Spoilers do darma: arruinando a própria prática (e a dos outros). Padma Dorje

Por que devemos ser discretos com certos ensinamentos, e qual é o sentido do segredo no budismo.

Todas as pessoas que se aproximam do budismo precisam, se têm interesse, fazer os ensinamentos se tornarem algo relevante e efetivamente integrado em nível pessoal em suas vidas. Ou seja, não é natural e automático que o budismo que encontramos nos textos e centros de prática seja imediatamente aplicável e entendido. O que chamamos de meditação, ou prática, é uma familiarização com os aspectos externos e internos do darma (neste contexto, “darma” é o ensinamento do Buda, isto é, o budismo).

Esse cultivo deliberado ou familiarização com novos hábitos, ou com a superação de nossos hábitos arraigados – que nos levam a causar sofrimento para nós mesmos e para os outros – é o que chamamos de “meditação”, não apenas ficar sentado imóvel, que é um tipo específico de prática.

Essa necessidade de familiarização é universal. Isto é, ocorre mesmo na Ásia, nos países onde a tradição budista é ou já foi culturalmente predominante. Ninguém chega ao budismo com uma visão perfeitamente correta dele, esteja imerso numa cultura tradicional ou na modernidade global – não faz muita diferença. Todos nós tendemos a utilizar nossos vieses e preconceitos – nossos hábitos mentais – para avaliar e lidar com o que nos interessa. Algumas poucas coisas são resolvidas com novas informações ou com raciocínio, mas a maioria dos pontos realmente cruciais precisam ser integrados em nível mais profundo, pelo cultivo de métodos específicos.

De fato, na visão budista não é capacidade pessoal – sua inteligência, digamos – ou o mero acaso, que o faz se interessar pelo darma. Na visão de todas as escolas budistas encontramos o interesse pelo darma, e as liberdades e capacidades pessoais que nos permitem praticá-lo, devido a muito mérito positivo, amealhado sem dúvida por muitas vidas. Esse mérito também produz qualidades secundárias, como a inteligência, mas, como bem sabemos, há muitas pessoas muito inteligentes e capazes sem o menor interesse no darma, e algumas são, devido mesmo a seu apego ao próprio intelecto e aos supostos resultados dele, incapazes de fazer o cultivo e a prática necessários no darma, mesmo que porventura amealhem interesse genuíno.

Claro, muitas vezes não temos tanto mérito assim para aceitar ideias como essas imediatamente – muitas vezes pensamos algo como “bom, isso aí é algum aspecto ultrapassado do ensinamento; aquele negócio de meditação, ficar parado e respirar tranquilo, isso sim tem corroboração científica, é que vale – esse é o ensinamento verdadeiro e original do Buda, o resto é adereço, pouco importa”. Ou alguma variação sob o mesmo tema.

O ponto aqui não é dizer que você precise aceitar ideias que considera exóticas, aparentemente absurdas ou supersticiosas – mas que necessariamente há um bocado de hábito mental colorindo nossas escolhas e entendimentos do que é ou deveria ser o budismo. E apenas pensar, embora útil e necessário, não é suficiente. É preciso revelar esses hábitos e ir além deles.

Qualquer um entende que a decisão e a consciência de que emagrecer é necessário não implica que tomaremos as providências para que isso se dê. Muito menos no longo prazo. Nosso hábito de comer muito e errado persiste por mais que tenhamos a mais clara ideia de quanto isso nos prejudica. A mudança precisa ser menos superficial do que uma mera resolução e conclusão. O mesmo ocorre com nossas visões sobre a prática budista.

Neste texto vou tratar de um exemplo específico disso que acaba se revelando bastante profundo, na medida em que envolve desde essas distorções fundamentais até aspectos de diversidade e formas de budismo, materialismo espiritual, e a eterna tensão entre tradição e adaptação. Ele diz respeito particularmente aos budismos que têm uma coloração tibetana, mas em certa medida, se aplica também a outras formas.

O tema neste texto é: por que certos ensinamentos são mais restritos? Por que muitas vezes há um cuidado em não falar publicamente de certos temas e práticas de meditação? Qual é a função do segredo e da discrição em termos da prática?

Na tradição Theravada, é bem verdade, não há essa questão. Fora o motivo meramente didático, de não ser exatamente proveitoso ensinar algo muito avançado para quem não vai conseguir entender, não há nenhum ensinamento “secreto”. De fato, os praticantes do Theravada argumentam que o Buda jamais teria a falta de compaixão de esconder certos ensinamentos de certas pessoas: se você quiser um ensinamento do Buda, ele deve ser lhe dado, independente de sua capacidade ou grau de entendimento. Há citações do próprio Buda dizendo isso.

Além disso, quem somos nós para avaliar, não é mesmo?

Ser exposto a um ensinamento que não se entende, na visão do Theravada, no máximo vai ser uma perda de tempo. Nada grave. Não vai acontecer nada de ruim, pelo contrário, pode até haver algum benefício em termos de hábitos mentais gerados em olhar para palavras tão exaltadas, mesmo sem entendê-las.

Foi o Mahayana, o Grande Veículo, em contraposição com o que se convencionou chamar de “budismo antigo”, que introduziu a noção de ensinamentos restritos ou secretos.

“Budismo antigo” é uma categorização que inclui o Theravada, embora estritamente falando hoje em dia a datação do “budismo antigo” não seja mais tão diferente da Mahayana – e a ideia do Mahayana como um desenvolvimento posterior esteja fora de moda. A ideia de maior proximidade com os primeiros concílios, e com o ensinamento oral do próprio Buda foi argumento corrente nos estudos ocidentais oitocentistas do budismo, e entre alguns theravadins, como uma forma de talvez implicar maior pureza ou proximidade com o “ensinamento original” do Buda. Mas historiograficamente, hoje, isto é muito duvidoso. As fontes mais primárias encontradas soam, de fato, mais mahayanistas do que theravadins.

Não obstante a discussão da historicidade, a visão do Mahayana é considerada grandiosa (pelo próprio Mahayana, é preciso salientar) no sentido de supostamente incluir mais seres na possibilidade de realizar o estado de Buda. Isso inclui a noção de que o Buda haveria pensado nos seres em diferentes circunstâncias e tempos, segmentando os ensinamentos para os escopos em que seriam mais eficientes ou eficazes.

Essa “engenharia espiritual”, de classificação de ideias e métodos para diferentes aplicações e diferentes inclinações de pessoas, é algo que existe em certa medida em toda forma de budismo, mas que é levada ao ápice na tradição Mahayana e suas derivadas.

Muitas vezes quando um iniciante olha para essa vastidão que é o darma, e começa é claro a erguer um pouquinho o olhar para ver esse horizonte sem fim que são os ensinamentos, e se assusta: “não precisa ser tão complicado assim, gente. Para que tudo isso?” Ouvi essa expressão ou semelhante muitas vezes, especialmente quando se menciona os nomes de algumas dezenas de escolas, e adianta-se a noção de que existe não só uma, mas várias formas de catalogar ensinamentos e várias metodologias de classificação. Pode parecer um pouco excessivo.

No entanto, o darma é simples para quem tem o mérito de vê-lo como simples – basta encontrar um professor e fazer o que ele pede – e infinitamente rico para quem anseia por riqueza de detalhes. O que frustra o iniciante é que ele talvez imaginasse que fosse entender algumas ideias rapidamente e assim transformar sua mente, mas logo que ele se depara com o fato de que os métodos precisam ser aplicados, e que existe um cuidado extremo na prescrição de métodos, a perspectiva de muitas vidas começa a fazer mais sentido. Ou seja, essa expectativa de “entender” não está exatamente vinculada àquela questão de méritos e refinar hábitos mentais de que estávamos falando. Ela em si é um enfoque estereotipado ou parcial do budismo: a ideia do budismo como um “conteúdo”, como as matérias que se aprende na escola.

Se por um lado pode parecer apenas uma grande jogada de marketing do Mahayana tratar os ensinamentos e escolas do Buda com infinitas gradações e classificações, por outro lado, é com isso que nasce o estilo profundamente não sectário praticado pelos budistas, e cujo maior exemplo é Sua Santidade o Dalai Lama. A discrepância entre escolas não é vista necessariamente como uma questão de originalidade ou pureza – aderência a um dogma petrificado e com pedigree histórico –, mas de aplicabilidade a diferentes necessidades. Os outros métodos são incluídos, e não meramente rechaçados.

Neste ponto, porém, é bom lembrar uma confusão comum nestes tempos em que o universalismo é tão comum (a ideia de que qualquer ideia religiosa ou espiritual, ou de qualquer tipo, tenha sempre algum valor, e seja em certo sentido equivalente a todas as outras): embora haja grande diversidade possível entre as várias classes de ensinamento, há também ensinamentos que não são compatíveis com o budismo. E entre os ensinamentos que não são compatíveis com o budismo, há os que querem se passar por budistas, e também há os que são relativamente benéficos, e os que são neutros ou negativos. Há todas essas possibilidades. O não sectarismo é o reconhecimento da diversidade, sem excluir a possibilidade de corrupção e charlatanismo. É uma função do discernimento de cada um separar o que é merece devoção, o que merece ser levado a sério, o que merece ser respeitado, e o que deve ser tratado com benevolência, mas evitado, e o que deve ser expurgado.

Todas as formas de budismo, mesmo as mais inclusivas, têm esses critérios, e todas elas também tem um maior ou menor grau de respeito pelas outras tradições budistas – raramente acontecendo de não reconhecer nenhuma outra como legítima.

No caso especifico do Mahayana, porém, todos os textos que são sagrados e importantes ao Theravada são aceitos como budismo autêntico, a reciprocidade é que nem sempre é verdadeira. Há theravadims que se interessam por e formulam grande respeito pelo Mahayana, mas não há mahayanista que possa criticar o Theravada. Pelo menos não pode criticá-lo em certo sentido: o Mahayana reconhece o ensinamento do Theravada como um ensinamento autêntico do Buda.

O que é específico ao Mahayana, e que o leva a criar uma necessidade de tornar certos ensinamentos mais restritos? É uma classe de compreensões que, para certas pessoas, podem ser bastante perturbadoras.

A tradição Mahayana descreve monges que, ao ouvirem o ensinamento Mahayana da boca do Buda, sofreram ataques cardíacos. Que tipo de coisa poderia ser tão perturbadora? Por exemplo, o fato de que o próprio ensinamento do Buda é temporário. E não num sentido meramente temporal de “temporário”, que está presente em todas as tradições budistas, mas num sentido de que o darma não é uma espécie de “ideia perfeita” a respeito das coisas, uma formulação ou explicação das coisas, uma “verdade definitiva” – fora do tempo. As Quatro Nobres Verdades, os doze elos, etc. esses conceitos tão valorosos, são como um barco que leva para a outra margem. Depois de usá-los, você os abandona. Em outras palavras, o Buda liberou os monges do apego ao ensinamento do Buda, e de qualquer noção de verdade reificada.

Agora, quanto a estes praticantes que sofreram ataques cardíacos: eles eram excelentes praticantes. Eles estavam treinando com o Buda, num esquema monástico e tradicional, há anos, talvez décadas. Eles não eram como nós, iniciantes, que algumas vezes vemos, infelizmente, o budismo como um hobbie de fim de semana. Mesmo assim, aquele ensinamento aparentemente não era para eles – o ensinamento se dirigia a certos alunos ainda mais extraordinários, que com aquelas palavras removeram os últimos obstáculos mais sutis, e atingiram a liberação ali mesmo naquele momento. Estes alunos extraordinários do Mahayana também são descritos nos textos.

Se esse ensinamento sobre a dissolução ou não substancialidade do darma foi tão impactante para praticantes tão bons, tão mais aplicados do que nós, e que tinham como professor o próprio Buda, porque será que nós nem sofremos ataque cardíaco, nem atingimos a liberação ao meramente ouvir sobre essas ideias? Bom, existe a pequena possibilidade de que esse ensinamento, para nós, neste momento, não seja mais do que uma curiosidade, ou algumas ideias, sobre o darma. Não estamos na posição de perceber o impacto. Não detemos um darma que é um remédio e que cura as aflições dos seres, mas um “darma” que é um objeto de divertimento intelectual ou modismo – mas, estamos tentando. Precisamos entender nossa condição e reconhecer que apenas informações e conclusões intelectuais sobre essas informações – por mais importantes que sejam no início, e durante boa parte do caminho – não vão produzir os resultados que ansiamos. A saber, pacificar as aflições mentais e expressar as qualidades dos budas no mundo – coisas tais como generosidade sem limites e flexibilidade mental extraordinária, totalmente livre de preconceitos e vieses.

Afinal de contas, é diferente ouvir uma informação como aquela depois de se passar vários anos levando muito a sério as Quatro Nobres Verdades – depois de contemplar essas noções por milhares de horas, como, digamos, sua única atividade, em dedicação exclusiva. Enfim, o Buda chama uma reunião urgente e diz para o pessoal descansar a mente, e entender que isso são apenas palavras… pode ser que isso tenha bem outro impacto, comparado com o que é para nós, que apenas meio que sabemos do que se trata, e talvez ouvimos umas palestras e fizemos umas centenas de horas de prática formal.

Para nós, isso pode até mesmo ser uma espécie de spoiler.

Para quem não está familiarizado, na cultura atual de assistir (principalmente) TV, as pessoas não veem mais as séries como antigamente, todas juntas, no mesmo horário. Agora assistimos cada um no seu ritmo, e em geral, em maratonas. Além disso, temos acesso uns aos outros, por texto, 24h por dia. Então se convencionou que discutir certos aspectos das tramas de séries, particularmente em público, digamos no Facebook, pode ser bastante problemático. As pessoas já investiram várias horas do seu tempo esperando um clímax no final da temporada – quem vai morrer? Quem vai ficar com quem? Quem matou sicrana? Etc. Elas querem chegar nesse clímax pelas mãos do diretor da série, e dos atores – é uma experiência construída ao longo de um tempo.

Caso alguém bruscamente nos dê certa informação sobre o que vai acontecer, todo aquele processo fica marcado com outro sabor – e mesmo que não mude muito o exato conteúdo do que estamos assistindo, é fácil entender que faz sentido ficar chateado com aquela pessoa que revelou a morte inesperada no fim da quarta temporada.

O conteúdo é o mesmo, mas o contexto em que o conteúdo nos foi apresentado é outro. Não é assim que queríamos que fosse, para nosso melhor aproveitamento de nosso tempo, e para nossa maior diversão.

E, veja bem, o exemplo que dei quanto ensinamento Mahayana de que mesmo o ensinamento do Buda é vazio é um dos mais apropriados que eu poderia dar com relação a isso. Embora seja bem verdade que é um spoiler, é um spoiler já quase tomado por garantido. É algo que já entregaram no “trailer” do Mahayana, embora talvez fizesse sentido tratar como spoiler mesmo. Então é algo que explicita bem a natureza desses ensinamentos, ao mesmo tempo em que não se trata mais de um spoiler.

Pode ser que dizer que o personagem do Bruce Willis em O Sexto Sentido estava morto o filme inteiro afete uma ou outra pessoa que ainda não viu o filme. Mas nessa altura, já passaram tantos anos que ninguém leva mais esse spoiler a sério. Ainda assim, segue estragando o filme – só não nos importamos porque o filme é velho. Devíamos talvez ter mais consideração pelo darma, mesmo pelo darma que já foi entregue no trailer.

O problema com o spoiler, na perspectiva do darma é que quando temos uma informação sobre, digamos, algo assombroso assim, mas não estamos na posição mental mais propícia para usar aquilo na direção da liberação, geramos conceitos adicionais a respeito. Esses conceitos podem se tornar hábitos mentais específicos. Em outras palavras, nós começamos a agregar nossa bagagem cármica e nossa própria confusão em meio a uma terminologia e ideias que não temos como integrar naquele momento.

Então, se chega a hora de integrar, nós até temos a informação, mas aí ela vem junto com todos aqueles hábitos que criamos ao pensar a respeito. E agora os hábitos se tornam obstáculos específicos para aquele ensinamento fazer o efeito desejado.

Tradicionalmente, uma pessoa não ensina o darma se não for requisitada. Hoje em dia parece piada, mas as pessoas abordam você pelo Facebook para explicar o darma. Acontece comigo frequentemente, pelo menos. E essas pessoas não entendem minha aflição com a vergonha alheia, e a efetiva não virtude que elas estão praticando. Sim, porque ensinar o darma sem ele ser explicitamente requisitado é uma quebra de ética.

Mesmo que pensemos que o Mahayana foca tanto compaixão, mesmo mestres incomensuráveis como Kyabje Dilgo Khyentse Rinpoche diziam que “ainda focavam a bodicita da aspiração, porque a bodicita da ação é para grandes bodisatvas”. Aqui, bodicita da ação significa essencialmente ensinar o darma. Se mesmo Khyentse Rinpoche, professor do Dalai Lama e de Chagdud Tulku Rinpoche, hesitava em se dizer capaz de ações próprias de grandes bodisatvas, talvez devamos parar para pensar um pouco a respeito desses professores que, às dezenas, hoje no Brasil, ensinam tão abertamente, sem necessidade de convite, e algumas vezes com até certa arrogância.

Será que essas pessoas tem nosso melhor interesse em vista? E se elas têm, será que elas têm experiência no darma para saber o que é melhor nos dizer? E se elas têm experiência, será que elas têm a clarividência – um critério considerado essencial para ser professor do darma, segundo as escrituras – para saber que aquilo que elas estão dizendo vai ser realmente benéfico? É melhor tomar cuidado.

É melhor não ter a baixa autoestima de seguir uma pessoa de poucas qualificações. Tentamos alguém como o Dalai Lama, se não dá, vamos descendo. Não começamos ouvindo o darma de uma pessoa aleatória por aí – aliás, se você está lendo esse texto, é quase certo que você sofre desse tipo de perspectiva invertida e baixa autoestima. Procure um professor de verdade!

É claro que, se as pessoas se atêm ao que elas sabem, à própria experiência, e a atender requisições dos outros, sem posar de algo especial, é possível que elas estejam sendo benéficas. No entanto, se elas estão brincando com terminologia de ensinamentos sofisticados, é bem possível que elas estejam sendo exatamente como aquela pessoa que conta o fim da série. Você está prejudicando o seu próprio caminho espiritual ao ouví-las.

Mas aqui ainda estamos falando de coisas como o Prajnaparamita fora de hora, que podem arruinar a sua prática por umas meras dezenas de vidas. Quando os ensinamentos ficam mais sofisticados, a coisa é um bocado mais perigosa.

Quando o Mahayana atinge um grau de urgência e compaixão ardente bastante particular, ele dá origem a outro yana, que é o Vajrayana. Se o Mahayana é grande, o Vajrayana é para agora, e com toda a intensidade. O Vajrayana é basicamente o Mahayana quando vira o Incrível Hulk.

Embora todo o Vajrayana esteja contido no Mahayana, é possível dizer que o Vajrayana é a “manifestação dramática” do Mahayana.

Tudo é excessivo no Vajrayana. Se no mahayana falávamos em spoilers, no Vajrayana estamos tratando de segredos industriais ou militares. Os ensinamentos são tão poderosos, que, se mal utilizados, podem causar grande sofrimento. Grande sofrimento ao estilo de nazismo ou mudança climática, coisa grave mesmo. Infernos muito difíceis de serem superados.

Quando falamos “Vajrayana” estamos falando em termos de veículo, e é verdade que o Vajrayana começou na Índia, e existe no Japão. Mas geralmente quem fala do Vajrayana são essas pessoas que chamamos de “lamas”, isto é, os gurus do budismo tibetano. Quando falamos em budismo tibetano, estamos necessariamente falando no Vajrayana – embora o Vajrayana tenha como base o Mahayana, que tem como base todos os ensinamentos do Buda – e então algumas vezes pode haver lamas que preferem ensinar publicamente apenas o Mahayana, embora, se são lamas, eles precisem praticar o Vajrayana. Em outras palavras, toda essa gente vinculada ao budismo tibetano ou pratica ou quer praticar o Vajrayana. Não existe budismo tibetano que diga que o Vajrayana não é autêntico, e mais do que isso, que não é a forma mais poderosa e rápida de atingir a iluminação. Esse é um termo que o budismo tibetano usa para descrever e classificar a si mesmo.

Sim, novamente, pode ser propaganda. Mas existe uma tradição argumentativa e empírica por trás disso, não é apenas uma questão de crença ou jactância.

O Vajrayana, além de ser, com exceções, equivalente hoje ao que chamamos de “budismo tibetano”, tem vários nomes. Estritamente, vajra significa uma coisa indestrutível, uma arma que vence todas as outras – ou seja, um ensinamento que acaba com todo tipo de visão errônea; a própria visão pura, que não permite nenhum tipo de interferência da mediocridade do estado não iluminado. Mas o Vajrayana também é chamado de Mantrayana, isto é, veículo do mantra, porque a prática essencial do Vajrayana é a recitação de mantras, a expressão dos budas – o meio hábil extraordinário que é o cerne dessas práticas. Assim, algumas vezes o Vajrayana é chamado de Veículo do Mantra Secreto.

O mantra é secreto não só porque ele não é para ser discutido em público, mas porque a essência ou origem do Buda, nossa própria natureza mais profunda, não nos é evidente, porque temos um forte hábito de nos reconhecer com uma aparência medíocre num mundo medíocre.

O fato de que o mundo e nós mesmos não são, em essência, medíocres, é um segredo para nossa mediocridade. E é imprescindível que a mediocridade não se aproprie desse segredo, e passe a posar de algo especial em sua mediocridade. Você já é um buda, mas isso não é algo que você lê como um ser senciente, mas algo que você tem que ler como um buda. O ser senciente confuso que lê isso, não entende, e se entende, entende errado. E se entende errado, pode também causar problemas, como, todo mundo já deve ter visto, acaba nessas pessoas que posam de praticantes espirituais em centros de darma e só incomodam todo mundo.

Quem sabe que você sempre foi um buda é apenas o buda em você – o ser senciente comum vai para sempre ser ignorante quanto a isso, mesmo que se atrapalhe dizendo “sou um Buda”. Quem não dá esse salto secreto de compreensão, não reconhece o lama, e não reconhece o Vajrayana.

E, de fato, embora nos dias de hoje tudo esteja mais conhecido (e já dentro do Tibete, nos últimos séculos, as coisas fossem mais abertas do que na Índia Clássica), tradicionalmente o Vajrayana é uma forma de budismo de que você falava e cuja própria existência você só mencionava com o próprio professor e com a comunidade em torno do seu professor. Estritamente falando, nada do que você faz no Vajrayana, ou mesmo o fato de que você tem alguma conexão com o Vajrayana, é algo para tornar público. O Vajrayana se enfraquece quando discutido em público, como, em certo sentido, estou fazendo aqui.

(Toda vez que eu me sinto nessa posição de responsabilidade, eu lembro do meu professor. É o que nos instruem. E lembrando do meu professor, eu tendo a cometer menos erros. Eu retorno um pouco ao âmbito onde a mediocridade não é permitida.)

Digamos que alguém leia esse texto, e faça uma pergunta ou comentário levemente inadequado sobre o Vajrayana. Não só essa pessoa está gerando mau carma, mas todos os que lerem esse comentário também se prejudicam. E se porventura houver praticantes do Vajrayana entre essas pessoas, a prática dessas pessoas pode ser afetada. O Vajrayana é como um isótopo radioativo ou um remédio muito potente: é o tipo de coisa que você transporta escoltada.

Se você larga por aí, de qualquer jeito, o pessoal fica contaminado, e cria todo tipo de monstro.

Claro, que aqui, não é nada, dependendo do caso, extremamente grave, mas para que criar a oportunidade mesmo do mais pequeno obstáculo, não é mesmo?

Então o Vajrayana é apenas ensinado no contexto professor e aluno, e no caso, são um aluno e professor adequados para o Vajrayana. Quando o Vajrayana é tirado de contexto, e se torna um objeto de escrutínio acadêmico ou de curiosidade, ele é naturalmente degradado, e perde seu efeito. Ou pior, ele se torna uma forma de contaminação. Ele não só perde seu efeito naquele contexto, mas ele se enfraquece de forma geral – não que o ensinamento deixe de ser bom, mas ele se torna menos benéfico, porque as pessoas que poderiam se beneficiar se tornam menos receptivas. Isso, no melhor dos casos. Se ele é misturado com autointeresse e visões errôneas, ele produz todo tipo de atrocidade.

Nestes tempos é comum até mesmo professores que ostentam conexão com a tradição tibetana criticarem aspectos das práticas vajrayana. Embora a ideia de que o Buda não teria ensinado o Vajrayana não é incomum entre acadêmicos fixados em fontes primárias, mesmo entre praticantes ocidentais não é incomum repetir essa noção.

No entanto, na perspectiva tradicional desses ensinamentos, eles foram também ensinados pelo Buda Shakyamuni. Só que em contextos ainda mais restritos do que o Mahayana, porque os problemas de tornar esses ensinamentos públicos poderiam ser bem mais vastos do que meros ataques cardíacos. Todas as tradições orais asiáticas são motivo de escrutínio e ceticismo histórico, também porque a noção de oralidade é algo incomum na história ocidental. Porém, até hoje vemos praticantes do budismo e do hinduísmo que sabem de cor centenas de milhares de versos. É evidente que, em tempos ainda menos agitados, muita gente poderia sustentar uma tradição imensa sem necessidade de registros textuais.

Mesmo as fontes primárias mais antigas do budismo foram registradas no papel – e segundo a própria descrição dessas fontes – centenas de anos após a morte do Buda. O budismo existiu por pelo menos dois séculos, talvez até quatro, sem nenhum registro textual.

O que também ocorre em termos do Vajrayana não é apenas o spoiler, mas a falta de cuidado com o público em geral, e com a própria prática.

Dzongsar Khyentse Rinpoche, por exemplo, deu orientações para o uso de redes sociais para as pessoas que se consideram praticantes do Vajrayana. Entre essas orientações, por exemplo, está não ficar postando, especialmente de forma pública, a foto do próprio professor, sílabas mântricas, ou imagens de deidades que podem causar estranheza entre não praticantes – isto é, particularmente imagens de budas em união sexual ou budas irados. Em especial, não se posta fotos das cerimônias de iniciação, nem se fala das iniciações que recebeu e assim por diante.

Nos dias de hoje não é incomum uma pessoa ostentar até mesmo uma tatuagem de uma deidade ou sílaba mântrica, embora estritamente falando, exibir sua prática dessa forma seja o mesmo que degradá-la.

Enfim, o Vajrayana é também subdividido, e a nata mais refinada desses ensinamentos é composta de ensinamentos e práticas ainda mais restritos, e sobre os quais se deve manter ainda mais discrição.

Nos dias de hoje, no entanto, a maioria dos iniciantes gosta de se considerar um praticante do Dzogchen ou do Mahamudra. Neste momento confesso que me sinto indigno de até mesmo mencionar esses termos em público, tendo recebido tão poucas instruções a respeito, e menos ainda feito prática. E mesmo que tivesse recebido instruções extensas e feito retiros longos, mesmo assim ainda seria temerário falar disso – pelos motivos apresentados acima. Independentemente disso, porém, são termos que acabaram caindo na “boca do povo”, e estão no que Trungpa Rinpoche convencionou chamar de Supermercado Espiritual: se tornaram “marcas” espirituais comuns.

Um fenômeno comum, criticado por muitos lamas, é a fastfoodização dessas meditações sofisticadas. Não raro elas são apresentadas em workshops de poucos dias, sem exigir quaisquer pré-requisitos, e com o resultado geral de apenas gerar um bocado de gente que sabe papagaiar terminologia sobre práticas avançadas, sem nem mesmo dedicar qualquer tempo para integrar isso, muito menos atingir qualquer resultado.

Algumas vezes vejo no Facebook pessoas que nesta vida nem chegaram a conhecer pessoalmente sequer um único professor repicando ensinamentos Dzogchen, ou respondendo a comentários com palavrado semelhante. E mesmo aqueles que não usam o nome dos ensinamentos, por ouvir esse ou aquele professor, começam a repetir como papagaios o que ouviram – sem contexto, e algumas vezes sem nem mesmo entender o que estão dizendo.

Qual a consequência disso para sua própria prática e para a prática dos outros?

Ora, exatamente como com os spoilers e a cultura de discrição “militar” com o Vajrayana, o que ocorre quando misturamos nossa mente comum com o discurso do darma, é que tendemos a gerar um hábito de mente comum com relação ao darma. Achamos que estamos beneficiando os porcos ao jogar cozinha francesa no chiqueiro; mas é só desperdício, eles não são capazes de distinguir de lavagem. O único efeito possível disso é eles se gabarem aos amigos de comer pratos sofisticados, embora nem mencionem que foi em meio ao próprio excremento, e tudo isso ainda usando os nomes dos pratos em francês mal pronunciado. Quem olha e entende um pouco vê realmente um espetáculo de mau gosto e fanfarronice – pura vergonha alheia.

Não vamos transformar porcos em degustadores gourmet atirando sobre eles comida fina indiscriminadamente.

Neste momento podemos mesmo ter o mérito temporário de achar o darma importante e fantástico. Porém, isso pode mudar de uma hora para outra. Em particular, se estivemos ouvindo e falando do darma num contexto degradado (o do nossos próprios hábitos e de outros), em meio a pessoas que usam as palavras sem ter as experiências, o que ocorre é que quando oscilarmos em nosso amor pelo darma, nossa marca mental vai ser dessa falta de excelência.

Se torna muito fácil não voltar a ver valor no darma. Que tragédia é maior que essa?

Em outras palavras, é bem mais fácil que nosso momento dúvida – que inevitavelmente vai acontecer – nos afaste do darma quando tratamos o darma como qualquer coisa, a ser exposta de forma indiscriminada. Perdemos de gerar uma interdependência mais profunda com a excelência e o contexto dos ensinamentos, e ficamos apenas com um simulacro na forma de terminologia supostamente sofisticada misturada com nossos hábitos mentais.

É evidente que as pessoas que se engajam nesse comportamento frívolo raramente têm uma motivação negativa ao falar do darma. Algumas vezes há, na forma de alguma autopromoção, mas mesmo quando existe essa tendência, a ideia mais forte geralmente é mesmo trazer benefício aos outros.

Com essa motivação, nos tornamos “professores”, e aquilo que achamos tão maravilhoso, e que acabamos de descobrir, passamos adiante. No entanto, falta contexto, experiência na prática e noção geral do que é adequado. No fundo somos como aquelas pessoas que ficam tentando ajudar e só atrapalham. Da nossa boca, mesmo as mesmas exatas palavras que o Buda falou são apenas uma sequência de sons, e o sentido que damos a partir de nossa entonação, é a mesma mediocridade de nossa integração daquilo com nossa prática – provavelmente nenhuma. Que serviço prestamos ao budismo e aos seres com isso?

Agora, quando somos iniciantes, seria o momento de levar a sério e testar o que ouvimos na experiência na prática. O trabalho com nossos hábitos mentais nunca é agradável, por mais elevada que seja a meditação que supostamente estejamos tentando praticar.

Quando estivermos na posição de dizer algo profundo a outra pessoa, devemos nos perguntar: não seria melhor que ela ouvisse essas mesmas palavras de um professor que tem experiência verdadeira nisso? Porque vou ser eu que vou queimar esse momento, que deveria ser tão especial para ela?

Não estamos provendo uma espécie de spoiler? Como nos sentiríamos de ouvir isso de alguém como nós? Com os nossos próprios hábitos mentais mesquinhos, que conhecemos tão bem?

E não devemos nos contentar com qualquer professor: se realmente entendemos a profundidade e o efeito desses ensinamentos, verificaríamos com muito cuidado de quem os recebemos. Não seria uma decisão fortuita, tomada por impulso. O impulso pode ser positivo, mas então você examina a sua própria mente e o professor em questão da melhor maneira que puder – antes de pedir a ele por ensinamentos cruciais.

Nossa tendência habitual é achar que o darma é apenas uma informação ou formulação de conhecimentos. Antes de tudo, porém, darma é um método. Faz diferença o contexto onde ouvimos, e isso inclui, acima de todo, de quem ouvimos. Se isso faz diferença numa série de TV, porque não faria nas coisas mais importantes com que provavelmente vamos lidar nesta e em muitas vidas?

Dessa forma, não devíamos embaraçar a nós mesmos repetindo o palavreado do darma – mais do que isso, não deveríamos trair a nossa própria prática e a dos outros colocando o darma no mesmo tom medíocre com que expressamos nossas outras opiniões. Caso o darma não pareça funcionar para nós, devemos examinar com cuidado como o recebemos, o quanto treinamos o louvor a esse altar das Três Joias, o quanto as exaltamos, e exaltamos seus contextos. O recebemos como algo valioso, a ser levado a sério, ou como apenas outra postagem de Facebook?

Algumas vezes as pessoas que defendem o contexto exaltado para os ensinamentos são criticadas de elitistas, mas boa parte do Mahayana e do Vajrayana consiste em redescobrirmos nossa natureza exaltada. Caso façamos isso sem contexto, o que ocorre é que elevamos temporariamente nossa natureza convencional, medíocre, a algum tipo de exaltação fabricada, e isso dura pouco tempo – e se mostra traiçoeiro.

Que todos nós possamos praticar o método que nos leva a revelar o segredo sobre nossa própria natureza. Que não nos fixemos nas discussões externas de pessoas vãs interessadas no supermercado espiritual, mas permaneçamos na trama central que desfaz dos hábitos medíocres pela honestidade crua e nua na relação com seres excelentes. Que os métodos extraordinários não sejam degradados pelo chiqueiro do samsara, se tornando indistintos de qualquer coisa. Que eles sejam preservados para o contexto em que são eficazes, e que, sendo aplicados e expostos por pessoas que sabem o que estão fazendo, a partir da experiência maturada de primeira pessoa, produzam seus benefícios abundantes.

Tratei de temas semelhantes nos seguintes textos:

Budismo e segredo

O conceito de mérito no budismo

O treinamento da mente e o esplendor

Nojo pelo nirvana: o bodisatva e a intenção iluminada  (sobre o diferencial do Mahayana)

eduardo-pinheiro-1Padma Dorje é praticante budista e autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos.  Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org.

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  • “Digamos que alguém leia esse texto, e faça uma pergunta ou comentário levemente inadequado sobre o Vajrayana. Não só essa pessoa está gerando mau carma, mas todos os que lerem esse comentário também se prejudicam. E se porventura houver praticantes do Vajrayana entre essas pessoas, a prática dessas pessoas pode ser afetada. O Vajrayana é como um isótopo radioativo ou um remédio muito potente: é o tipo de coisa que você transporta escoltada.”

    Digamos que ~alguém~ (visto que niguéns não são alfabetizáveis) leia o texto e faça uma pergunta levemente ___________ (pode preencher) sobre o Mahayana, como, talvez, “e qual é a importância de dosar bem a compaixão com a sabedoria ao lidar com os colegas de sanga, considerando a sanga como jóia e aspirando estar ‘dentro’ dela, em outras palavras, vendo o mundo como sanga e gerando bodicita?”