Recobrando nossos Sentidos B. Alan Wallace

Trecho do livro “Mente em  Equilíbrio – A meditação na ciência, no budismo e no cristianismo” de B. Alan Wallace. 

  Um dos enganos mais persistentes é a convicção de que a fonte de nossa insatisfação se encontra fora de nós mesmos. Independentemente de quem somos, achamos que o mundo está num estado tão deprimente devido ao comportamento de gente que não é como nós. Políticos liberais têm certeza de que os conservadores devem levar a culpa dos problemas do mundo, enquanto os conservadores estão não menos convencidos de que são parte da solução. Ativistas políticos censuram os politicamente apáticos que não se consideram responsáveis pelas políticas do governo, enquanto o público em geral censura o governo por seus infortúnios e encara as contribuições financeiras para governança do país onde nasceram como “fardo fiscal”. Crentes religiosos criticam as pessoas que pertencem a outras seitas dentro de sua própria religião, assim como os seguidores de outras religiões e os não crentes. E os ateus, agarrados tenazmente ao próprio credo materialista, atribuem os males do mundo aos crentes religiosos. Cada um de nós está convencido de que Deus ou pelo menos a verdade e a integridade estão do seu lado.

  Esta delusão ubíqua predomina tanto no nível local quanto numa escala internacional. Se encontrarmos problemas em nossa cidade natal ou nas vizinhanças, acreditamos que outras pessoas devem ser responsabilizadas. Cerca da metade dos casamentos nos EUA acabam em divórcio e, na maioria dos casos, cada parceiro dirá que o culpado é o outro. Mesmo quando admitimos que nossa conduta não tem sido de todo perfeita, concluímos facilmente que a outra pessoa nos levou a isso. Se eles, antes de mais nada, tivessem se comportado melhor, nós não teríamos nos extraviado! O mesmo se aplica quando há discórdia entre pais e filhos – há sempre outra pessoa na raiz do problema.

  Aqui está uma solução hipotética e eu o convido a imaginar como ela poderia dar certo. Feche os olhos e imagine que todos os habitantes da Terra que estão contribuindo para a miséria do mundo são de repente transportados para a Lua. Na antiga Índia, algumas pessoas achavam que a alma daqueles que não tinham alcançado a libertação do ciclo de renascimento migravam para a Lua, onde eram recebidos pelos ancestrais. Assim, há um antigo precedente para a ideia. Ao imaginar essa limpeza do planeta-mãe de todos os malfeitores, procure não deixar nenhum de fora. Quando tiver terminado, abra os olhos e olhe em volta.

  Bem- vindo à “lixeira maluca!” Enquanto você estava mandando todas as pessoas de sua lista negra para a Lua, pode ter certeza de que alguém fazia o mesmo com você. Acabamos transportando todos os 6,5 bilhões de pessoas da Terra para a Lua. E se você olhar através de um telescópio de novo para a Terra, poderá ver todas as espécies não humanas dando uma festa global – graças a Deus a terra natal deles esta finalmente livre da praga cancerosa conhecida como gênero humano! Sem nossa interferência, a ecosfera rapidamente começa a recuperar seu equilíbrio e fica cada vez mais parecida com um Jardin do Éden. E a Lua parece uma colônia penal superpovoada ao extremo, árida e estéril. Como disse o filósofo Jean- Paul Sartre numa máxima famosa: “O inferno são os outros.”

  Todos nós tendemos a pensar que as outras pessoas são o problema e que nós somos parte da solução. Mas isso simplesmente não se encaixa. Não há dúvida de que os outros fazem coisas que contribuem para a miséria e o sofrimento do mundo e seria ótimo se eles reconhecessem que têm hábitos errados. Mas não vamos prender a respiração esperando que se emendem. Pelo menos nos pequenos cantos que ocupamos no mundo, podemos começar assumindo responsabilidades pelo nosso comportamento – para criar um futuro melhor para nós e para os que estão mais próximos de nós.

  Podemos começar restaurando o equilíbrio de nossos corpos e mentes, e a prática de atenção plena na respiração pode ser um grande passo nessa direção. Quando o gênero humano deixa de perturbar o equilíbrio da natureza com sua ganância e seus equívocos, a ecosfera se cura a si própria. O solo recupera a fertilidade, as massas de agua se purificam, o problema do aquecimento global se resolve, a atmosfera fica livre de todos os tipos de poluentes, e a camada de ozônio se regenera. No nível micro, cada um de nós rompe o equilíbrio do seu corpo-mente sempre que sucumbe aos transtornos emocionais provocados pela insegurança, pelo medo, pela ânsia, pela hostilidade ou estupidez. Essa turbulência emocional afeta adversamente nosso cérebro, nosso sistema imunológico, nossos hormônios e o sistema nervoso como um todo. Quando concedemos uma atenção plena ao ritmo de nossa respiração, podemos ver como ela é interrompida e comprimida por pensamentos e emoções perturbadores, o que por sua vez tira o resto do corpo do equilíbrio. Nossa ecologia pessoal sai dos eixos.

  O resultado desse desequilíbrio mente-corpo é a sensação de estarmos física e emocionalmente estressados – pulamos de um lado para o outro entre hiperatividade psicológica e a exaustão. Esses sintomas são mensagens que nossos corpos mortificados estão nos enviando, mas frequentemente reagimos recorrendo a drogas, álcool, trabalho, diversão, comida, sono e mil outros meios de entorpecer a dor. Como não gostamos das mensagens recebidas do corpo, amordaçamos os mensageiros.

  A atenção plena na respiração não é uma panaceia, mas sem duvida nos coloca em contato com a realidade local de nossa respiração. A respiração é nossa mais constante fonte de sustento – o contínuo fluxo e refluxo do corpo com o ambiente natural – e quando perturbamos seu ritmo, obstruímos esta linha de suprimento. Mas pela atenção plena, voltada passivamente para a respiração, podemos restaurar gradualmente o ritmo e o volume do ar que o corpo precisa a cada momento e nossa vitalidade retornará. Isso acontece naturalmente quando conseguimos ter uma boa noite de sono, quando a respiração flui sem interferência de pensamentos e emoções perturbadores. Inversamente, quando passamos uma noite mal dormida, entremeada de sonhos desagradáveis, tendemos a nos sentir exaustos de manhã. Nossa respiração teve pouca chance de restaurar o equilíbrio de nosso corpo e mente. Com treinamento, podemos aprender a ajustar a respiração a seu ritmo natural durante o estado de vigília e sentir muito menos desgaste físico e mental.

  A mais antiga literatura indiana sobre contemplação sugere que a primeira dentre todas as práticas meditativas foi concentrar a atenção na sílaba sagrada “Om”, juntamente com a atenção a respiração. A atenção plena na respiração já era bem conhecida na época de Buda, e segundo o próprio relato feito por ele, sua iluminação teve lugar enquanto estava empenhado nessa prática. As instruções que deu eram simples. Sem querer controlar ou alterar, sob qualquer forma, a respiração, comece simplesmente observando a extensão de cada inalação ou exalação. Á medida que sua mente começa a se acalmar, o volume de ar gradualmente diminui e você notará que a inspiração e expiração se tornam relativamente curtas. À medida que o tempo passa, você concentra sua atenção de maneira cada vez mais contínua na respiração durante toda a inalação e exalação. Finalmente, o ritmo da respiração se torna cada vez mais brando, enquanto todo o corpo é acalmado.

  Desde que Buda começou a ensinar esse exercício, uma centena de gerações de contemplativos budistas, de uma ponta a outra da Ásia, re-descobriram seus benefícios para produzir não apenas calma e serenidade interiores, mas também uma sensação interior de felicidade. Quando essa prática é desenvolvida e cultivada, as emoções negativas surgem com muito menos frequência e, quando surgem, tendem a abrandar sem perturbar a mente como faziam antes. Esses resultados indicam que a mente tem uma capacidade extraordinária de curar a si própria quando lhe dão uma chance. Exatamente como um ferimento sara quando é mantido limpo e um osso quebrado torna a colar quando é bem encaixado, nossas feridas psicológicas curam quando a atenção é firmemente colocada na respiração, sem se dispersar em pensamentos de desejo ou hostilidade.

  Para ajudar a estabilizar a atenção na respiração e diminuir os pensamentos dispersos, muitos meditadores budistas contam mentalmente as respirações. […] Começar uma prática meditativa é como plantar a pequenina muda de uma árvore. Se ela vai criar raizes profundas, atingir a altura máxima e ficar saudável durante muitos anos vai depender do tipo de solo em que é plantada e da nutrição que recebe. Nosso modo de observar a realidade, nossos valores e prioridades, assim como nosso meio de vida são o solo que dá suporte a nossa meditação. Se são eficientes e prestam um bom apoio, a meditação florescerá a longo prazo e poderá enriquecer imensamente nossa vida. Caso contrário, nossas incursões pela meditação serão muito provavelmente breves ou, na melhor das hipóteses, esporádicas e superficiais. […] Durante incontáveis existências antes de sua iluminação, Gautama (mais tarde conhecido como Buda) levou a vida de um bodhisattva, servindo de exemplo para todos que vieram depois dele. A premissa fundamental subjacente ao modo de vida bodhisattva é que todos os seres tem o potencial para alcançar a perfeição da iluminação e nosso desafio é realizar esse potencial em nossa vida diária. Só nos integrando por completo aos ideias de felicidade genuína, verdade e virtude, podemos descobrir plenamente o sentido da vida.


Prática: Prestando atenção ao sopro de vida.

  Procure um lugar tranquilo, onde possa ficar sozinho, sem ser incomodado. Diminua a luz e procure um canto confortável para se sentar por 25 minutos – numa poltrona ou, se você se sente confortável, de pernas cruzadas numa almofada. Você também pode se deitar de costas na sua cama, por exemplo, com a cabeça apoiada num travesseiro, as pernas retas, os braços estendidos ao lado do corpo, palma das mãos para cima, e os olhos fechados ou parcialmente abertos. Seja qual for a posição, procure deixar as costas retas e sentir-se fisicamente bem.

  Agora concentre a atenção no seu corpo, experimentando as sensações da sola dos pés até o topo da cabeça, tanto dentro do corpo quanto em suas superfícies. Esteja totalmente presente em seu corpo quanto em suas superfícies. Esteja totalmente presente em seu corpo; se notar algumas áreas que parecem tensas, sopre nelas (pelo menos em sua imaginação) e, ao expirar, elimine essa tensão. Fique consciente das sensações nos músculos do rosto – o maxilar e o queixo, a boca e a testa – e relaxe-os, deixando o rosto relaxado como o de um bebê que adormeceu depressa. Fique especialmente consciente dos olhos. Os poetas nos dizem que os olhos são as janelas da alma. Quando estamos aborrecidos, os olhos costumam parecer duros e perfurantes, como se estivessem saltando das órbitas. Não apenas nossos estados mentais influenciam os olhos, mas podemos também influenciar a mente tornando os olhos mais brandos. Deixe-os ficar suaves e relaxados, sem nenhuma contração entre as sombrancelhas ou na testa. Descontraia todo o seu corpo.

  Durante todo este período de 25 minutos, com exceção do movimento natural da respiração, deixe o corpo ficar o mais imóvel possível. Isso ajudará a estabilizar sua mente e tornará capaz de concentrar a atenção de forma mais contínua. Se estiver sentado numa cadeira ou de pernas cruzadas, erga ligeiramente o esterno e mantenha os músculos abdominais descontraídos e relaxados, para que, ao inspirar, tenha a sensação do ar descendo direto para a barriga. Se sua respiração for superficial, você sentirá apenas o abdômen se expandir. Se inspirar mais profundamente, primeiro o abdômen, depois o diafragma se expandirão. E se sua respiração for realmente muito profunda, primeiro a barriga, depois o diafragma e finalmente o peito se expandirão. Tente dar três respirações lentas, profundas, experimentando as sensações da respiração por todo o corpo, inalando quase o máximo que puder, depois soltando o ar sem esforço.

  Volte, então, a respiração normal, natural, concentrando-se plenamente nas sensações de respirar, onde quer que elas surjam no corpo. Respire o mais naturalmente possível, como se estivesse profundamente adormecido. A cada expiração, imagine que está liberando o excesso de tensão do seu corpo e se livrando de qualquer apego a pensamentos involuntários que tenham surgido em sua mente. Continue relaxando por todo o final da expiração até que a inspiração flua espontaneamente como um movimento de onda.

  Enquanto fica atento ao ritmo suave de sua respiração, poderá ouvir o cachorro do vizinho latindo, os barulhos do tráfego ou a voz de outras pessoas. Tome nota do que chega aos seus cinco sentidos físicos, momento após momento, e deixe rolar. Repare também no que passa por sua mente, incluindo pensamentos e emoções que surgem como resposta a estímulos do ambiente. Cada vez que sua atenção ficar presa a estímulos sensoriais ou a pensamentos e memórias, solte o ar, liberte a mente dessas preocupações e retorne suavemente a sua respiração. Deixe a atenção permanecer dentro do campo de sensações do seu corpo e deixe o mundo e as atividades da mente fluírem sem impedimentos ao seu redor, sem tentar controlá-los ou influenciá-los de alguma maneira.


Práticas Guiadas: acesse aqui, áudios de práticas guiadas do Professor Alan Wallace, traduzidas para o português pela Jeanne Pilli.


22819671414fed798233.jpg-sizedB. Alan Wallace é um dos mais prolíficos autores e tradutores do budismo tibetano no Ocidente.Foi monge budista durante quatorze anos nas décadas de 70 e 80. Mais tarde, recebeu o título de Ph.D. pela Universidade de Stanford e atualmente dirige o Instituto Santa Barbara para Estudos da Consciência. Este ano a editora Lucida Letra lançou dois importantes livros de Alan Wallace em português.: “Felicidade genuína: meditação como o caminho para a realização” e  “Aquietando a mente”, para adquiri-los basta acessar o site da editora aqui

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