Buda”, a natureza do silêncio, a natureza não-construída. Este Buda sempre presente, que existe antes de qualquer construção e é o final de todas as construções, é como o mar para onde todas as águas vão e de onde todas as águas voltam. Tomamos refúgio neste Buda. É o refúgio inabalável. O refúgio em qualquer outra experiência será transitório.

Depois dizemos: “Tomo refúgio em Buda enquanto aparência de todas as coisas.” Este é um aspecto sutil maravilhoso. Descobrimos que dentro do silêncio existe uma natureza de brilho. Uma natureza que tem o poder de construção, de criar dualidades, mundos, aparências, idéias e projetos. Quando estamos em silêncio, esta natureza brilha de forma estável. Podemos modular o brilho e criar projetos, significados, ações.

Todas as aparências ao nosso redor são produto desta energia criativa. Não costumamos ver isto. Vemos apenas se as coisas são favoráveis ou desfavoráveis a nós. Mas podemos olhar a aparência de todas as coisas e reconhecer nelas este poder criativo. Podemos exercer este poder criativo alterando o significado das coisas incessantemente. Podemos perceber a alteração de significados que somos capazes de realizar, perceber a criatividade brotando e reconhecer nisto a natureza luminosa de Buda. Reconhecer este brilho e nele tomar refúgio. Este é o segundo refúgio.

Tomamos refúgio na natureza do silêncio antes de qualquer construção, em Buda como silêncio antes de qualquer impulso. E tomamos refúgio em Buda como brilho que produz criatividade, formas e significados. Reconhecemos o silêncio e a criatividade como incessantemente vivos. Eles brilham incessantemente e são inseparáveis. Usualmente, quando olhamos ao redor, vemos apenas se as coisas são boas ou ruins para nós. Não temos o olhar de sabedoria. Mas houve um Buda que veio e ensinou o olhar de sabedoria. Ele recitou o Prajna Paramita, recitou: “Gate Gate Paragate Parasamgate Bodhi Soha”. E o olho de sabedoria dos seres pode se abrir.

 

Despertar da compaixão

Existe ainda o refúgio de terceiro nível. É um nível muito sutil. Percebemos que, se não ouvíssemos instruções, não teríamos como reconhecer o silêncio e a criatividade na experiência comum das coisas. Nem o silêncio cósmico das idéias, o silêncio cognitivo dos significados, nem o brilho que produz as aparências de alguns significados e sua transformação, o brilho da inteligência. Não veríamos isto como Buda. Aí nos damos conta de que o Buda também surge como aquele que produz ensinamentos, fala o Darma e faz com que reconheçamos nossa natureza como a natureza de silêncio e criatividade. O Buda exerce isto. E descobrimos que também somos assim.

Descobrimos que, quando nossa mente chega aos outros seres e reconhece as dificuldades deles, brota naturalmente em nosso coração o desejo de ajudá-los. E descobrimos que foi isto que aconteceu com o Buda quando ele se manifestou aqui e deu ensinamentos. Podemos ter a experiência de estarmos vivos da mesma forma que o Buda a experimentou. O Buda deu ensinamentos por mais de quarenta anos. Ele encontrou na natureza do silêncio e do brilho a força para se manifestar em benefício de todos.

A compaixão que temos pelas outras pessoas já é a manifestação da natureza de Buda. Somos esta manifestação, não precisamos construí-la, a compaixão é uma condição natural. Descobrimos que o silêncio cognitivo e o brilho da criatividade sempre existiram dentro de nós, e a compaixão também. Quando estes referenciais se instalam em nosso coração, dizemos: “Tomei refúgio na natureza de Buda.”

Quando tomamos refúgio na natureza de Buda, todos os referenciais que produzem a experiência cíclica empalidecem. Nossa condição de homem ou mulher, criança, adolescente, adulto ou velho não importa. Não faz a menor diferença se somos crianças ou se estamos perto da morte. Esta natureza tem o mesmo frescor em qualquer circunstância. Não importa em qual parte do planeta vivemos. Não importa se vivemos agora, duzentos anos para frente ou mil anos para trás. Não há diferença nenhuma. Esta natureza estável está além de vida e morte, além de espaço e tempo, além da história.

Encontramos um referencial que, uma vez assumido, produz estabilidade e paz sob qualquer circunstância. Se encontrarmos isto, será maravilhoso. Se não conseguirmos, pegaremos o que estiver mais próximo disto – a compaixão ou amor que for possível, por exemplo. Consideramos este um bom referencial, ainda que as pessoas ao nosso redor digam: “Você é bobo.” Se dizem isto, é porque estão jogando algum tipo de jogo mental e acham que somos bobos porque não jogamos. Quem joga algum jogo mental não vai além disto. Pode no máximo ganhar. E nem vale a pena ganhar a maior parte dos jogos que se ganha.

Se um torcedor vê seu time ganhar um campeonato, por exemplo, é complicado. Porque, tendo ganho, fica muito mais difícil abandonar os campeonatos. Ele diz: “Agora sou campeão.” E estar preso a um campeonato é um problema. É mais fácil sermos aprisionados pelo sucesso do que pela dor. É quando ganhamos os jogos que temos problemas. Quando tudo vai bem, nos fixamos naquelas condições. Parece que encontramos algo.

 

Caminho espiritual01 A VIDA EM UM DIA

Existem três refúgios que nos levam além da experiência cíclica. Este é nosso objetivo. Para podermos reconhecer estes refúgios ouvimos ensinamentos. E aí surge o budismo. Precisamos do caminho espiritual para superar a experiência cíclica. Quando encontramos refúgio, o caminho espiritual cessa. Enquanto a experiência cíclica não cessar, o caminho espiritual será necessário. Portanto, fazemos prática não só para interromper a experiência cíclica, como também para nos vermos livres do caminho espiritual.

Existem dois tipos de corrupção – da experiência cíclica e do caminho espiritual. Os mestres sempre alertam para o que chamam de materialismo espiritual, que se manifesta quando abandonamos a experiência cíclica usual e entramos no caminho espiritual com fixações específicas. Por isso Sua Santidade, o Dalai Lama, diz: “Eu não sou budista, minha religião é bondade, amor e compaixão.” Às vezes alguém me diz: “Quero ser budista”, mas eu nunca acho essa motivação muito apropriada, é preciso entender que existem referenciais construídos ligados a este tipo de identidade que também produzirão problemas. A motivação correta não é tornar-se budista propriamente, mas buscar a superação de suas dificuldades e se capacitar para beneficiar os outros seres. Por isso Sua Santidade, o Dalai Lama, fala em bondade, amor e compaixão. Recentemente ele afirmou: “Se as pessoas praticarem os valores pregados pelas tradições religiosas, talvez as próprias tradições sejam desnecessárias.”

Como a experiência cíclica existe, o caminho espiritual é necessário. E ele é a expressão da compaixão. Por isso é muito importante trilhar o caminho espiritual, ouvir os ensinamentos, dar valor a eles e, ao mesmo tempo, nunca perder de vista que o objetivo é transcender o caminho espiritual e chegar ao fim dele; ou seja, ao reconhecimento da natureza não-construída e ao refúgio verdadeiro na natureza do silêncio, na natureza da luminosidade e na natureza da compaixão, de onde se é capaz de reconhecer todos os seres como originalmente ilimitados. Quando surge esta experiência, o caminho espiritual se extingue, pois já cumpriu sua função.

É interessante ver que os grandes mestres de cada tradição conhecem as outras tradições. Às vezes conhecem sem nunca terem ouvido nada sobre elas. Como eles acessaram a região de sabedoria, são capazes de dar ensinamentos e responder sobre outra tradição sem nunca ter estudado seus textos. Os grandes mestres dão ensinamentos em todas as tradições.

Isto é importante para que não pensemos que nosso método específico é único ou que deva ser algo em que iremos nos fixar teimosamente para sempre. Nosso objetivo é usar o método e chegar ao final. Não que devamos rejeitá-lo depois. É um legado precioso que chegou a nós através de gerações para que possamos ter mais lucidez e transmiti-la a outros, para que estes seres também se beneficiem e não se fixem, para que aprendam sem gerar fixação. O caminho espiritual é um caminho de paz. Se gerar fixação, será um caminho de sofrimento.

Se não aprendermos que o caminho espiritual é um caminho de paz, estaremos perdendo tempo. É importante que aprendamos e possamos utilizar isto com outros seres, mas livres de fixação. Se a fixação se estabelecer, teremos a experiência cíclica novamente. E diremos: “Este professor do Darma é o melhor que tive. Este eu ouço, aquele eu não ouço. Este ensinamento é bom, aquele outro tem problema. Os seres que ouvem aqueles ensinamentos estão todos perdidos. Ah, eu não, eu estou no único caminho certo.” E seguiremos assim. É uma experiência cíclica infindável. Este é o poder de corrupção da experiência cíclica. Ela pode nos corromper mesmo enquanto praticamos.

Trecho do livro ”Meditando a Vida” de Lama Padma Samten

Relações, apego, família no Natal, meditação e cinco sabedorias | Lama Padma Samten


 

Eis uma pergunta que em algum momento qualquer praticante budista se faz: afinal de contas, se temos uma natureza livre, desobstruída, como é que nos enganamos? Como surge a ignorância?

Nem precisa ser praticante budista para pensar numa questão dessas: quem nunca teve alguma atitude lamentável e depois de um tempo não pensou “como é que eu fui capaz de fazer aquilo?” Por que só percebemos a bobagem um tempo depois e não antes de cometê-la?

Na palestra de lançamento do livro A Roda da Vida como caminho para a lucidez, em São Paulo, Lama Padma Samten esclarece com sua maestria e bom humor que, na verdade, a mente nunca se engana! Ela só opera dentro de uma determinada paisagem, com referenciais próprios. Essa paisagem seria como um ambiente mental, com referenciais e conceitos específicos. A mente sempre vai agir segundo esse ambiente em que está imersa, sempre respeitando os pressupostos da paisagem. Logo, a mente nunca erra!

A ignorância e o engano surgem quando reduzimos o mundo todo à paisagem em que estamos e passamos a agir segundo tal paisagem, não entendendo que ela é uma coisa bem particular e não corresponde a uma realidade absoluta.

Nosso mundo não é senão nossa experiência do mundo
Temos a sensação que a paisagem em que estamos é, de fato, o mundo todo. É daí que brota o engano: dessa certeza, dessa sensação de vermos tudo. Nem pensamos sobre o fato de que, quando vemos uma coisa, não vemos outra, quando estamos numa paisagem, não estamos em outra, logo, há uma limitação. É como a figura das pernas ali em cima: quando vemos as pernas masculinas, não vemos as femininas e vice-e-versa. O mesmo acontece no exemplo do cubo que o Lama Samten costuma usar.

É por isso que fazemos as bobagens: no momento da ação não vemos outras alternativas e por isso temos a certeza de que aquilo que estamos fazendo é o que tem que ser feito, seja gritar com alguém, ou o que for. Isso não vale só para as “bobagens” da vida. Qualquer coisa que vemos e fazemos depende da paisagem em que estamos. É um processo muito sutil, basta olharmos para o nosso mundo interno que vamos começar a paulatinamente perceber que as paisagens determinam nossa visão de mundo.

Nessa mesma palestra, Lama Samten lembra que a humanidade passou séculos acreditando que o Sol girava ao redor da Terra. O homem passou um longo tempo sem conseguir ultrapassar os limites dessa paisagem, tomando-a como fixa. Até que alguns homens corajosos furaram a bolha dessa paisagem e provaram para nossos olhos físicos que a visão de mundo tinha de ser expandida! Mas nós sabemos o quanto foi custoso para homens como Copérnico, Galileu e Giordano Bruno introduzir novas visões de mundo. As pessoas estavam fixadas à visão de mundo anterior a eles, assim como nós estamos fixados a muitas de nossas paisagens.

Mas afinal, como criamos as diferentes visões de mundo e como ficamos presos a elas? Lama Samten explica que nossa natureza livre e desobstruída cria as diferentes paisagens e até mesmo a própria fixação a elas. Essa compreensão é de crucial importância, pois percebemos que as paisagens em que as pessoas se encontram não são fixas, são construídas, portanto, podem ser substituídas por paisagens mais elevadas!

Para mim, a parca compreensão do conceito de paisagem foi muito libertadora! Perceber que os seres agem a partir das paisagens em que estão imersos me fez finalmente entender porque não há como julgarmos nada de certo e de errado, pois esses conceitos só fazem sentido quando analisamos uma ação com referenciais diferentes daqueles da paisagem em que a ação foi cometida. Por exemplo: eu direi que a atitude do meu namorado de gritar comigo está errada, pois EU não estou na paisagem onde o grito possa surgir, assim eu estou analisando a atitude dele a partir da paisagem em que EU estou e não a partir da que ELE está, logo, direi que ele está errado e que ele é um ser horrível por gritar comigo. Mal percebo eu que, basta ele pisar na bola que eu entro facilmente na paisagem que ele estava e passo a gritar com ele mais alto ainda.

Portanto, se estivermos numa paisagem muito negativa, do reino dos infernos, por exemplo, é completamente possível que venhamos a agredir ou até a matar alguém. Dentro da paisagem desse reino, matar pode parecer o correto a se fazer. Porém, sabemos que essas ações nos trarão muitos problemas. Além disso, como nossas paisagens flutuam o tempo todo, logo saímos da paisagem negativa, percebemos o equívoco e vamos nos sentir muito mal. Por isso, precisamos olhar com cuidado para o nosso mundo interno e perceber com que paisagens estamos andando por aí e começar a transformá-las em paisagens mais positivas, para que enfim nossas ações também o sejam. Caso contrário, estaremos fazendo um monte de bobagens e nem vamos desconfiar disso, afinal, dentro das paisagens específicas as coisas fazem sentido.

Visão, meditação, ação
Lama Padma Samten nos lembra a todo o momento da nossa natureza livre, que nos dá a extraordinária possibilidade de construir as melhores paisagens, as mandalas positivas, que no Budismo chamamos de Terras Puras, onde os seres estão empenhados em construir ambientes mais lúcidos para benefício de todos. Só iremos perceber que temos essa extraordinária natureza praticando a percepção dela.

Ainda que entendamos bem o funcionamento das paisagens, não estamos livres das paisagens negativas se instalarem sem percebermos. Não estamos livres delas, porque muitas vezes esse entendimento é só no nível de visão; é teórico, mas importante. Mesmo entendendo bem das paisagens, eu mesma recentemente gritei enlouquecidamente com um amigo, virei um monstro na frente dele por questões bem pequenas.

Reconhecendo que o buraco é bem mais em baixo, precisamos investir na etapa da meditação, na qual tornaremos vivo o entendimento gerado na etapa de visão e assim reconheceremos a inutilidade do surto antes que ele tome conta de nós. Para então podermos efetivar a etapa de ação no mundo e realmente poder trazer benefícios verdadeiros aos seres!

Dedico esse texto a todos os seres sencientes, mas principalmente ao querido amigo com quem gritei recentemente. Minhas sinceras desculpas!

http://bodisatva.com.br/como-que-a-mente-se-engana/

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