Quem é você? — do livro “Apaixonado pelo mundo” de Mingyur Rinpoche

APAIXONADO PELO MUNDO: a jornada de um monge pelos bardos do viver e do morrer, de Yongey Mingyur Rinpoche e Helen Tworkov, oferece um relato raro e íntimo da experiência de quase morte de um monge budista de renome mundial, que teve como resultado a conquista de uma sabedoria transformadora.

Aos trinta e seis anos de idade, Yongey Mingyur Rinpoche era uma estrela em ascensão dentro de sua geração de mestres tibetanos quando, uma noite, saiu de seu monastério na Índia para embarcar em um retiro errante. Ele queria despojar-se de seus títulos e de sua identidade pública para explorar os aspectos mais profundos de seu ser, mas imediatamente percebeu que não estava preparado para as duras realidades fora do monastério. A jornada aventureira teve uma reviravolta surpreendente quando ele ficou mortalmente doente por intoxicação alimentar. Sua prática de meditação ao longo da vida o havia preparado para enfrentar a morte e ele agora tinha a oportunidade de testar a força de seu treinamento.

Neste livro de memórias poderoso e inusitadamente sincero, o mestre budista revela as lições inestimáveis que teve a partir de sua experiência de quase morte e ensina como enfrentar o medo por meio das práticas de meditação que o sustentaram. Abaixo você pode ler o primeiro capítulo do livro e perceber a profundidade desses ensinamentos.


Quem é você?

Você é o Mingyur Rinpoche?

Meu pai me fez essa pergunta logo depois que comecei a estudar com ele, aos nove anos de idade. Era tão gratificante saber a resposta certa que orgulhosamente declarei: Sim, eu sou.

A seguir, ele perguntou: você pode me mostrar uma coisa em especial que faz de você Mingyur Rinpoche?

Olhei para a parte frontal do meu corpo até meus pés. Olhei para minhas mãos. Pensei no meu nome. Pensei em quem eu era em relação aos meus pais e a meus irmãos mais velhos. Não consegui chegar a uma resposta. Meu pai, então, fez a busca pelo meu verdadeiro eu parecer uma caça ao tesouro e, sinceramente, procurei até debaixo das pedras e atrás das árvores. Aos onze anos, comecei meus estudos no Sherab Ling, monastério situado no norte da Índia, onde trouxe essa busca para dentro de mim por meio da meditação. Dois anos depois, entrei no tradicional retiro de três anos, período de intenso treinamento mental.

Durante esse período, nós, monges noviços, fazíamos vários exercícios diferentes, cada um aprofundando nossa compreensão dos níveis mais sutis da realidade. A palavra tibetana para meditação, gom, significa “familiarizar-se com”: desenvolver familiaridade com o funcionamento da mente, como ela cria e molda nossas percepções de nós mesmos e do mundo, entender de que modo as camadas externas da mente — os rótulos construídos — funcionam como roupas que caracterizam a nossa identidade social e ocultam o estado nu e não fabricado da nossa mente original, sejam elas ternos, jeans, uniformes ou túnicas budistas.

Na época em que fui para esse retiro, entendi que o valor dos rótulos muda de acordo com as circunstâncias e o consenso social. Eu já havia concluído que eu não era o meu nome, o meu título ou o meu status; meu eu essencial não poderia ser definido por posição social ou atribuição. Apesar disso, essas mesmas designações, vazias de significado essencial, tinham definido os meus dias: sou um monge; um filho, um irmão e um tio; um budista; um professor de meditação; um tulku, um abade e um escritor; um nepalês tibetano; um ser humano. Qual dessas identidades descreve o meu eu essencial?

Fazer esta lista é um exercício simples. Há apenas um problema: a conclusão inevitável contradiz toda e qualquer hipótese que nos é tão cara — conforme eu estava prestes a aprender mais uma vez. Desejava ir além do eu relativo — o eu que se identifica com esses rótulos. Sabia que, embora as categorias sociais desempenhem um papel dominante na nossa história pessoal, elas coexistem com uma realidade maior além dos rótulos. 

Geralmente, não reconhecemos que nossa identidade social é moldada e limitada pelo contexto, e que essas camadas externas de nós mesmos existem dentro de uma realidade ilimitada. Padrões habituais encobrem essa realidade ilimitada, a obscurecem, mas ela está sempre lá, pronta para ser desvelada. 

Quando não somos reduzidos pelos padrões habituais que definem como nos vemos e nos comportamos no mundo, temos acesso às qualidades vastas da mente, que não dependem de circunstâncias ou conceitos, e estão sempre presentes; por isso a chamamos de fundamental, ou mente absoluta, a mente da realidade absoluta, que é a mesma mente da consciência plena pura que expressa a própria essência da nossa verdadeira natureza. Diferentemente da mente intelectual e conceitual e do amor ilimitado de um coração aberto, essa essência da realidade não está associada a um local nem a qualquer tipo de materialidade. Está em toda parte e em lugar nenhum. É como o céu — tão completamente integrado à nossa existência que nunca paramos para questionar sua realidade ou reconhecer suas qualidades. Devido ao fato de a consciência plena pura estar tão presente em nossa vida quanto o ar que respiramos, podemos acessá-la em qualquer lugar, a qualquer momento.

Eu havia desenvolvido certa capacidade de manter as perspectivas relativa e absoluta ao mesmo tempo. No entanto, nunca vivi um dia sem pessoas e suportes que espelhassem a colcha de retalhos que se tornou conhecida para mim e para os outros como Mingyur Rinpoche: infalivelmente educado, pronto a sorrir, com um comportamento reservado, asseado, barbeado, usando óculos sem aro e de armação dourada. Agora eu me perguntava como essas identidades seriam encenadas na estação de Gaya. Já estive lá muitas vezes, mas sempre com pelo menos um assistente. Ou seja, nunca deixei de ter uma referência de posição social e nunca fui desafiado a depender apenas dos meus próprios recursos internos.

Os tibetanos têm uma expressão para se referir à ação de aumentar intencionalmente os desafios para manter uma mente estável: jogar mais lenha na fogueira. Em geral, as pessoas passam a vida tomando muito cuidado com aquelas experiências que, em geral, provocam raiva, ansiedade ou medo — e tentam evitá-las, dizendo coisas como: não consigo assistir a filmes de terror. Não posso com grandes multidões. Tenho um medo terrível de altura, ou de voar, ou de cães, ou do escuro. Mas as causas que provocam essas respostas não desaparecem; e, quando nos vemos nessas situações, nossas reações podem ser arrasadoras. Usar nossos recursos internos para trabalhar com essas questões é nossa única e verdadeira proteção, pois as circunstâncias externas mudam o tempo todo e, portanto, não são confiáveis.

Jogar deliberadamente lenha na fogueira traz à tona situações difíceis para que possamos lidar com elas de uma forma direta. Tomamos os comportamentos ou circunstâncias que pensamos ser o problema e os transformamos em aliados. Por exemplo, quando eu tinha cerca de três ou quatro anos, fiz uma excursão de ônibus peregrinando pelos principais locais budistas na Índia com minha mãe e meus avós. Senti muito enjoo nessa primeira viagem de ônibus. Depois disso, toda vez que chegava perto de um ônibus, ficava com medo e nauseado e, inevitavelmente, me sentia mal de novo. Por volta dos doze anos, após um ano morando no monastério Sherab Ling, no norte da Índia, eu estava indo para casa para ver minha família. O assistente que iria comigo planejou nossa viagem indo de ônibus até Delhi, viagem essa que duraria a noite toda e, a seguir, pegaríamos um avião de Delhi para Katmandu.

Estava ansioso para ver os meus pais, mas durante várias se- manas fiquei muito apreensivo com a viagem de ônibus. Insisti para que o assistente comprasse dois assentos para que pudesse ir deitado, pois achei que isso acalmaria o meu estômago. Porém, logo no início da viagem, descobri que me sentia pior deitado. Meu assistente implorou para que eu comesse alguma coisa ou bebesse suco, mas meu estômago estava muito inchado para engolir qualquer coisa. Quando o ônibus parou no meio do caminho, me recusei a levantar e sair. Não queria me movimentar e não o fiz por muitas horas. Por fim, saí do ônibus para usar o banheiro e tomar um pouco de suco.

Quando voltei aos meus dois lugares dentro do ônibus, me senti muito melhor e decidi tentar meditar. Comecei examinando o corpo, trazendo minha consciência para as sensações ao redor do meu estômago, o inchaço e a náusea. Foi muito desconfortável, um pouco repugnante e, de início, piorou aquelas sensações. Mas, quando passei lentamente a aceitar essas sensações, senti como se o meu corpo inteiro fosse uma casa de hóspedes. Era como seu eu fosse o anfitrião dessas sensações, assim como das sensações de aversão, resistência e reação. Quanto mais permitia que esses hóspedes habitassem o meu corpo, mais calmo eu ficava. Logo adormeci e acordei em Delhi. 

Essa experiência não resolveu todas as minhas ansiedades a respeito de andar de ônibus; o medo voltou com as viagens subsequentes, embora com um efeito atenuado. A grande diferença foi que, após essa viagem, os passeios de ônibus eram bem-vindos. Não tentava planejar esse tipo de viagem do mesmo modo intencional com que planejei esse retiro itinerante, mas me senti grato pelo desafio de lidar com minha mente para superar a adversidade.

Quando jogamos lenha na fogueira em vez de tentar sufocar as chamas dos nossos medos, acrescentamos mais combustível e, no processo, ganhamos confiança em nossa capacidade de lidar com o contexto em que nos encontramos. Deixamos de evitar as situações que nos perturbaram no passado, ou que evocam padrões destrutivos ou explosões emocionais. Começamos a confiar em outro aspecto da mente que está abaixo da nossa reatividade. Chamamos esse aspecto de “não eu”. É a consciência plena não condicionada que se revela com a dissolução da mente tagarela, que fala consigo mesma durante o dia todo. Outra maneira de dizer isso é que trocamos a engrenagem mental da consciência comum para a consciência meditativa.

A consciência comum que orienta as nossas atividades cotidianas é, na verdade, bastante confusa. Em geral, passamos os nossos dias com a mente cheia de ideias sobre o que queremos e sobre como as coisas devem ser, e com respostas reativas ao que gostamos e não gostamos. É como se estivéssemos usando diferentes pares de óculos sem saber, sem ideia de que esses filtros obscurecem e distorcem nossas percepções. Por exemplo, se sofremos do mal-estar causado pelo movimento, os óculos sobressalentes são os sentimentos de nojo pelo cheiro do vômito e pela vergonha que sentimos por causar repugnância aos outros. O fato de que alguém possa perceber, aumenta ainda mais o nosso desconforto físico.

Vamos supor que olhamos para uma montanha com a consciência comum. Nossa mente está voltada para fora e segue nossos olhos em direção à montanha, e talvez nos venha à mente qual foi a última vez que vimos essa montanha, ou qualquer outra, com quem estávamos na época, se o clima ou a hora do dia eram melhores na experiência anterior ou agora, ou se estamos com fome ou felizes. Ou verifique as vezes em que usamos a consciência comum para pegar a chave e o celular antes de sair de casa. Repare que esse processo muitas vezes inclui a ansiedade de estar atrasado ou sobre qual caminho fazer para chegar ao nosso compromisso, ou podemos até fantasiar a respeito da volta para casa antes mesmo de sairmos.

Com a consciência meditativa, tentamos remover esses filtros e reduzir as projeções. Voltamo-nos para dentro e reconhecemos a consciência plena como uma qualidade da própria mente. Quando olhamos para a montanha, há menos tráfego mental entre nós e a montanha, menos conceitos e ideias. Vemos coisas sobre a montanha que não havíamos visto antes: a forma como os sulcos são delineados pela forma das árvores, as mudanças na vegetação ou o céu que circunda a montanha. A mente clara dessa consciência plena está sempre conosco, quer a reconheçamos ou não. Coexiste com a confusão e com as emoções destrutivas e o condicionamento cultural que dão forma ao nosso modo de ver as coisas. Mas, quando nossa percepção muda para a consciência meditativa ou consciência plena estável, ela não é mais reduzida pela memória e pela expectativa; tudo o que vemos, tocamos, saboreamos, cheiramos ou ouvimos tem maior clareza e nitidez, e vivifica nossas interações.

Pouco depois de começar a estudar com meu pai, recebi dele ensinamentos sobre a consciência meditativa. Um dia eu estava no telhado da minha casa, apenas olhando à volta de uma maneira distraída e casual, e percebi que, na parte de cima de Shivapuri, montanha que fica atrás do Nagi Gompa, havia trabalhadores consertando uma trilha que atravessa um dos lados da montanha. Umas seis pessoas estavam usando pás, picaretas e carrinhos de mão para nivelar o caminho, remover a terra e as pedras desmoronadas. Sentei e fiquei observando o trabalho lá do telhado. A seguir, me veio o pensamento: devia estar meditando.

Seguindo as instruções do meu pai, voltei minha mente para si própria sem mover meus olhos. Continuei a ver as pessoas trabalhando, a ouvir o som das picaretas quebrando as pedras; a ver o carrinho de mão despejando terra para o lado. Mas, de repente, também vi o lindo céu azul e as nuvens passando por cima, e vi folhas se movendo ao vento, senti a brisa em minha pele e ouvi pássaros cantando. Antes, com a consciência comum, meu foco se restringiu e eu não sentia nem via nada, a não ser os trabalhadores na estrada. A consciência meditativa — também chamada de consciência plena estável — nos introduz a olhar para a natureza da própria consciência plena.

Uma vez que nos familiarizamos com a consciência plena estável, ainda nos movemos com frequência entre esse estado e a consciência comum. Apesar da diferença entre eles, os dois tipos de consciência existem dentro de um construto dualista: há algo observando e algo sendo observado — a experiência da consciência plena reconhecendo a si mesma. Quando essa dualidade é eliminada, entramos no que chamamos de consciência plena pura — ou não dual.

A não dualidade é a qualidade essencial da consciência plena, mas, quando falamos de três tipos — comum, meditativa e pura —, estamos falando de um processo experiencial gradual que vai dos estados dualistas para os não dualistas, da mente muito confusa para a mente que está cada vez mais liberada da reatividade habitual e de ideias preconcebidas de como as coisas devem ser. Essas categorias da consciência plena não são nitidamente delineadas, e o nosso reconhecimento da consciência plena pura também tem muitas gradações. Podemos ter vislumbres ou lampejos com diferentes graus de profundidade ou clareza. Eu conhecia um pouco da consciência plena pura. Parte da minha intenção para esse retiro era intensificar o modo como me relaciono com esse aspecto da realidade e esperava conseguir isso saindo da minha vida normal.

Quem estava prestes a entrar na estação ferroviária de Gaya no meio da noite? Minhas vestes marrons, camisa amarela e cabeça raspada me identificavam como monge budista tibetano, um lama por profissão — um perfeito disfarce para a mistura desordenada de curiosidade, ansiedade e confiança que acompanhava cada batida do meu coração que, de muitas maneiras, ainda procurava a resposta à pergunta do meu pai — Quem é Mingyur Rinpoche?

Eu havia adquirido a habilidade de reconhecer a consciência plena — dentro do ambiente monástico e dos templos, e em minha esteira de meditação, sempre na minha zona de conforto, e sempre perto de discípulos e atendentes. Embora tivesse meditado por toda a minha vida e passado muitos anos em monastérios budistas, estava começando agora um tipo diferente de retiro. Meus títulos e atribuições seriam jogados na fogueira. Queimaria as proteções e as estratégias sociais externas comuns para ser livre — não da vida, mas para a vida, para viver todos os dias com um envolvimento sempre novo para com qualquer coisa que surgisse. Não voltaria simplesmente para os caminhos recompensadores que conhecia tão bem. Suspeitava que esses papeis tinham se tornado profundamente arraigados e não conseguiria lidar com eles até que algum grau de ruptura os trouxesse à tona.

Parti sozinho para intencionalmente procurar esse rompimento por meio do que eu pensava ser uma missão de suicídio do ego. Queria explorar as profundezas de quem eu realmente era no mundo, anônimo e sozinho. Queria testar minhas próprias capacidades em situações novas e desafiadoras. Se eu puder realmente romper com minhas rotinas estabelecidas, encontrar meu próprio limite e continuar prosseguindo, vamos ver o que acontece com meu reconhecimento da consciência plena, ver o que acontece com as virtudes da paciência e da disciplina quando ninguém está vendo, quando ninguém sabe quem eu sou; quando talvez nem eu saiba quem sou. 

O táxi fez um barulho longo e estridente até parar. Estava na hora de descobrir. Paguei o motorista e saí do táxi. Como se para afirmar que todo refúgio mundano é tão efêmero quanto fumaça, parei em frente à estação e virei, olhando o táxi desaparecer.


Mingyur estará no Brasil (São Paulo e Rio) em agosto e esta é uma grande oportunidade de aprender com um grande professor. Mais informações e inscrições aqui

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