A 3ª onda: a distorção dos descolados Da série "As três grandes ondas de distorção do budismo no ocidente" | Padma Dorje

Por Padma Dorje.

Na terceira parte do artigo focamos no entusiasmado interesse dos beatniks pelos budistas, e como os desafios da contracultura finalmente consolidaram as distorções do iluminismo e do romantismo. As estruturas tradicionais do budismo se deparam com a horizontalidade (indisposição com a hierarquia) e a falta de senso de comunidade da contemporaneidade individualista e que valoriza a independência. Além disso, na ressaca do fracasso do ideal hippie, encontramos a cultura de consumo lidando com a espiritualidade, o materialismo espiritual grosseiro de um darma finalmente transformado em produto. A terceira distorção é a primeira que aconteceu na consolidação da globalização, e os desafios não afetam mais ocidentais ou orientais, mas a todos indistintamente.

As três grandes ondas de distorção do budismo no ocidente

Terceira onda: a distorção dos descolados

   A maior parte dos professores budistas hoje se preocupa em separar o que é essencial à tradição e o que são “armadilhas culturais”. Ainda que alguns concedam que as armadilhas culturais (de outra cultura) são importantes para nos desapegarmos de nossa própria cultura (isto é, como um método para isso), entende-se de modo geral que aspectos dos ensinamentos dizem respeito a necessidades e adaptações particulares ao espaço e ao tempo, e que podem, portanto, ser alterados ou mesmo eliminados de acordo com a mudança de contexto.

   A determinação de que aspectos são essenciais ao darma faz parte da prática de todos os budistas, mas é particularmente um motivo de consideração constante para os professores.

   Ainda que exista virtude em preservar elementos culturais em extinção, num argumento similar ao da biodiversidade, em que esses nichos preservam soluções não reconhecidas para problemas humanos atuais, ou mesmo os que ainda nem existem, essa virtude não é especificamente budista. Isto é, não há uma noção de preservação do patrimônio cultural dentro dos ensinamentos do Buda, esse é um adendo que pode não se contrapor aos ensinamentos (por ser virtuoso em várias medidas), mas que também não necessariamente deve ser considerado essencial.

   Por outro lado, questões como a defesa da causa tibetana – que começou ambiciosa, com a reconquista da independência, e hoje está no nível de preservar a língua, a cultura de forma geral, e garantir uma China mais democrática – muitas vezes estão intimamente associadas com a prática dos ocidentais. Frequentemente a verve ativista e a simpatia pelos tibetanos é o que garante a conexão de alguém com o darma. E o mesmo se deu com Vietnamitas e Coreanos, em outros momentos históricos.

   Essa luta pela diversidade, pelos povos menos favorecidos, é descendente direta dos bons valores iluministas, que proveram uma visão mais equânime e permitiram o multiculturalismo, bem como da romantização do oriente (e dos “bons selvagens”) promovida pelas ideologias posteriores. E nenhuma forma de expressão artística representa tão bem esses elementos quanto sua síntese tardia, refinada com o sabor próprio do  transcendentalismo de Emerson e Thoureau, refogada pela mistura do jazz com milk-shake nos guetos e subúrbios americanos, entre uma juventude transviada buscando a transcendência pela vida como forma de expressão artística. Isto é, os beatniks.

   Aqui encontramos o romantismo montado numa Harley-Davidson, metáfora que carrega três pontos importantes: 1) a vida levada de forma extrema, ainda que sem o peso de alguma seriedade reminiscente do romantismo; 2) o americanismo do ultraindividualismo e dos valores mais puros do patriarcas constitucionais, e a destilação pura do iluminismo colorida por muito Thoureau, apreciação da natureza e valorização da excentricidade; 3) a publicação de polpa, e a sensação – de sensacionalismo mesmo, por parte da imprensa careta, que se horrorizava com esses delinquentes, e também de “onda” cultural que redundará numa popularização ainda mais intensa, os hippies.

   Robert Thurman, em sua introdução a biografia de Buda por Jack Kerouac, o chama simplesmente de “bodisatva” (Despertar: Uma vida de Buda, publicado no Brasil pela LP&M) – isto é, alguém que adentrou o caminho do mahayana, e é um exemplo para outros, corajosamente abandonando o prospecto do nirvana para trabalhar incansavelmente em benefício dos seres. Ele é cuidadoso em não cometer o erro, descrito no texto anterior, que eu mesmo cometi ao falar de W. Y. Evans-Wentz com Alan Wallace, isto é, evita de todo modo efetuar uma crítica e analisar o texto de Kerouac buscando defeitos – ainda que implicitamente se ganhe uma noção do mérito em meio à distorção que existe na conexão do selvagem quebécóis. Essa é a atitude budista, refutar o que precisar ser refutado sem que sequer se sinta o que está sendo refutado – vai que um dia “cai a ficha”, e é melhor não criar um mal-estar. E Robert Thurman é ele mesmo um perfeito resultado dessa era, erudito tibetanólogo, ativista, praticante budista, nascido 19 anos depois de Kerouac – um velho hippie caolho com credenciais de gente séria. Pai de Uma (“Caminho do Meio” em Tibetano) Thurman, amigo de Sua Santidade o Dalai Lama e luz do darma na degenerescência pós-moderna, ocasionalmente traduz com escolhas inusitadas – que por vezes soam hippies mesmo – mas sem erro.

   Porém, falando de modo direto, e concordando que Kerouac, como Evans-Wentz, fez muito pela imagem do budismo e conectou muita gente com os ensinamentos autênticos, é fácil reconhecer nesse bodisatva delirante os “meios hábeis” de não deixar de apresentar o darma sem configurar algum sabor bem próprio. Isso para ser bastante cuidadoso, e abusar do eufemismo.

   Kerouac teve alguns anos de interesse profundo pelo budismo, mas num nível meramente textual. Ele sem dúvida “sentou”, mas sozinho e sem orientação. Tudo começou quando encontrou uma cópia do A Buddhist Bible, uma coletânea de traduções budistas de várias tradições, produzida por Dwight Goddard nos anos 30. (Este livro em si também muito querido de toda uma geração de praticantes ocidentais, inclusive aqui no Brasil. O livro tem escolhas e tradução idiossincráticas, e é tendenciosamente cristão – sendo hoje mais importante num estudo da entrada do Darma do Buda no ocidente do que propriamente como melhor forma de entrar em contato com os textos raiz – considerando que há melhores traduções disponíveis em inglês).

   Fascinado pelo Sutra do Diamante (O “Vajrachedika Sutra”, Sutra Lapidador de Diamantes) ele introduziu várias noções de budismo, misturadas com o romantismo inevitável das produções intelectuais que encontrou sobre o assunto (inclusive também D. T. Suzuki – a quem quase conheceu pessoalmente), em sua prosa experimental e vertiginosa. Em Os Vagabundos do Darma descreve, com alguma ficcionalização superficial, os amigos budistas fazendo trekking na natureza, festas de arromba, inclusive com algum amor livre e, claro, drogas.

   Há uma dicotomia, curtida pelos beats (“beatíficos”/“surrados”, que se tornaram beatniks pela imprensa sensacionalista, que os ligou, pela mera configuração de serem novidades simultâneas, ao satélite russo Sputnik), entre o ascetismo e o caminho blakeano da “estrada do excesso leva à sabedoria”. E eles viviam nessa tensão, num ciclo infindável de curtição equilibrado por ressacas introspectivas, uma bipolaridade “automedicada” tentando coadunar sua ideia de arte com as noções da espiritualidade universalista, ambas herdadas dos românticos.

   Kerouac também mantém em alguns momentos de sua prosa certos ideais românticos sobre uma morte enquanto jovem, depois de alguns anos gloriosos, com um “desaparecimento” ao estilo niilista schopenhaueriano. Isso não chegou a acontecer com ele, mas talvez, junto com o movimento romântico, naquela época já com 100 anos, inspirou muitas overdoses e suicídios.

   Algumas vezes Kerouac não entende que carma positivo também é causa para renascimento, se ele não é dedicado ao darma. Assim surge alguma noção de progresso através de boas ações, que se não é contextualizada, leva a renascimentos pouco auspiciosos entre os devas da forma e da não forma, onde não é possível praticar o darma porque simplesmente há muita distração com prazeres e coisas divertidas.

   No aspecto positivo, Kerouac parece entender algo da insubstancialidade onírica dos ensinamentos.

   Dois outros beats, amigos de Kerouac e poetas, também precisam ser mencionados em conexão com o budismo: Gary Snyder e Allen Ginsberg. O primeiro fez treinamento no Japão já nos anos 50, e não era, ao contrário de Kerouac, um diletante em termos do budismo. Seus escritos são extremamente lúcidos, e é difícil encontrar as afetações anfetaminadas comuns no escritor mais popular – ainda que seus escritos se mantenham belamente pessoais. Allen Ginsberg evitou escrever sobre o darma, mas se tornou praticante, discípulo de Chögyam Trungpa – um professor tibetano extraordinário que se dedicou a ensinar dicção oxfordiana para hippies que vestiu em terno e gravata –, e parece ter incorporado o darma de uma forma muito positiva em sua vida.

   Kerouac, o bodisatva caído, abandonou o budismo nos últimos amargos e alcoolizados dias de sua vida. Popularizou a coisa toda como ninguém – defeitos ou sem defeitos –, mas não parece ter conseguido usufruir os resultados de sua conexão. É uma figura romântica que o budismo incorporou no ocidente, até mesmo aceitou como exemplo da variedade de quem pode ser tocado pelos ensinamentos – e ao longo dos séculos não vai se deixar de falar da em conexão com o budismo.

   O importante, para quem admira esses artistas, e me incluo aí, é reconhecer que nessa primeira onda de escritos artísticos sobre o budismo, nos anos 50 e nos EUA, não temos muito darma. Temos mais algumas palavras importantes de se ver impressas, e belas conexões incipientes, mas nada que se possa levar a sério como praticante – em termos de aproximação efetiva com os ensinamentos ou a prática.

  Uma distorção específica importante a ressaltar é que o budismo ali parece muito liberal, no sentido moral: e embora o darma não seja uma “religião de fugir da tentação” como o cristianismo algumas vezes se apresenta, ele tem várias restrições, que vem, é certo, menos de regras do que da pessoa reconhecer o que não é bom para ela e para os outros. Mas o budismo, embora não julgue tanto quanto talvez algumas outras tradições julgam, é efetivamente bastante conservador moralmente falando.

   Fora a homossexualidade, que aparentemente cada vez se deixa mais de tratar como uma questão de saúde ou moral – mas como uma questão pessoal, e com que a sanga no ocidente, em sua maior parte, convive bem –, drogas e aborto não são nunca bem vistos pelo budismo. E ainda que se possa discutir as melhores políticas públicas, e isso se deva fazer como praticante inserido num mundo secular, a premissa toda é que os seres sofrem porque estão agindo por automatismos que tomam por liberdade, e que, portanto, sim, muitas vezes devem ser protegidos de si próprios. O budismo é assim claramente conservador quanto a esses tópicos, mesmo quando é mais flexível do que normalmente consideramos algo conservador.

   Mas Kerouac não associou o budismo a essa liberalidade – não é nem um erro que podemos atribuir a ele, senão em tom: a associação às vezes acontece simplesmente porque leitores se interessam pelas duas coisas simultaneamente: Kerouac e o que ele achava tão interessante, esse “darma de vagabundo”. Podemos sim louvar Kerouac pelo que ele fez pelo darma, sem precisar levar a sério o que ele escreveu, pelo menos não a sério enquanto praticantes – e podemos achar a arte muito relevante e viva, mas isso é outra coisa.

   Quando o movimento beat tomou a juventude inteira nos EUA durante os anos 60, e virou movimento hippie, ideias de renascimento e carma, gurus indianos e tudo mais, entraram na visão pública junto com as drogas e os cabelos longos. O outro romântico meio nietzschiano e teosófico, Hermann Hesse, ganhou popularidade também nessa época. O paralelo com as drogas e a excentricidade no vestir e em como aparar os pelos corporais é relevante: no século anterior eruditos estudavam o oriente, médicos experimentavam com drogas, e transcendentalistas, místicos e artistas exibiam sua excentricidade colorida. O que ocorreu foi uma popularização no sentido mais cru: os pobres e pouco educados passaram a ler e admirar a elite e a influência cultural de tantas modernidades. Foi uma “antropofagia” ao modo estadunidense: caipiras doidões rolaram na lama ao som de amplificadores ingleses, glorificando um ídolo meio índio, meio negro dotado de uma Stratocaster. É difícil hoje, tendo tudo que aconteceu em retrospectiva, entender a rapidez das mudanças sociais nos EUA (principalmente) dos anos 60.

   Um prospecto beat realmente bom, que seguiu pela visão hippie e chega no ativismo liberal de hoje, é o darma fazer “slumming”, penetrar as favelas, se relacionar com outras etnias, com os marginalizados, e valorizar a diversidade. Foi uma prática de equanimidade, ainda que não tenha durado, e hoje os centros budistas no ocidente sejam ostensivamente classe-média alta e branca, com poucas exceções. O Buda, no Surangama Sutra, recomendava aos alunos próximos: renasçam entre prostitutas, marginais, na pobreza – que é um tipo de voto que quase espelha certos aspectos do cristianismo no que ele tem de mais belo.

   Porém, apesar das muitas conquistas efetivas dessa geração, e de lutas importantes – basicamente a formação da esquerda moderna (pós-dicotomia “mundo livre” versus “mundo comunista”), o ambientalismo, direitos civis, a critica a sociedade de consumo, e assim por diante – tudo associado àquele tempo corre o risco de ser estereotipado, e muitas vezes tratado como ridículo. Como se o que é válido pertencesse a uma estética e a uma época.

   Da mesma forma que com Schopenhauer ou Emerson, também temos simpatia pelos hippies, que assumiram valores budistas, e levantaram algumas vezes a bandeira budista – por mais distorcidamente que isso tenha ocorrido. São parte do passado embaraçoso, próximo à tradição nesse novo contexto. Eles aos poucos se tornaram a Califórnia dos implantes de silicone, do suco verde, das reverências de palmas juntas e do uso corriqueiro de termos como “carma”.

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   Quando o Dalai Lama veio pela segunda vez ao Brasil em 1999 a revista Veja publicou uma reportagem insidiosa contra o evento, em que descrevia a plateia como vestida de “hippie chic”. Duas coisas acontecem aí: por um lado a plateia vem na onda dessas conexões, e por outro lado, é isso que impressiona a revista.

   E o budista, até hoje, é bem verdade, muitas vezes ainda lida com o conservadorismo “normótico” de sua família, tendo que “erguer alto sua bandeira freak”, porque na cultura classe-média se identificar como budista é ser criticado como diferentão ao mesmo tempo em que se é criticado por cair em modismos. É ser obrigado a ser uma pessoa calma, que nunca rebate uma opinião, caso contrário somos hipócritas: ora, a ironia!

   Mas, mais do que isso, o budismo não possui só um modo “tradicional” em seu âmbito nativo alienígena: lá na Ásia mesmo ele tem uma tradição de auto-iconoclasmo. Trata-se de uma tradição, de fato, essencialmente contracultural. Afinal de contas, Buda largou família e posição social e foi viver com os sem-teto, e “estudar a mente” passando fome e fazendo posturas corporais esquisitas. Entrar na sangha é encontrar outra família, viver noutra sociedade. Embora ele seja reconhecido muitas vezes por seus estereótipos institucionalizados (o monge pacífico, líder moral e professor), ele é culturalmente muito mais desafiador e iconoclasta do que isso.

E isso não para no Buda: ao mesmo tempo em que os mosteiros sustentam o estudo, há uma tradição paralela, em florestas e na cidade, em lugares ermos e nos campos de cremação, onde budistas selvagens mantém vivo o aspecto contracultural do darma.

Esta é uma tradição que tem santos que defecam em ícones, namoram cadelas e queimam bibliotecas.

Por outro lado, o liberalismo moral beat não tem necessariamente a ver com esse aspecto “louca sabedoria” do budismo – a não ser que queiramos desenvolver devoção por esses escritores, o que não tenho certeza ser recomendável. Mas não é pelo comportamento dessa gente que se mede o quanto “não estão próximas do Buda”: é pelo que podemos assimilar como prática genuína, e aí talvez não haja mesmo muito, se há alguma coisa. Em termos do comportamento, por ele só, não dá para dizer nada.

   Mesmo com essas considerações, o budismo é visto pelo crítico Slavoj Žižek como uma ótima forma de preservar o status quo, já que o “vazio” (no viés alemão e cristão de um D. T. Suzuki, é claro) permite que tudo esteja acontecendo nos números abstratos da bolsa de valores, que é só ficar calmo e aproveitar os dividendos. Para alguns teóricos de esquerda, portanto, o budismo é uma forma de desviar energia de ativismo que seria muito importante.

   O budismo, curiosamente, culturalmente parece ter feito uma volta de 180 graus, nos últimos 40 anos, na visão de alguns intelectuais. De desafio à normalidade, a reificador da normalidade. Mas é claro que Slavoj Žižek, como bom pós-moderno irracionalista koânico detêsuzukiano, adora uma autocontradição e uma ressignificação desconstruidora. Se algo se mostra o oposto do avesso do contrário, é isso que acha bonito!

   Mas o pior é que o budismo, mesmo o budismo tradicional, é em parte de fato culpado dessa vinculação com o status quo, em particular com a sociedade de consumo. E a mcmindfulness e as meditações para executivos estão aí para talvez corroborar que essa distorção é possível, ainda que culpar o budismo por isso seja absurdo.

 Além disso, hoje, no ocidente, tendemos a distorcer (ou ignorar completamente) a noção de oferendas, tanto efetivas quanto simbólicas.

O darma, para se estruturar no ocidente, normalmente tem se prostituído. Isso significa que o darma é aqui, bem distintamente do que ocorre na Ásia, vendido. E isso não ocorre sempre, como a maioria das pessoas pode pensar, simplesmente porque alguns monges, lamas e sacerdotes são gananciosos e vivem estilos de vida incompatíveis com a pobreza exemplificada pelo Buda e sua primeira comunidade (ainda que isso ocorra vez que outra). Não, isso se dá mais por que nossa cultura transforma tudo em um produto, e o que não for um produto encontra dois problemas: não é valorizado por quem o recebe e não se sustenta, porque não recebe apoio. Na Ásia o darma é valorizado de uma forma que ele se sustenta por causa desse valor reconhecido. Aqui nossa mentalidade, nosso arcabouço cultural, só vê valor em algo que custe dinheiro – e da mesma forma, não damos nosso suado dinheirinho para sustentar a sanga, porque, afinal de contas, “cada um por si”. Na Ásia o darma é como, por muito tempo, foram as universidades estadunidenses: sustentado por doações de gente que passou por lá e depois fez fortuna (hoje já não é tanto assim, as universidades também viraram corporações).

   Ainda assim, principalmente do lado do praticante, a oferenda é essencial. Oferecemos para as Três Joias e seus representantes de forma a purificar nosso próprio apego e gerar mérito ao sustentar os ensinamentos que beneficiam os seres. Oferecemos atenção, tempo, trabalho, dinheiro e estrutura. E, de forma a nos treinarmos na mente ampla e generosa, fazemos também oferendas simbólicas. O Buda recomendava para uma pessoa muito miserável que oferecesse um objeto da mão esquerda para a direita e vice-versa, até se acostumar com a natureza da oferenda. Dessa forma, mantemos altares onde várias substâncias são oferecidas simbolicamente, em termos desse treinamento da mente.

   Se o mestre budista é autêntico, ele recebe sua oferenda para ajudar você, não porque ele queira ou precise.

   Além disso, é importante oferecer para os seres que sofrem. No ocidente o budismo não surge em tantas formas caridosas como as religiões ocidentais. Os praticantes muitas vezes não estão dispostos a fundar escolas ou hospitais, ou simplesmente servir sopa nas ruas. Por um lado existe a desculpa de que isso não era feito de forma ampla nem mesmo na Ásia, nas formas tradicionais – e que “consertar o samsara” nunca foi, nem nunca será, a prioridade do budismo. Embora os mosteiros muitas vezes abrigassem uma quota de desvalidos.

   O fato é que o darma não vê a modificação do mundo como ele se apresenta como a maior forma de produzir benefício para os seres. Isso não é uma antítese aos ensinamentos, mas realmente não pode ser prioridade. A prioridade é desenvolver uma liberdade interna que não oscila na dependência de uma circunstância externa. A partir disso o “budismo engajado” pode até existir (embora seja redundante com o darma verdadeiro), mas uma distorção ocidental possível é priorizar podar os galhos, e não arrancar as raízes do problema.

   Isto é, confiar no darma é confiar que a felicidade verdadeira só pode ser encontrada quando os seres reconhecerem a realidade como ela é. O darma é o método por excelência para chegar nesse resultado. Focar-se demasiado em ações sociais é, nesse sentido, como se preocupar, num paciente com câncer, com um pequeno corte no dedo que ele porventura tenha feito na cozinha. Não precisamos deixar de botar um curativo, mas o que importa é fazer o tratamento da doença que pode ser fatal.

   Além disso, como pincelado na introdução ao texto, a questão da disponibilidade enorme de ensinamentos, tanto na internet quanto em livros, e mesmo o vasto número de centros de darma de várias tradições nas metrópoles, trazem várias questões que dizem respeito ao que se chama “supermercado espiritual”. A independência do ocidental o faz escolher o que ler indiscriminadamente, porque normalmente, sem uma forte conexão com a reflexão na impermanência, pensa como se tivesse todo o tempo do mundo, e se considera cheio da capacidade de discernir o que é bom para si próprio – o que é válido até certo ponto, mas que é mais saudável se acompanhado com pelo menos uma leve desconfiança sobre nossa capacidade de discernir o que é o melhor, num dado contexto. Nós fazemos isso quando vamos ao médico e não nos automedicamos: mas no caminho espiritual, gente que tolera fazer o tratamento com um guru, no ocidente, é raro. Também porque vimos tantos abusos dessa posição que vale desconfiar um pouco: mas não de forma absoluta.

 No budismo tradicional os textos são receitados por um professor, e há um processo ritual que nos autoriza e ensina a penetrar na textualidade em conjunto com a prática. Assim surgem várias questões de economia da atenção em termos de disputa pelo nosso foco, tanto de coisas mundanas com o darma, como por várias formas de darma, que algumas vezes são boas cada uma por si só, mas que se misturadas podem não dar muito certo.

  Nossa prática precisa ser autêntica e coerente – da mesma forma que não adianta seguir as orientações de vários médicos ao mesmo tempo, é preciso testar um conjunto de ensinamentos por alguns meses ou anos, antes de, de preferência com a anuência do professor anterior, buscar outro método.

   Além disso, a horizontalidade faz qualquer desqualificado como eu escrever textos sobre o darma, que são lidos e interpretados sem grande escrutínio, e os publicar na internet, atingindo talvez um grande número de pessoas. Essas pessoas possivelmente estariam se beneficiando muito mais ao praticar o darma com um professor e estudar profundamente um comentário clássico ou texto raiz sob sua orientação, do que ler “artigos de revista” sobre questões superficiais de darma e história do darma no ocidente – polêmicas vazias e alfinetadas projetadas para apertar os “botões certos” na pseudosanga da internet. E se você vier com o argumento que não, que meu texto é legal, que eu sou conhecido da sanga, preste acima de tudo atenção a isso que escrevi neste parágrafo. Isto é, não perca tempo lendo qualquer coisa sobre budismo. E também não perca seu tempo com outras coisas, que não são a prioridade do darma. Use seu tempo com a prioridade maior, que é receber o darma genuíno de um professor qualificado e o colocar em prática.

   E se ler é um problema, imagine colocar suas opiniões sobre o budismo no Facebook ou algo assim! São dois os tipos de budistas que encontramos na internet: interessados, sem contato pessoal, e pessoas que talvez não se digam mestres, mas que se colocam na posição de ensinar como se fossem. Há muitos “queridos” que até publicam livros e tiram fotos com professores, dão palestras e – que não tem qualificação nenhuma, não serviriam nem para explicar a alguém como se faz café ou pipoca. Modo geral, há muita bobagem sendo escrita, e mesmo quando não são erros de conteúdo, são erros de forma e colocação, ou coisas que simplesmente – tradicionalmente, no budismo – não se fala em público: porque causa celeuma, polêmica, confusão – promove discursividade vã e improdutiva.

 O seu professor provavelmente tem diretrizes sobre como se portar na internet, portanto pergunte sobre isso, e siga as orientações. Modo geral verificaremos que os bons praticantes mantém um low-profile, quase que se escondem. (E a partir disso já dá para inferir que tipo de praticante eu sou.)

    Além dos problemas com a sociedade de consumo e de déficit de atenção, o budismo precisa lidar com os outros desafios da modernidade. Por exemplo, no Tibete, por questões culturais próprias, que podem ser julgadas favoravelmente ou não de acordo com a teoria feminista que se escolhe, é comum um professor budista (que não seja monge) namorar uma aluna. E isso vale também para as professoras mulheres (e embora elas sejam um tanto mais raras, ainda são mais comuns que na maioria das outras tradições religiosas). Impensável é ele namorar alguém que não esteja em seu contexto de vida, já que os professores budistas não têm férias ou uma vida outra em que não são professores (o que pode ser um bom argumento para algumas tradições só permitirem professores monásticos). Aqui no ocidente essa é uma questão muito delicada, porque se entende que a pessoa em posição subalterna se encontra frágil, não tem total autonomia perante um líder, seja ele mundano ou espiritual (ainda que, devido a nossos preconceitos particulares, o fato de ser espiritual torne a coisa aos nossos olhos mais complicada).

   Por outro lado, a questão da igualdade sexual, e outras questões semelhantes, tem sido levadas a sério por budistas no ocidente, e aos poucos isso se reflete na Ásia. A sanga por aqui tem avalizado muitas mulheres em posição proeminente.

   Mas por que essas questões da modernidade são aqui listadas como “distorções”? Um dos principais fatores, retomando a questão da economia da atenção, é que nos focamos em muitos detalhes que não são importantes para a prática. Hoje em dia são comuns perguntas sobre “o budismo e [adicione aqui uma questão da modernidade]”, e ainda que isso seja importante sob certo aspecto, de modo geral tem pouco a ver com a prática. Fixamo-nos em escândalos dos professores e em suas vidas privadas. E esse não é o ponto, de forma alguma.

   Podemos até ser feministas ativistas, mas não podemos confundir isso com prática budista. O nosso interesse, ou obsessão, para um praticante, não é a prioridade. Mas a cultura se configura dessa forma: trazemos nossas lutas pessoais para uma “arena budista” que inventamos. E então o budismo se torna mais um centro acadêmico ou clube, onde assuntos da moda, e o último escândalo em termos de um ou outro ativismo, é martelado indefinidamente: e nada disso tem a ver com prática.

 Os interessados pelo budismo, e os que se consideram budistas, são muitos; já os que praticam e estudam sistematicamente, e podem realmente sustentar a tradição para as próximas gerações, esses são muito poucos. Então demonstra certa superficialidade, quando após algumas décadas, ainda não superamos as questões de “relações públicas” do darma, e nos encontramos repassando no Facebook notícias sobre sei lá quais monges que brigaram sei lá onde. Se você tem algo para denunciar, chame uma autoridade que possa fazer algo. Não fique fazendo linchamento moral em público. Se praticar disciplina moral de fala era difícil com boca e ouvido, imagine com uma rede global. Os atos negativos de fala se multiplicam exponencialmente.

 E tente orientar seu estudo para questões que podem melhorar sua prática, não para questões institucionais, históricas ou “modernas”. Isso é mais ou menos como viver pelo telejornal, revista de fofocas ou timeline do Facebook: não é seu melhor eixo de vida focar esses assuntos. Você vai, inevitavelmente, receber algumas respostas sobre suas questões sociológicas, porque as pessoas perguntam muito: então, desencane.

   O budismo não é um fenômeno comum, um objeto de estudo ordinário. Quando é tratado dessa forma, ele naturalmente surge como as projeções de quem promove o estudo, e por isso dizemos “distorção”. Isso é assim porque o darma budista é uma expressão da sabedoria em meio à delusão: ele é um dedo que aponta a lua, um barco que se toma, e após concluir a travessia, se abandona. Ele não é uma explicação ou uma revelação da natureza das coisas, mas um método que leva ao reconhecimento direto dessa natureza – e ele também não se apresenta como uma “formulação” dela, embora, como qualquer outro fenômeno, também a represente de forma completa. Enquanto método, ele é um shapeshifter, assumindo as necessidades dos seres, sem nunca se coadunar com a delusão, mas se aproveitando dela para tocar os seres. Dessa forma, o budismo é impermanente, e um tanto flexível. Ele tanto muda para se adaptar, quanto ele eventualmente se degrada, e suas formas específicas, como um antibiótico que se usou abusivamente, perdem a eficácia. Temos que tomar o cuidado de manter a substância do darma viva, e isso quer dizer flexível, adaptável, mas livre de distorções. E isso só é possível com as pessoas que falam do budismo obtendo enfim, realização na prática. O melhor seria não falar antes disso, mas… no mínimo é preciso haver esse entendimento e esse objetivo. Portanto precisamos de mais praticantes e pessoas que realizem os ensinamentos, e menos conversas cruzadas sobre “temáticas atuais”.

   Estas distorções já são estudadas pela academia em seus “estudos asiáticos” como “budismo modernista”, isto é, a adaptação do budismo à cultura global. Estamos talvez bem no meio desse processo, com 300 anos no passado, e um período igual a esse no futuro, onde escolas budistas finalmente terão formas particulares plenamente operantes na contemporaneidade, com professores realizados, em termos das necessidades pós-globalização. Hoje estimamos que apenas 5% da produção intelectual budista esteja traduzida para línguas ocidentais, e a tradução com qualidade só começou, em volume, nos anos 1990.

   Digamos que, fazendo generalizações e aproximações, um erudito em área de humanas sabia, na década de 50, talvez algo como 0,1% das ideias mais gerais do budismo (distorcidas, é claro, por Schopenhauer, Jung, teósofos etc.) Hoje um erudito na área de humanas, no Brasil, talvez saiba 1% dessas ideias (com as mesmas distorções) – mas isso é um crescimento de 1000%!

 Ao mesmo tempo um erudito estadunidense médio da área de humanas talvez esteja conhecendo em torno de 3% e com uma boa redução na distorção iluminista-romântica – acrescida de alguma distorção, ainda que mais esparsa e nebulosa, da era hippie-beat, e do ativismo, pós-modernidade, direitos civis, feminismo, etc.

 Já um erudito de uma das 100 melhores universidades do mundo da área de estudos asiáticos conhece 99% das ideias gerais do budismo, o que deve dar em torno de 1% do que um erudito asiático qualificado dentro da tradição conhece, o que deve dar em torno de 0,1% do conteúdo impresso existente em língua asiática, o que dá infinitamente menos de 0,1% do darma em geral além das escrituras, já que o darma é verdadeiramente oceânico.

 Há a história budista dos sapos, um que vivia no poço, e outro no mar. O sapo do mar tenta explicar para o sapo do poço o que é o mar, e este só consegue entender coisas como “é grande como o dobro disto aqui? O quádruplo?” A história termina com o sapo do mar levando o sapo do poço para conhecer o oceano, o que acaba sendo uma revelação infortuna para o sapo do poço. Segundo a história, sua cabeça simplesmente explode. Pobre sapo do poço.

 Ao longo dos anos o nosso pocinho de darma no ocidente se alargou muito, mas cabeças seguem explodindo o tempo todo. Não é pouca coisa. Ainda assim, algumas pessoas desanimam até com um determinado tamanho de poço médio – chegam num centro de darma, se deparam com alguns ensinamentos, um altar e algumas práticas, e dizem: “é muita coisa, são muitos detalhes, é demais, nunca vou entender tudo”. Só um Buda onisciente entende tudo; para o praticante, não é preciso entender tudo. Não é preciso nem mesmo entender muito, é preciso entender aquilo que permite a prática.

 Ao mesmo tempo, devemos sempre contemplar a vastidão da mente do Buda, seus 84 mil ensinamentos, e os milhões de ensinamentos de seus alunos. Devemos sempre ter sede de darma, ser insaciáveis, ansiar por essa vastidão toda. Esse é um tipo de “desejo hábil”, particularmente se nos engajamos nessa busca de conhecimento com a motivação de ajudar os outros. Não se desencorajar perante a vastidão do darma, e do caminho à frente, é a forma mais elevada de paciência. A forma menos elevada, que também deve ser praticada, é desenvolver compaixão por quem nos irrita, prejudica ou tortura. Portanto não se desencorajar perante um oceano de ensinamentos, e o prospecto de muitas vidas de prática, é realmente a marca de um bom praticante.

   Se em vários momentos nesse texto mencionei o etnocentrismo e o racismo dos ocidentais, mesmo quando condescendentemente simpatizante com o darma, é preciso também mencionar que existe muito racismo na Ásia. E não só entre eles (japoneses com coreanos, etc), e baseado em sectarismo local (entre formas de uma mesma cultura) ou amplo (entre formas budistas de culturas asiáticas diversas). Alguns professores tradicionais consideram uma perda de tempo ensinar ocidentais, porque eles em sua maioria não parecem consistentes em seus esforços, ou por outros estereótipos de “demônios de olhos azuis”. Os mais cínicos patrocinam as atividades com a conexão dos alunos globais, mas dedicam seus esforços e dão seu melhor para “os de casa” – algo que muitas vezes a sanga ocidental está mais do que disposta a aceitar como generosidade. Os professores tradicionais muitas vezes não sabem lidar com o individualismo e a supremacia tecnológica dos alunos globalizados – e por isso também os evitam. Enquanto isso, professores ocidentais dificilmente encontram respaldo ou respeito na Ásia, com raríssimas exceções.

   Ainda assim, o poder civilizatório do budismo é paciente, a compaixão do Buda opera num tempo mais amplo que o geológico. As conexões são feitas, e após centenas de vidas, algumas pessoas podem vir a efetivar a prática do darma. Mesmo ler impressa a palavra “Buda” num texto desqualificado como esse é o fruto de éons de ações virtuosas coerentes na intenção de encontrar um caminho espiritual genuíno. Ouvir uma concha ou um sino consagrados tocar em um centro de darma, mesmo enquanto um inseto ou outro animal, é o resultado de googleplex atos de generosidade, disciplina ética, paciência, diligência e concentração. Chegar a ver um professor, muito mais, e que dizer ter um professor e seguir o método apresentado?

   É preciso reconhecer que todos os autores citados, que distorceram o budismo com a intenção de louvá-lo, geraram bons méritos, e fizeram algo positivo pelos seres. Meramente repetir a palavra “Buda” gera mérito, mesmo que nem sejamos capazes de entender tudo que ela significa, e, de fato, não somos.

   Os ensinamentos dizem que devemos louvar mesmo a figura de um Buda mal desenhada por uma criança, sem jamais criticá-la. O ocidente está começando a fazer bons croquis – ainda assim, se após alguns anos a criança segue fazendo apenas borrões no papel, talvez seja melhor levar num especialista. Após 300 anos de contatos com o budismo, nosso desenho, enquanto sociedade, ainda não é adulto.

 Tendo isso em mente, sempre é importante lembrar que no budismo a intenção é mais importante do que a capacidade, num dado momento, de fazer direito o que se quer fazer. Aspiramos fazer o que é certo, da melhor forma, e mais ampla – mas o que conseguimos está bem. Dessa forma um elogio ao Buda, mesmo que por um motivo errado, digamos dizendo que ele é uma forma de criador, ou é onipotente, já que é uma intenção de louvor – mesmo sendo equivocado pelo sentido mais correto – ainda assim gera mérito.

 

Nota sobre o espiritismo: o espiritismo tradicionalmente não se interessou pelas tradições asiáticas, e pode mesmo ser visto como uma reação positivista à Teosofia (havia certa disputa na Europa, do fim do séc. XIX, entre as duas tradições). Apesar disso, aqui no Brasil as noções de reencarnação espírita facilmente acabaram imputadas ao budismo. As diferenças essenciais são que no budismo a ênfase é em incontáveis vidas, em que todos foram mães de todos bilhões de vezes; no cansaço que devemos sentir perante todas essas existências infrutíferas, já que não há uma noção de evolução progressiva, e sim de “experiência cíclica”, em que nenhuma conquista, fora o estado de Buda, é definitiva. Assim, os budistas praticam, por exemplo, para diminuir a possibilidade de renascer como animais ou em outros reinos mais desafortunados, o que é bem mais comum do que renascer humano duas vezes consecutivas, para a maioria dos seres. No espiritismo, no máximo um ser “estaciona”, todas suas conquistas são definitivas.

Claro, há muitas outras diferenças na doutrina de forma geral: o budismo é insubstancialista até mesmo quanto ao reino humano atual (não é diferente de um sonho), enquanto que o espiritismo parece transformar o espiritual em outras formas de materialidade. O budismo também não acredita na existência de um “eu” (convencional, superior ou de outro tipo), e é não teísta.

Além disso, o budismo é focado no refino de instrumentos epistêmicos para o exame da realidade (meditação), enquanto que o espiritismo busca sabedoria em professores “desencarnados”. Para o budismo, inclusive, os maiores mestres fazem o voto de permanecer junto aos seres – quando há fenômenos semelhantes à mediunidade no budismo, por exemplo, em práticas com oráculos, não se considera aquele um ser de sabedoria, mas um conselheiro mundano, sobre assuntos práticos. Por exemplo, o oráculo de Nechung ofereceu uma rota de escape segura para o Dalai Lama sair do Tibete invadido para o refúgio na Índia. O ser sutil provê informação, mas questões espirituais, de sabedoria, e a decisão final está no lama que fez o voto de permanecer com os seres, na forma deles, até que todos se iluminem. O ser sutil é um humilde servo da sabedoria do “corpo de emanação”, que se manifestou por compaixão na forma humana. Além disso, estas são práticas sincréticas com religiões nativas das várias etnias asiáticas, e o budismo existe em muitos lugares sem fazer qualquer menção a elas. Não são algo ligado a espiritualidade, ao darma, mas algo ligado a necessidades mundanas, num status similar ao conhecimento sobre engenharia de pontes ou fundição de metais.

Nota sobre Jung: Minha crítica enfática diz respeito a suas visões e postura com relação ao pensamento asiático: romantismo (dele e de suas fontes), apropriação, condescendência e enfim etnocentrismo. Com relação à sua própria obra, seus benefícios, ou não, essas considerações não cabem num texto desse tipo. Creio que a avaliação, que inseri no texto, de que boa parte do pensamento científico estabelecido o escanteia completamente – com exceção de alguns poucos conceitos que penetraram a cultura – é bastante acurada. Também sua escrita nebulosa é reconhecida, particularmente quando comparada com a de Freud. Recomendo a leitura do capítulo sobre Jung em Feet of Clay de Anthony Storr (que foi talvez seu principal biógrafo).

Nota sobre Ken Wilber: em alguns sentidos Ken Wilber reconheceu várias destas distorções, se apropriou delas, e ciente disso tudo, agiu um tanto como Jung – nos ensinamentos se descreve “tratar o Buda como um caçador trata a um veado almiscarado”, isto é, toma o que acha bom, mas não mantém o compromisso com a tradição. Não que ele seja livre de distorções, longe disso. Apenas que o problema é distinto, e entra nas tantas formas pós-modernas de darma que se vê por aí, “budismo secular” ou “budismo sem falar em budismo”. A motivação muitas vezes é boa, isto é, conectar pessoas que tem aversão pelo aspecto institucional, histórico, tradicional. O resultado é a perda dos dispositivos de “controle de qualidade” da tradição, e, portanto, degeneração dos ensinamentos.

Lista das distorções

Primeira onda:

  1. Examinar as tradições asiáticas com a intenção principal de contrapor o que se vê de errado na própria tradição;
  2. Ênfase exagerada no caráter puramente empírico dos ensinamentos (Sutra dos Kalamas);
  3. Rejeição ao conceito de renascimento;
  4. Vários tipos de visões sobre o renascimento que não se aplicam propriamente ao darma budista (por exemplo, “reencarnação”);
  5. Visão extremamente limitada e linear da determinação cármica;
  6. Ocidente como julgador do que é o “puro Darma do Buda”, noção de “lamaísmo”;
  7. Pouca ou nenhuma ênfase em devoção;
  8. Visão de “rituais” como bagagem cultural desnecessária;
  9. Budismo tido como algo pessimista;
  10. Nirvana como “aniquilação da pessoa” ou “aniquilação da vontade”;
  11. A ideia de que as visões de Nietzsche ou Schopenhauer sobre o budismo correspondam a alguma versão suficientemente aproximada do Darma do Buda;

 

Segunda onda:

  1. Budismo visto como naturalmente universalista;
  2. Prática de tolerância como forma esmagar o outro na igualdade como percebida por nossos próprios parâmetros;
  3. Budistas não refutariam outras doutrinas através do debate e da inferência;
  4. A ideia de deus criador tomada como compatível com o budismo;
  5. A ideia de um “protetor benevolente” tomada como incompatível com o budismo;
  6. Buda tido como uma ideia compatível com Deus como normalmente um popular entenderia Deus;
  7. O vajrayana e a prática com deidades como sendo mais hinduísta que budista;
  8. Ver a “Teosofia” e os autores ligados a noções de “Filosofia Perene” como fontes fidedignas de explicações sobre o darma budista;
  9. O “Livro dos Mortos” egípcio e o Bardo Thodol vistos como possuindo alguma conexão, pelo título inventado “Livro Tibetano dos Mortos”;
  10. Jung visto como alguém que se aprofundou no pensamento oriental (só o fez na medida para encontrar algum ou outro detalhe que corroborasse seu corpus teórico, isto é, sem nenhuma profundidade efetiva, ou mesmo boa vontade desinteressada verdadeira);
  11. Zen visto como algo irracionalista, confundindo não conceptualidade com irracionalidade;
  12. Esforço “sem júbilo” tomado como um valor budista, particularmente zen.
  13. Zen visto como algo dissociado do budismo;
  14. Koans vistos como coisas soltas e sem referências a um corpus de debates registrados, simbologia e literatura;
  15. Imagem do budismo estereotipada através da popularização de apenas três tradições, elas próprias pouco conhecidas, e particularmente em alguns nichos, centrado em uma tradição do Japão;
  16. D. T. Suzuki, um cristão com formação em filosofia ocidental, sem convívio ou aprendizado monástico, sem qualificações na tradição, visto como especialista em Zen.
  17. Filosofia ocidental, romantismo alemão em particular, sendo tomado como Zen.

 

Terceira onda:

  1. Confundir a causa tibetana com o darma;
  2. Que os beat, de início, falariam o darma com propriedade;
  3. Jack Kerouac, tido como conhecedor do budismo, não chegou a conhecer pessoalmente sequer um professor budista;
  4. “Morrer jovem e desaparecer”, ideal romântico e em alguns momentos de Kerouac em texto, como prospecto aceitável para um budista;
  5. Não entender que carma positivo, sem dedicação e aspiração para o darma, leva ao renascimento em reinos de prazer e distração onde o darma não é possível por um tempo extremamente longo.
  6. O budismo não é moralmente liberal;
  7. Mas é contracultural e iconoclasta;
  8. O budismo não é hippie, pelo menos não num sentido que se possa pejorar;
  9. Ensinamentos budistas reconhecidos e vendidos como um produto;
  10. Oferendas raramente reconhecidas como prática;
  11. Oferendas simbólicas são consideradas superstição;
  12. Budismo e ação social ou caridade (ora exagero na relevância, que não ocorreu na Ásia, ora desprezo por algo que pode ser prática válida, pelo mesmo motivo);
  13. Achar que é budismo sair lendo qualquer coisa por aí;
  14. Falar demais de budismo.
  15. Que o budismo seja particularmente feminista, ou não;
  16. Que “questões contemporâneas” sejam o mais importante para o darma;
  17. Assumir que o darma já está adaptado ao mundo globalizado, mesmo sem tantos exemplos vivos de praticantes realizados.

 

eduardo-pinheiro-1Padma Dorje é praticante budista e é autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos.  Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org.   As partes 1 e 2 do texto, estão atualizadas, clique para acessa-las:  ”1ª onda: a distorção dos filósofos” e ”2ª onda: a distorção dos românticos”.

Comentarios:

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  • Yacov Gluck

    Olá, Padma Dorje
    Tenho uma dúvida:
    A noção de Ataraxia procurada pela Filosofia Helenística em geral (Ceticismo, Estoicismo e Epicurismo) pode ser comparada em alguma medida a algum conceito Budista?
    Em outras palavras, existe semelhança entre o Epicurismo, Estoicismo ou o Ceticismo em relação ao Budismo.
    Obrigado!

    • Algumas pessoas fazem relações, mas modo geral são apenas comparações sem profundidade — especialmente considerando que o budismo é tão diverso e vasto. O budismo hinayana parece ter alguns tipos de obstáculos de meditação semelhantes a ataraxia, já que não há o desenvolvimento de bodicita. Se são mesmo obstáculos ou objetivos do hinayana, daí varia de interpretação. Algumas escolas dizem que o hinayana produz realização espiritual completa, outras que produzem uma realização espiritual incompleta que se torna um obstáculo para a realização total. De todo modo, como realização ou obstáculo, ataraxia só pode ser comparada com objetivos budistas, não igualada a eles. Em outras palavras, há uma semelhança de “família” com certas ideias (boas, ruins) do hinayana.