Um movimento por mais compaixão na sociedade

O que podemos fazer diante da atual crise de valores?

Uma crise em que perseguimos avidamente bens e condições materiais como o caminho exclusivo da felicidade, muitas vezes sacrificando nossa humanidade — fraternidade, compaixão, respeito e outras qualidades que integram nossa natureza interna — e também ao custo de nosso meio-ambiente, a natureza externa. E para continuar descendo nessa espiral não é preciso esforço: acaba sendo a reação natural, já que temos incentivo massivo não apenas de empresas, mas também do sistema educacional e cultural, das pessoas em volta e do governo.

Obviamente, a solução não é todos se tornarem budistas, ou se converterem para algum caminho espiritual. Forçar as pessoas, ou mesmo apenas tentar trazer o maior número possível, não parece algo muito razoável. Sempre haverá descrentes e, atualmente, essa é a fatia do gráfico da fé que mais cresce — e não há nada de negativo nisso: podemos genuinamente celebrar essa diversidade.

Essa crise não é causada pela descrença em valores espirituais. É causada pela descrença em valores humanos, e isso inclui também membros de tradições espirituais, que podem não estar seguindo o que sua própria tradição recomenda, incluindo nós budistas — afinal, não praticar corretamente é uma forma de não acreditar, não guardar no coração, certo?

É por isso que falar de valores, em vez de um caminho espiritual, pode ser mais efetivo — abordagem que o Dalai Lama, por exemplo, aplica com maestria.

 

Ícone da compaixão

Já há décadas, na maioria das vezes em que o Dalai Lama se pronuncia em alguma palestra com tema aberto, sem que um ensinamento específico tenha sido requisitado, invariavelmente ele alerta sobre a necessidade de cultivarmos todos a compaixão, não apenas budistas ou pessoas que tenham um caminho espiritual. E não só compaixão, mas amor imparcial, gentileza, perdão etc — aquilo que ele chama de “valores humanos”, por estarem na fundação de nossa humanidade.

Quando pessoas leem uma de suas frases mais difundidas: “Minha religião é muito simples, minha religião é a bondade”, muitos são tocados instantaneamente pela simplicidade e profundidade das palavras, identificando-se intimamente com seu autor. Assim, o Dalai Lama tornou-se um ícone não exatamente do budismo, mas do bom coração e compaixão universais, no sentido de que qualquer pessoa pode e deve cultivar esses valores.

Seu sistema de ética secular começou a ser publicado ainda em 1999, no livro “Acient Wisdom, Modern World: Ethics for a New Millenium”, sendo continuado e reforçado em “Beyond Religion” (2011) e, neste ano, consolidado em “A Force for Good” (escrito por Daniel Goleman, a seu pedido).

Nos últimos anos, parece que a ênfase nesse tópico pelo líder tibetano foi ganhando cada vez mais espaço e, hoje, praticamente não há uma palestra em que ele não toque no assunto. Esse tema influencia bastante também as conferências do Mind & Life Institute, sobre ciência e budismo, em que pesquisadores de todo mundo e o Dalai Lama colaboram mutuamente. A partir daí, diversas iniciativas já foram criadas no sentido de apresentar de modo secular para o público em geral ideias e práticas budistas, por exemplo o programa “Cultivando Equilíbrio Emocional”, uma aplicação secular da psicologia budista em conjunto com a visão ocidental, e o “Compassion Cultivation Training”, da Universidade de Stanford, além de parcerias com escolas do ensino fundamental no exterior.

Possíveis respostas

Mas, obviamente, o Dalai Lama não é o único porta-voz da importância de uma ampla difusão da ética secular como algo fundamental para a sociedade. Isso vem sendo feito de modo sistemático desde o século 18, a partir do Iluminismo, por inúmeros filósofos e pensadores ocidentais. A diferença é que a maioria costumava usar uma abordagem de oposição frontal à religião. Nas últimas décadas, entretanto, iniciativas inclusivistas como a do Dalai Lama passaram a ser defendidas também por filósofos e autores renomados.

Como a questão da (ausência de) moralidade nunca deixou de ser um problema fundamental, o tema ainda é uma dos grandes questões da humanidade: por que seres humanos fazem coisas ruins?

Não há respostas fáceis. Mas abordagens mais práticas também oferecem uma contribuição significativa. Junto a esses temas, questões derivadas são:

  • Como seria uma sociedade melhor, ou mais feliz?
  • Por que não estamos agindo para termos uma sociedade assim?
  • O que poderíamos fazer para melhorar a satisfação e qualidade de vida de modo geral?
  • Qual é a relação entre felicidade individual e coletiva?
Dalai Lama com o co-fundador da Ação para Felicidade, Richard Layard, e outros em 2013
Dalai Lama com o co-fundador da Ação para Felicidade, Richard Layard, e outros em 2013

Para apresentar possíveis respostas e ações, foi criado o movimento Ação para Felicidade (Action for Happiness), na Inglaterra, em 2010, pelo economista Richard Layard, o especialista em inovação social Geoff Mulgan e o historiador Anthony Seldon. Como a visão secular do Dalai Lama foi uma fonte de inspiração fundamental, ele mesmo aceitou ser o patrono do movimento, que conta hoje com quase 60 mil membros em 168 países e já começou a engatinhar no Brasil.

Do que se trata o movimento?

Sem nenhuma orientação religiosa (ou anti-religiosa), comercial e política, poderíamos resumir em uma frase nosso ideal: queremos uma sociedade mais feliz e compassiva e, para isso, mudamos nossas prioridades e ações. Em vez de nos fixarmos em satisfazer nossos desejos pessoais, tentamos colocar a felicidade alheia em primeiro plano. Como o Dalai Lama apresenta:

“[O movimento] Ação pra Felicidade encoraja cada um de nós a viver de modo mais compassivo e coloca a felicidade dos outros no centro de nossas vidas. Este é o caminho para paz e felicidade duradouras.”

Para fazer parte do movimento, as pessoas apenas assumem um compromisso simples, mas profundo:

“Tentarei criar mais felicidade e menos infelicidade no mundo ao redor”.

Além disso, muitos dos membros formam grupos locais de apoio, para discutir, refletir e agir juntos. A base das ideias difundidas são pesquisas ligadas a um recente ramo científico chamado de “ciência da felicidade”, que estuda, por exemplo, quais são as causas da satisfação e bem-estar. Os resultados apontam decisivamente em direção ao altruísmo e valores éticos, sendo esse um dos objetivos centrais do movimento: difundir a ética secular. Também são promovidos os benefícios da meditação, de modo independente de tradições espirituais.

 

Abertura

No entanto, apesar de ser um movimento secular, são bem-vindas pessoas com qualquer fé (ou nenhuma). Diversos praticantes de tradições espirituais se sentem atraídos a participar devido:

  • às ações em conjunto, que visam um bem-estar e felicidade mais amplas
  • ao conhecimento científico divulgado, que em nenhum momento entra em oposição com a fé, podendo inclusive reforçá-la
  • ao interesse em uma abordagem secular da meditação
  • ou simplesmente para participar de um movimento humanitário compassivo

Para budistas em particular, trata-se de uma iniciativa em linha com o ideal mahayana de beneficiar todos os seres de modo imparcial. Também vai de encontro com a visão do Dalai Lama sobre o papel que budistas podem desempenhar no ocidente:

“Se o Buda viesse hoje, penso que ele seriamente consideraria as pessoas que não acreditam também como seres humanos, e não iria impor a elas algum sistema de crença que elas teriam que aceitar. Então para centros budistas [no ocidente] e a comunidade budista, primeiro temos que pensar seriamente sobre como contribuir para a promoção da ética moral, principalmente usando um abordagem secular.”

(Advice to Tibetan and Western Teachers at Dharma Centers)

Uma diferença que vale a pena sublinhar é que, diferentemente de tradições espirituais não-expansionistas como o budismo, a aspiração desse movimento é sim crescer. Mas, em vez de nos contrapormos a filosofias e tradições existentes, preferimos nos unir a elas.

Temos a aspiração de disseminar amplamente essas ideias, em conjunto com outros grupos, e não especificamente como uma organização ou movimento, mas sim como um ideal humano: a criação consciente de mais felicidade e menos infelicidade no mundo.

Para ler mais sobre o movimento, e o que ele tem a oferecer para budistas e praticantes espirituais em geral, leia:

IMG_0782por Emersom Karma Könchog, monge na tradição budista tibetana e voluntário do movimento Ação para Felicidade

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