Sob a sombra do mesmo para-sol
A tradição e a ciência cabem juntas sob esse para-sol? Uma entrevista com Thupten Jinpa Langri
É provável que não muitos admiradores do Dalai Lama no ocidente reconheçam o rosto de Thupten Jinpa Langri, ainda que a grande parte lhe atribua um status de quase reverência. Os que assistem as apresentações públicas do Dalai Lama conhecem Jinpa, o tradutor e intérprete de Sua Santidade, principalmente pela voz. Seu trabalho é ser uma conexão invisível entre o palestrante e a plateia, e dessa forma ele mantém-se longe das luzes do palco. Então, quando ele assumiu o centro do palco na Iniciação de Kalachakra em Washington, DC, em 2011 – a primeira vez que o ouvi apresentar seus próprios pensamentos para uma plateia – foi um evento incomum. Ele concedeu uma palestra com o título “Sob o para-sol do Budismo: Religião, Ciência e Secularismo cabem em sua sombra?” Jinpa começou pedindo desculpas. Quando preparou a palestra, havia entendido que a concederia para uma plateia nativa dos Himalaias: tibetanos ou mongóis. Mas lá encontrou centenas de ocidentais. Um pouco atrapalhado, explicou que o encontro entre o budismo e a modernidade se apresenta de forma muito diferente para budistas de culturas tradicionais e para budistas ocidentais. Ele teria que improvisar.
O dilema de Jinpa me marcou. Quando budistas ocidentais consideram o diálogo entre budismo e ciência, imaginam meditadores no laboratório, ligados por fios a algum aparelho de medida do cérebro, pesquisadores compilando respostas a questionários, e outros exercícios similares em termos de geração e coleta de dados. Se a imprensa mainstream e a própria imprensa budista forem indicativos de algo, é de que geralmente temos pouca compreensão, ou mesmo interesse, no sentido que o encontro com a ciência tem para budistas tradicionais tais como os tibetanos, que lutam pela sobrevivência cultural em um mundo cada vez mais globalizado. Quando refleti a respeito, ficou óbvio para mim que o encontro dos budistas tradicionais com a modernidade necessariamente seria bem diferente do encontro dos ocidentais modernos com o budismo. Mas diferente como? Mais especificamente e pessoalmente, perguntei-me se essa diferença poderia explicar o entusiasmo aparentemente genuíno que o Dalai Lama demonstra pela ciência, coisa que há muito me deixa perplexa.
Poucos possuem a qualificação de Jinpa para esclarecer estas questões. Como professor adjunto de estudos religiosos na Universidade McGill, Jinpa é o tipo raro de erudito que detém titulações de instituições acadêmicas religiosas e seculares de primeira qualidade tanto no ocidente quanto no oriente. Cresceu no ambiente monástico no sul da Índia, e foi educado na tradição tibetana clássica, recebendo o mais elevado título de Geshe Llaram do mosteiro Ganden. Então obteve um bacharelado cum laude em filosofia, e um PhD em estudos religiosos da Universidade de Cambridge, no Reino Unido. Jinpa traduziu poemas tibetanos (Songs of Spiritual Experience, [“Canções de Experiência Espiritual”]), escreveu um livro sobre filosofia do Caminho do meio (Self, Reality, and Reason in Tibetan Philosophy, [“Identidade Pessoal, Realidade e Razão na Filosofia Tibetana”]), e editou mais de uma dúzia de livros do Dalai Lama, inclusive O universo em um átomo: o encontro de ciência e espiritualidade. Jinpa é diretor do Instituto de Clássicos Tibetanos, que fundou, e traduz textos para a Biblioteca de Clássicos Tibetanos do Instituto. Nos últimos anos tem colaborado com cientistas na faculdade de ciências médicas de Stanford em uma pesquisa pioneira sobre características mentais positivas, desenvolvendo um treinamento secularizado de compaixão presentemente sendo testado como tratamento de TEPT (transtorno de estresse pós-traumático) em veteranos de guerra. Ele é hoje Presidente do Conselho do Mind and Life Institute, que por mais de 30 anos tem reunido o Dalai Lama com cientistas de ponta para explorar a natureza da consciência.
—Linda Heuman, editora colaboradora.
A imprensa popular amplamente citou o Dalai Lama quando ele disse: “Se a análise científica demonstrar conclusivamente que certas afirmações do budismo são falsas, então precisamos abandoná-las e aceitar as conclusões da ciência.” Como devemos entender essa afirmação? Sua Santidade compreende que o pensamento budista tem alguns aspectos que envolvem afirmações empíricas. Estes são os aspectos que estão completamente vinculados com a ciência. Estas afirmações empíricas podem ou não ser sustentadas pela compreensão científica atual. Se não forem, à luz de novas conclusões científicas, poderão receber alterações. Mas há outras dimensões do pensamento budista, tais como as dimensões éticas ou filosóficas. Sua Santidade tem uma concepção da ciência que não inclui a totalidade da realidade.
Realmente isso depende da concepção do escopo da ciência que se mantém. Se acreditamos que tudo que é conhecível – o que quer que seja real – precisa de alguma forma estar no escopo da ciência, então é claro que haverá conflito. Mas se a compreensão da ciência é que ela é uma forma particular de fazer as coisas – uma forma particular de conhecer que inclui uma metodologia particular – então enquanto que alguns aspectos da realidade se enquadram nesta categoria, outros não.
Por exemplo, certo e errado, bom e mau, não tem status científico. A ciência não pode nos dizer o que é correto e o que é errado. Não é possível derivar afirmações morais sobre afirmações sobre fatos. E isso é reconhecido no ocidente desde a época de David Hume. Hume tem essa afirmação famosa que diz que “nenhum ‘deve ser’ se segue de um ‘é’” [“No ought from an is”]. Em certo sentido Sua Santidade concorda com essa afirmação. O âmbito da ciência é compreender os fatos. Mas como usamos estes fatos, daí é outra categoria de investigação.
E se a ciência produzisse evidência que contradissesse princípios fundamentais do budismo, tais como a impermanência ou o renascimento? Que tipo de forma configuraria essa evidência?
Isso me lembra de uma pergunta que alguém fez ao Dalai Lama em seus ensinamentos em Nova York em 2013: “Na medida que a ciência revela mais sobre nossas mentes e a natureza da vida, que descobertas poderiam ser feitas no sentido de sustentar o estado iluminado?” Em sua resposta, o Dalai Lama disse, “é importante distinguir entre o que a ciência não descobriu e o que a ciência descobriu que não é o caso.” Esta é uma distinção metodológica importante que vem da filosofia do Caminho do Meio. Só porque a ciência não descobriu que algo é o caso, isso não significa que a ciência provou a não existência disso; a não existência de prova não prova a não existência.
Se as pessoas envolvidas nas tradições budistas começarem a sentir que precisam de evidência científica para provar a eficácia ou a validade de suas práticas, estamos mal. Porque precisaríamos da ciência para provar que o que fazemos tem valor? Não entendo.
Mas muitos ocidentais precisam. [Risadas.] Pois então, de alguma forma trata-se de uma desconfiança quanto a toda a história da tradição, como se nada ali tivesse valor! Para um praticante budista, por que seria necessária uma prova de terceira pessoa para mostrar que a prática o está ajudando? No fim das contas, quando falamos de prática espiritual, você mesmo é sua melhor prova. Praticantes individuais podem compreender a partir da própria experiência que a prática os está ajudando a serem mais compreensivos, mais abertos ou mais a vontade com os outros, e sentirem-se mais desembaraçados. Do meu ponto de vista, estes efeitos são muito mais poderosos como fonte de motivação do que um estudo científico que usa um scanner para mostrar que quando você medita, coisas acontecem no seu cérebro. Como algo desse tipo ajudaria a pessoa?
Uma área em que o estudo e a evidência científica para os benefícios da prática meditação têm lugar ocorre quando adaptações dessas práticas são desenvolvidas para o benefício da sociedade em geral no contexto de aplicações clínicas. Por exemplo, terapia comportamental embasada em mindfulness começa a ser usada como tratamento efetivo para relaxar tensões. E cada vez mais a meditação sobre compaixão pode ser usada em pessoas com excessivo autojulgamento negativo. Nestes tipos de situações, nesses casos, evidências científicas que demonstram a eficácia ajudam, uma vez que essas técnicas de meditação de alguma forma são como tratamentos terapêuticos não farmacológicos, que requerem critérios para julgarmos sua adequação para determinados tipos de pessoas.
De toda forma, nessa altura o estudo científico da meditação e de seus efeitos é muito rudimentar. Está num estágio tão primitivo que não há como mostrar os efeitos específicos de tipos específicos de práticas.
Você vê algum problema com a secularização da meditação? Não tenho nenhum impedimento moral com relação a isso, se beneficiar as pessoas – e desde que não se afirme que se trata de budismo. Aqui temos um problema. Se o budismo for reduzido à apenas mindfulness, então há um problema. Retirar algumas coisas da prática budista e a padronizar para benefício do mundo secular em geral, quanto a isso não vejo problema algum. O que ocorre é que algumas vezes nesse processo as pessoas começam a fazer afirmações mais fortes, de que tendo agora extraído o néctar das práticas budistas, ficaram com a essência da coisa, deixando de lado aquele bagaço de rituais inúteis e supersticiosos. E nisso está o problema.
Você disse que a tensão entre o budismo e a modernidade é vivenciada de forma diferente pelos budistas de culturas tradicionais, como os tibetanos, e pelos budistas ocidentais. Qual seria a diferença? As tradições intelectuais respectivamente herdadas, que são o ponto inicial de encontro do budista ocidental e do tradicional com a modernidade, são muito diferentes. Nós budistas tradicionais temos uma visão básica de mundo fundamentada na visão de mundo budista. Então lidamos criticamente com a perspectiva dominante e a partir dela incorporamos elementos que tenham maior sustentação empírica – pelo menos com relação ao mundo físico – e que devem ser incorporadas em nossa própria visão. É assim que os budistas têm feito ao longo da história. Essa tendência deve continuar para a sobrevivência da tradição budista. Mas o fundamento básico da visão de mundo permanece budista.
Por outro lado os budistas ocidentais, ou, melhor dizendo, os budistas convertidos ocidentais, se tornaram budistas por iniciativa própria, e assim há razões para terem escolhido o budismo. Suas razões não têm a ver com um sentimento de lealdade a uma memória particular, ou com uma mitologia que é parte da narrativa da tradição. Muitos encontram o budismo como parte de uma busca pessoal; geralmente é um enfoque muito individualista. Eles vêm de um background educado, e assim a tradição intelectual por eles herdada é a dominante, a ciência. A partir disso tentam adaptar elementos do budismo que se encaixem sem muito conflito naquela visão de mundo. Dessa forma eles tendem, enquanto abraçam a tradição, a se ater a elementos particulares dela.
Como os budistas tradicionais e os ocidentais diferem em seus relacionamentos com a ciência? Como se incorpora elementos científicos no próprio sistema de crença realmente depende, novamente, da concepção que se tem da ciência e de seu escopo. Se alguém acredita que tudo que é conhecível e verdadeiro está no escopo da ciência, então é claro que vai ter uma atitude de um tipo mais lógico-positivista. Mas se a pessoa tiver uma compreensão do escopo da ciência como mais limitado, então nem tudo que se reconheça como parte da realidade estará nesta categoria.
Então a ciência se torna parte de um sistema para compreender a própria experiência, e não o sistema inteiro. Exatamente. Para os budistas tradicionais é melhor ter essa concepção de escopo mais limitado da ciência, em vez da percepção ingênua, que boa parte do público geral tem, de que de alguma forma a ciência é a única forma de compreender o real, e que se a ciência não fala de algo, aquilo não é, de fato, real. Esta é uma percepção popular, e há um perigo verdadeiro dos budistas tradicionais entrarem nessa. E se o fizerem, muitos aspectos da tradição se tornam problemáticos.
Preocupo-me com os membros mais jovens das comunidades budistas tradicionais, porque na medida em que ficam mais interessados em sua herança – e dado que não são tão desenvoltos no domínio de sua própria língua nativa – eles acabem lendo livros escritos por budistas ocidentais contemporâneos. Muitas vezes tento lembrar a eles para não confundam a imagem do budismo que encontrarão nesses escritos populares com a visão tradicional; por exemplo, muitos budistas ocidentais dão pouca importância para a devoção em suas práticas. O que pode ocorrer é que os jovens leiam esses livros populares e comecem a reinterpretar suas práticas. Isso então teria um efeito potencialmente alienador de suas próprias formas tradicionais de fazer as coisas.
Sua Santidade o Dalai Lama há muito tempo promove a introdução do treinamento em ciência na educação monástica tradicional tibetana. Por quê? Sua Santidade está preocupada em conectar a cultura tibetana clássica com a modernidade. Na comunidade tibetana no exílio na Índia, a maioria dos alunos passa por um sistema escolar secular modelado no sistema educacional indiano, que é basicamente uma continuação do sistema britânico. Assim, eles recebem educação científica. Mas no treinamento monástico clássico, falando de modo geral, não há treinamento em ciência. Originalmente Sua Santidade esperava que, na medida em que a população geral tibetana se educasse em ciência, eles começariam um diálogo crítico com a ciência; por exemplo, começariam a escrever materiais científicos em tibetano, e desenvolveriam a língua tibetana para torná-la capaz de apresentar ideias científicas. Isso não aconteceu, uma vez que o sistema escolar laico é secular, e a ciência é geralmente ensinada em inglês. Assim não importa quão cientificamente educados os alunos tibetanos possam ser ao fim de sua educação fundamental ou universitária, não são fluentes o bastante para falar de ciência em tibetano e assim dialogar com as perspectivas do pensamento tibetano clássico. É por isso que Sua Santidade começou a sentir que, de forma a levar a tradição clássica tibetana para o diálogo com a modernidade, a ciência precisaria ser incluída na própria educação monástica.
Porque não é suficiente para os tibetanos ser fluentes em ideias científicas em inglês? Estes estudantes tibetanos laicos que receberam treinamento em ciência têm um domínio muito rudimentar da tradição budista clássica. Não são capazes de dialogar com a ciência do ponto de vista da visão de mundo budista. Há todo um nível de diálogo crítico com a ciência que precisa acontecer, mas que só pode acontecer se os monges receberem formação científica.
Então o que estamos falando aqui é de um diálogo critico do budismo tibetano com a ciência, e não apenas do povo tibetano com a ciência. Não é o povo tibetano, mas a visão de mundo budista. Os conceitos budistas são o conteúdo da visão filosófica do povo tibetano. E, de certa forma, a essência da cultura refinada da tradição intelectual tibetana é budista. Portanto, a não ser que descubramos um jeito de que as ideias budistas possam dialogar criticamente com a ciência na língua tibetana, esse encontro com a modernidade nunca vai acontecer direito.
Um dos argumentos principais de Sua Santidade para o ensino monástico da ciência é que se se olhamos a história do desenvolvimento das ideas budistas, o budismo sempre dialogou com todas as perspectivas de um determinado momento na história. Por exemplo, o desenvolvimento da teoria epistemológica ou dos métodos lógicos do budismo ocorreu no contexto de um diálogo muito profundo e prolongado com as tradições não budistas da Índia. Sua Santidade também argumentou que nos textos Abhidharma há muitas discussões sobre o mundo externo que são essencialmente teorias científicas. Assim budistas sempre se interessaram em compreender o mundo; não se interessaram exclusivamente no desenvolvimento pessoal. De fato, no modelo budista, o desenvolvimento pessoal pressupõe ter uma compreensão correta da natureza da realidade. Afinal de contas, presume-se que seja a sabedoria e o conhecimento que produzam a liberação.
Assim Sua Santidade está lembrando as instituições monásticas de que enquanto tradição o budismo sempre fez assim no passado. E agora, a não ser que o budismo dialogue criticamente com a ciência, não será capaz de manter sua visão de mundo atualizada – particularmente no que diz respeito a teorias físicas sobre o mundo.
Com a visita recente do Dalai Lama à Universidade Emory, a Iniciativa de Ciência Tibetana de Emory ganhou a atenção da imprensa. O que é essa iniciativa, e por que é importante? A Iniciativa de Ciência de Emory objetiva levar ciência ao sistema de educação monástico. Já houve algumas tentativas antes – como A Ciência Encontra o Dharma e Ciência para Monges – mas o que torna o enfoque de Emory tão relevante é que estão desenvolvendo um currículo especificamente projetado para monges. Não podemos ensinar ciência para monges apenas como se ensina uma classe de ensino médio ou graduação – o contexto é completamente diferente.
Quais são os desafios específicos dessa situação? Não podemos apresentar as descobertas simplesmente como fatos; é preciso apresentar suas implicações filosóficas. Um enfoque ao estilo de “grandes ideias” é importante. Os mosteiros não tem a ilusão de desenvolver centros de pesquisa ou produzir cientistas. O que eles precisam é de um programa robusto o suficiente para passar as ideias e descobertas mais importantes da ciência, traçar suas implicações filosóficas, e fazer um levantamento dos desafios de algumas das pressuposições subjacentes a suas interpretações. Dessa forma os monges não estão apenas aprendendo ciência. Eles estão aprendendo ciência como um sistema de pensamento, ou visão filosófica. Mas uma dos elementos próprios da ciência, e que a separa da filosofia, é que não se pode evitar ensinar alguns fatos. É preciso apresentar alguns blocos fundamentais para então se começar a montar a estrutura.
Houve resistência quanto à ideia de Sua Santidade de introduzir a ciência nos mosteiros? Inicialmente houve muita relutância. É perfeitamente compreensível, já que estas instituições monásticas são centros acadêmicos de aprendizado com centenas de anos de história, sucesso e reputação. A maioria das instituições duradouras são essencialmente conservadoras. Por exemplo, observemos a Igreja Católica, ou o sistema monárquico. O conservadorismo dessas instituições é o que as faz durar. A maioria dos monges mais velhos inicialmente reagiu com “Vivemos bem por muito tempo sem essa educação científica. Por que isso agora? Se o sistema está funcionando, para que mudar?” É uma coisa bastante humana.
E mesmo que Sua Santidade ele mesmo tenha feito essas sugestões, os mosteiros são corpos autônomos. Os abades de cada um desses mosteiros são suas autoridades finais. E muitos desses abades são monges comuns que cresceram em posição e que possuem muita lealdade e afeto pelas instituições. Nenhum deles iria quer arriscar algo que potencialmente leve a enfraquecer ou derrubar o sistema.
Uma das principais preocupações que alguns deles expressaram foi: “Lá no Tibete as instituições culturais e históricas foram todas destruídas. O que temos na Índia é nossa única esperança. E já que o treinamento clássico demanda tanta dedicação por tanto tempo, por que acrescentar algo que ocupará o tempo dos alunos, bem como será uma distração?” Essa preocupação é muito legítima.
Outra razão para a relutância é medo da modernidade, já que eles vêem os jovens monges – especialmente os jovens lamas renascidos – que são expostos a cultura de consumo e abandonam os mosteiros. Por exemplo, na Índia a cultura de Bollywood é muito sedutora; os monges disciplinadores se esforçam muito para garantir que os monges não saiam para assistir filmes. A ciência é vista como parte do mundo moderno, parte desse aspecto sedutor. Então para quê trazer isso para dentro de casa?
Como essa relutância foi superada? Com o passar do tempo, as conversas do Mind and Life deixaram claro que há uma sinergia genuína, pelo menos no nível intelectual ou filosófico, entre aspectos do pensamento científico e o pensamento budista. Os programas A Ciência Encontra o Dharma e Ciência para Monges têm ensinado ciência – não como parte do currículo principal, mas como um programa separado extracurricular para um grupo seleto de monges – e esses programas têm sido bastante bem sucedidos. E neste momento está também ocorrendo uma mudança de geração na liderança dos mosteiros. Os novos abades são muito mais receptivos a ideia da educação científica, e reconhecem a necessidade de adaptação.
Em janeiro de 2013 houve uma conferência Mind and Life na Índia a pedido de Sua Santidade, e milhares de monges vieram a assistir. Em seus comentários de abertura, Sua Santidade falou sobre a importância de assegurar uma compreensão adequada do lugar da ciência dentro da educação monástica. A finalidade principal do sistema monástico é continuar a tradição clássica. A ciência não é introduzida para substituí-la, mas para ajudar a aperfeiçoá-la. Os monges não devem se distrair enfatizando demasiadamente o componente científico de sua educação, em termos de esforço e tempo. Dessa forma Sua Santidade compreende que isso precisa ser feito com habilidade.
Você fez uma boa defesa de como a ciência e o budismo deviam ser vistas como compatíveis. Então agora me pergunto como você poderia responder a uma observação feita pelo filósofo da ciência francês Michel Bitbol de que “a distribuição do que conta como conhecimento na ciência e no budismo é inversa.” Não é verdade que no budismo a ignorância é a crença na estabilidade e constância das coisas (elas não mudarem de um momento para o outro), em propriedades intrínsecas que possuam, ou que existam independentemente de observadores e umas das outras? Mas estas ideias, Bitbol aponta, “são exatamente o que se usa para fazer o trabalho cotidiano da ciência.” Eu concordaria com Michel Bitbol que a maioria dos cientistas provavelmente opera a partir desse tipo de pressuposição, que um budista realmente reconheceria como deludida. Mas há outros cientistas com uma visão muito mais pragmática do que fazem. Estes compreendem que tratam de construtos que eles mesmos desenvolveram. Os construtos são úteis para produzir certas previsões e experimentos, o que então permite que se faça certas coisas que não se podia fazer antes. Então há cientistas que tomam seus construtos não como representando “o que realmente está lá”, mas mais no sentido de um modelo de trabalho que os ajuda a afinar a compreensão.
E mesmo do ponto de vista científico, o que queremos dizer por “verdade” é uma questão problemática. Há muito debate na filosofia da ciência com relação ao status das verdades científicas. A maioria dos cientistas mantém um ponto de vista universalista e absolutista em que a “verdade é verdade independente da perspectiva”. Mas outros assumem a alternativa, porque a própria historia da ciência mostra que o que se considerava verdade numa geração veio a ser modificado mais tarde. Estes cientistas dirão que a ideia de que algo é verdadeiro não importando quem observa ou independente de qualquer estrutura não faz sentido. Algo pode ser dito verdadeiro apenas em termos de uma estrutura particular. É por isso que no budismo a verdade e a falsidade são consideradas dentro da estrutura da realidade convencional, que levam em conta os fundamentos da linguagem, do consenso compartilhado, e assim por diante. Quando falamos de verdade última, temos então a vacuidade, que é sempre caracterizada negativamente. Não é possível dizer nada sobre seus atributos na linguagem de objetos e propriedades.
É possível que a visão de mundo budista tenha algo de valor para oferecer ao ocidente, exatamente nestas formas em que é incompatível com ou diferente da ciência? Creio que o ponto que Michel Bitbol está levantando sobre o desafio final do budismo – ou a questão cética que o budismo levanta sobre a reificação de algum tipo de constituinte último e absolutamente indivisível da realidade – pode ser desestabilizadora para a empreitada científica. A ciência opera a partir do pressuposto de que se pode construir conhecimento sobre o que outros fizeram antes, e que embora talvez nunca se obtenha uma imagem completa da coisa toda, sempre se está chegando mais perto dessa imagem. O budismo de forma geral – e particularmente a filosofia Madhyamaka (Caminho do Meio) – questiona a própria validade dessa noção. Então, nesse sentido, o budismo pode de fato desafiar a empreitada científica como um todo.
Por outro lado, podemos ter uma compreensão da ciência que seja mais pragmática. Podemos vê-la como uma ferramenta – uma entre tantas outras – que ajuda os seres humanos a ter mais compreensão do mundo e do relacionamento com ele, e através da qual os conhecimentos deduzidos podem levar à compreensão de como as coisas funcionam. Então não é necessário fazer o tipo de compromisso ontológico que é problemático para os budistas.
Outro desafio que o budismo pode oferecer é uma visão diferente da natureza humana. Por exemplo, se você olhar particularmente para o budismo mahayana – e especialmente para o budismo do leste asiático ou as formas Kagyu e Nyingma do budismo tibetano – há essa pressuposição de que a natureza básica da mente não só é pura, mas boa e iluminada. Há de fato um Buda dentro de você; você só não sabe disso. A meditação se apresenta para nos ajudar a descascar as camadas que obscurecem a expressão desse Buda, mas ele já está lá completo – não é preciso cultivá-lo.
Nem todas as tradições budistas fazem essa afirmação. Por exemplo, na tradição tibetana os Gelugpas não assumem esse pressuposto. Os Gelugpas aceitam que a natureza essencial da mente é pura. Mas compreendem que essa pureza no sentido de “não ser deludida” – não no sentido de ser “boa” ou “compassiva”. Para eles todas as qualidades da iluminação estão presentes na forma de uma semente, que precisa ser cultivada. Então não é só uma questão de remover todas as camadas que ocultam um Buda verdadeiro que já existe dentro de você. É preciso cultivar deliberadamente essa semente, uma vez que natureza básica da mente é neutra – nem boa nem má.
Mas aquela visão da natureza humana como essencialmente boa pode ser problemática para a ciência, porque no fim a compreensão científica da senciência é baseada na teoria evolucionária. A evolução é a estrutura definitiva de explicação sob a qual tudo que diz respeito ao comportamento e a experiência humana necessariamente se referem. E dentro da estrutura evolucionária, não faz sentido pensar que esse tipo de Buda brilhante exista dentro de você.
Porque isso significaria que somos basicamente altruístas? E isso vai contra uma compreensão da evolução segundo a qual cada está aí para defender a si próprio? Sim, embora já exista algum reconhecimento crescente na ciência de que o modelo egoísta da natureza humana pode ter sido um pouco exagerado. De toda forma, conceitos como Buda interior estão em atrito com pressupostos científicos.
Enfim, creio que outra área onde haverá um bloqueio enorme é com relação a natureza da consciência. Alguns filósofos acreditam que a ciência nunca será capaz de produzir uma explicação da consciência, e é por isso que chamam isto de “problema difícil”. A não ser que a ciência como a conhecemos mude, não acredito que ela seja capaz de produzir uma descrição da consciência. Seu paradigma inteiro está voltado para uma perspectiva de terceira-pessoa. E dentro desse paradigma, como capturar o caráter de primeira pessoa da consciência? Podemos nos aproximar cada vez mais, mas como chegar a uma posição onde se pode descrever o caráter da experiência da subjetividade de uma maneira total? Que tipo de linguagem se vai usar? A ciência precisa capturar esse caráter de primeira-pessoa da consciência em algum tipo de construto científico, mas a linguagem da ciência é toda orientada para a terceira-pessoa. Todos os modelos da ciência se embasam em um olhar de fora para dentro. É uma linguagem orientada ao objeto e uma descrição orientada ao objeto. E a consciência tem, além disso, a capacidade de estar ciente de si própria. O enfoque de terceira pessoa jamais conseguirá descrever isso.
Em algum sentido, os cientistas compreendem que nesse momento não há nenhuma evidência para seu ponto de vista materialista, e ao mesmo tempo a maioria deles concorda que se trata de um mero pressuposto regulador. Precisam desse pressuposto para progredir no trabalho. Todo o trabalho atual em neurociência está baseado na afirmação de que a consciência, no fim das contas, está no cérebro. Então acredito que esta é uma área em que em algum momento precisará haver uma ruptura.
Por outro lado, se mantivermos a concepção da ciência como a descrevi ainda agora, tendo um escopo limitado, então não surgiria um problema. Apenas se reconheceria essa questão como uma das coisas fora do domínio da investigação científica. Aí não há contradição.
Linda Heuman é uma editora colaboradora da Tricycle.
A tradução da matéria foi feita por Padma Dorje, praticante budista e autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos. Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org.
Abaixo, confira algumas palestras e entrevistas com o Thupten Jinpa, todas em inglês sem tradução para o português.
”Translating The Dalai Lama”, entrevista para OnBeing.
Conversations on Compassion: Thupten Jinpa
The Science of Compassion: Origins, Measures, and Interventions
Buddhism and Science: How Far Can the Dialogue Proceed?
Flourish Thupten Jinpa Lecture