Vire a sua forma de pensar de cabeça para baixo Pema Chödrön

Na imagem, Shantideva (c. 19th century)

POR PEMA CHÖDRÖN | Tradução: Alessandra Gusatto

Baseamos nossas vidas em procurar a felicidade e evitar o sofrimento, mas a melhor coisa que podemos fazer para nós mesmos — e pelo planeta— é virar completamente de cabeça para baixo essa maneira de pensar. Pema Chödrön mostra-nos o lado radical do Budismo.

Em um nível muito básico todos os seres pensam que deveriam ser felizes. Quando a vida se torna difícil ou dolorosa, sentimos que algo deu errado. Isto não seria um grande problema à exceção do fato de que quando sentimos que algo deu errado, estamos dispostos a fazer qualquer coisa para nos sentirmos bem novamente. Até mesmo começar uma briga.

De acordo com os ensinamentos budistas, dificuldades são inevitáveis na vida humana. Por um lado não podemos escapar da realidade da morte. Mas há também as realidades do envelhecimento, da doença, de não conseguirmos o que queremos e de conseguir o que não queremos. Estes tipos de dificuldade são fatos da vida. Mesmo se você fosse o próprio Buda, se você fosse uma pessoa completamente iluminada, experimentaria a morte, a doença, o envelhecimento e a tristeza de perder o que você ama. Todas estas coisas lhe aconteceriam. Se você se queimasse ou cortasse, doeria.

Mas os ensinamentos budistas também dizem que não é realmente isto que causa o sofrimento em nossas vidas. O que causa sofrimento é estar sempre tentando afastar-se dos fatos da vida, sempre tentando evitar a dor e procurando a felicidade. Este nosso sentimento de que poderia haver segurança duradoura e felicidade disponíveis para nós se tão somente pudéssemos fazer a coisa certa.

Nesta vida atual podemos prestar a nós mesmos e a este planeta um grande favor e virar esta nossa velha maneira de pensar de cabeça para baixo. Como Shantideva, autor de Guia do Estilo de Vida do Bodissatva, mostra, o sofrimento tem bastante para ensinar-nos. Se aproveitarmos a oportunidade quando ela aparece, o sofrimento nos motivará para buscar respostas. Muitas pessoas, inclusive eu, chegaram ao caminho espiritual por causa de infelicidade profunda. O sofrimento pode também nos ensinar a sentir empatia pelos outros que estão no mesmo barco. Além disso, sofrer pode nos tornar humildes. Até mesmo o mais arrogante entre nós pode ser suavizado pela perda de alguém querido.

Contudo é tão básico em nós sentir que as coisas deveriam ir bem para nós e que se começamos a nos sentir deprimidos, solitários ou inadequados, houve algum tipo do erro ou nos perdemos. Na verdade, quando você se sente deprimido, solitário, traído ou tem quaisquer sentimentos indesejados, este é um momento importante no caminho espiritual. É aqui que uma transformação verdadeira pode ocorrer.

Enquanto estivermos sempre procurando certeza e felicidade, ao invés de dar valor ao gosto e cheiro e qualidade do que exatamente está acontecendo, enquanto estivermos sempre correndo do desconforto, seremos pegos por um ciclo de infelicidade e desapontamento e nos sentiremos cada vez mais fracos. Esta maneira de ver ajuda-nos a desenvolver a força interior.

E o que é especialmente encorajador é a visão de que a força interior está disponível a nós bem quando pensamos que chegamos ao fundo, quando as coisas estão na pior. Em vez de nos perguntarmos, “como posso encontrar segurança e felicidade?” poderíamos nos perguntar, “posso tocar no centro de minha dor? Posso sentar com sofrimento, tanto com o seu e o meu, sem tentar fazê-lo partir? Posso estar presente durante a dor da perda e desgraça – desapontamento em todas as suas muitas formas – e deixar que me abra?” Este é o truque.

Há várias maneiras de ver o que acontece quando nos sentimos ameaçados. Em tempos de aflição- de raiva, de frustração, de falhas – podemos ver como ficamos presos e como shenpa aumenta. A tradução usual de shenpa é “apego”,  mas não expressa adequadamente o significado completo. Eu penso em shenpa como “ficar enganchado.” Outra definição, usada por Dzigar Kongtrul Rinpoche, é “carga” – a carga atrás de nossos pensamentos e palavras e ações, a carga atrás de “gostar” e “não gostar.”

Pode também ser útil deslocar nosso foco e ver como criamos barreiras. Nestes momentos podemos observar como recuamos e nos tornamos autocentrados. Tornamo-nos secos, azedos, medrosos; desintegramo-nos, ou endurecemo-nos por medo que mais dor virá. De alguma maneira familiar, automaticamente erigimos um escudo protetor e nosso autocentramento intensifica-se.

Mas este é exatamente o mesmo momento em que poderíamos fazer algo diferente.  Direto no ponto, através da prática, podemos nos familiarizar com as barreiras que colocamos em torno de nossos corações e de todo nosso ser. Podemos nos tornar íntimos da maneira como nos escondemos, adormecemos e congelamos. E esta intimidade, vindo a conhecer estas barreiras tão bem, é o que começa a derrubá-las. Surpreendentemente, quando lhes damos nossa completa atenção elas começam a cair.

Finalmente todas as práticas que eu mencionei são simplesmente maneiras que podemos utilizar para dissolver estas barreiras. Seja aprendendo a estar presentes ao sentar em meditação, reconhecendo shenpa, ou praticando a paciência. Estes são métodos para dissolver as paredes protetoras que automaticamente construímos.

Quando estamos construindo as barreiras e o sentimento de “eu” sendo separado do “você” começa a ficar mais forte, exatamente ali no meio da dificuldade e da dor, tudo poderia mudar simplesmente não erigindo barreiras; simplesmente permanecendo aberto à dificuldade, aos sentimentos que você está atravessando; simplesmente não falando consigo mesmos sobre o que está acontecendo. Esta é uma etapa revolucionária. Tornar-nos íntimos da dor é a chave da mudança no fundo do nosso ser – permanecer abertos a tudo que experimentamos, deixando que a ponta afiada de tempos difíceis nos perfure o coração, deixando que estes tempos abram-nos, humilhem e nos tornem mais sábios e corajosos.

Deixe a dificuldade transformá-lo. E irá. Na minha experiência, somente necessitamos de ajuda para aprender como não fugir.

Se estivermos prontos para tentar permanecer presentes com a nossa dor, um dos maiores suportes que jamais poderíamos encontrar é cultivar o calor e a simplicidade de bodichita. A palavra bodichita tem muitas traduções, mas provavelmente a mais comum é “coração iluminado.” A palavra refere-se a um anseio de se liberar da ignorância e delusão para ajudar os outros a fazer o mesmo. Colocar nossa iluminação pessoal em uma estrutura maior – inclusive planetária, faz uma diferença significativa. Dá-nos uma perspectiva mais vasta em por quê faríamos este trabalho frequentemente difícil.

Há dois tipos de bodichita: relativa e absoluta. A bodichita relativa inclui compaixão e maitri. Chögyam Trungpa Rinpoche traduziu maitri como “amizade incondicional consigo mesmo.” Esta amizade incondicional significa ter um relacionamento imparcial com todas as partes de seu ser. Assim, no contexto de trabalhar com a dor, isto significa construir uma relação íntima, compassiva de coração com todas aquelas partes de nós mesmos que geralmente não queremos tocar.

Algumas pessoas acham os ensinamentos que ofereço úteis, pois incentivo a serem amáveis consigo mesmas, mas isto não significa mimar as nossas neuroses. A bondade que eu aprendi com meus professores e que eu tanto desejo transmitir para outras pessoas, é bondade para todas as qualidades de nosso ser. As qualidades com as quais é mais difícil sermos amáveis são as partes dolorosas, onde nos sentimos envergonhados, como se não pertencêssemos, como se tivéssemos abalados, quando as coisas estão despencando para nós. Maitri significa ficar conosco quando não temos coisa alguma, quando nos sentimos uns perdedores. E transforma-se na base para ampliar essa mesma amizade incondicional aos outros.

Se há partes inteiras de você mesmo, das quais você está sempre fugindo e das quais você até mesmo sente-se justificado em fugir, então você irá fugir de qualquer coisa que lhe ponha em contato com seus sentimentos de insegurança.

E você observou quão frequentemente estas partes de nós mesmos são tocadas? Quanto mais próximo você chega de uma situação ou pessoa, mais estes sentimentos aparecem. Frequentemente, quando você está em um relacionamento ele começa ótimo, mas quando começa a intimidade e começa a trazer a tona suas neuroses, você apenas quer sair de lá.

Por isso, eu estou aqui para lhe dizer que o caminho da paz está bem ali, quando você quer se afastar. Você pode passar pela vida não deixando nada tocá-lo, mas se você quiser realmente viver completamente, se você quer entrar na vida, entrar em relacionamentos genuínos com outras pessoas, com animais, com a situação do mundo, você definitivamente terá que experimentar o sentimento de ser provocado, de ficar enganchado, de shenpa. Você não sentirá somente contentamento. O recado é que quando aqueles sentimentos emergem, não é uma falha. Esta é a chance de cultivar maitri, amizade incondicional para com seu eu perfeito e imperfeito.

A bodichita relativa também inclui despertar a compaixão.  Um dos significados de compaixão é “sofrer com,” estar dispostos a sofrer com outras pessoas. Isto significa que dependendo do grau em que você pode trabalhar com a totalidade de seu ser – seus preconceitos, seus sentimentos da falha, sua auto-piedade, sua depressão, sua raiva, seus vícios – mais você conectará com outras pessoas através dessa totalidade. E será um relacionamento entre iguais. Você será capaz de sentir a dor das outras pessoas como sua própria dor. E você será capaz de sentir sua própria dor e saber que ela é compartilhada por milhões.

Bodichita absoluta, também conhecida como shunyata, é a dimensão aberta de nosso ser, o coração e a mente completamente abertos. Sem etiquetas de “você” e “eu,” “inimigo” e “amigo,” a bodichita absoluta está sempre aqui. Cultivar a bodichita absoluta significa ter um relacionamento com o mundo que é não-conceitual, sem preconceitos, tendo um relacionamento direto, não editado da realidade.

Este é o valor de sentar em prática meditativa. Você treina em voltar ao momento presente e desordenado repetidas vezes. Quaisquer pensamentos que apareçam em sua mente, você considera com equanimidade e aprende deixá-los dissolver-se. Não há nenhuma rejeição dos pensamentos e emoções que vêm à tona; pelo contrário, começamos a notar que os pensamentos e as emoções não são tão sólidos como sempre pensamos.

É necessário coragem para treinar a amizade incondicional, é necessário coragem para treinar o “sofrer com,” é necessário coragem para ficar com a dor quando ela aparece e não fugir ou construir barreiras. É necessário coragem para não morder a isca e ser arrastados. Mas na medida em que perseveramos, o reconhecimento da bodichita absoluta, a experiência de quão abertas e livres nossas mentes realmente são, começa a assentar em nós. Em consequência de tornarmo-nos mais confortáveis com os altos e baixos de nossa vida humana ordinária, este reconhecimento se fortalece.

Começamos a examinar mais de perto nossa tendência previsível de ficar enganchados, de nos separar, para nos retirar e construir paredes. Enquanto nos tornamos íntimos destas tendências, elas tornam-se gradualmente mais transparentes e vemos que há realmente um espaço, há espaço ilimitado, complacente. Isto não significa que então você vive felicidade e conforto duradouros. Esse espaço inclui a dor.

Nós ainda poderemos ser traídos, odiados. Ainda poderemos nos sentir confusos e tristes. O que não faremos é morder a isca. Algo agradável acontece. Algo desagradável acontece. Algo neutro acontece. O que aprendemos gradualmente é não fugir de estarmos inteiramente presentes. Precisamos treinar neste nível muito básico por causa do sofrimento espalhado pelo mundo. Se não estivermos treinando gradualmente, um momento de cada vez, em superar nosso medo da dor, então seremos muito limitados em quanto podemos ajudar. Seremos limitados a ajudar a nós mesmos e limitados em ajudar outros. Portanto vamos começar com nós mesmos, bem como somos, aqui e agora.

Extraído de “Practicing Peace  in Times of War (Praticando a paz em tempos de guerra),”  por Pema Chödrön. 

Pema Chödrön é uma monja, que pratica na tradição do budismo tibetano. Foi uma discípula de Chögyam Trungpa Rinpoche, cujos ensinamentos ela continua a disseminar entre estudantes ocidentais do mundo inteiro. Nascida na cidade de Nova York, em 1936, Pema tem 2 filhos adultos e 2 netos. Formada pela Universidade da Califórnia, em Berkeley, foi professora primária por muitos anos, no Novo México e na Califórnia. Pema já havia passado dos 30 anos quando se ligou pela primeira vez aos ensinamentos budistas. Em 1971, ela viajou para os Alpes franceses, onde encontrou o Lama Chime Rinpoche, com quem estudou por muitos anos. Tornou-se uma noviça em 1974, enquanto estudava com Lama Chime, na Inglaterra.

O primeiro encontro de Pema com seu guru-raiz, Chögyam Trungpa Rinpoche, foi em fevereiro de 1972. Lama Chime encorajou-a a trabalhar com Trungpa Rinpoche e foi com ele que Pema, finalmente, se ligou mais profundamente. Pema estudou com Trungpa Rinpoche de 1974 até a morte de dele, em 1987, recebendo dele sua ordenação plena em 1981. Pema continuou a estudar com grandes mestres das linhagens Kagyü e Nyingma do budismo tibetano.

Atualmente, Pema é professora residente na abadia Gampo, um centro monástico situado em uma área de duzentos acres, à beira-mar, sobre as falésias do cabo Breton, na Nova Escócia, no Canadá. Pema é uma Acharya (professor senior) de Shambhala International e, quando não está em retiro fechado, na abadia Gampo, viaja pela Europa, Austrália e América do Norte, ensinando a grandes audiências.

Pema Chödrön é a autora de  “Comece onde você está“, Editora Sextante, “Os lugares que nos assustam” e “Quando tudo se desfaz”, Editora Gryphus.

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