A vida é dura. Aqui estão seis maneiras de lidar com isso. Norman Fischer

Um antigo conjunto de aforismos budistas nos oferecem seis técnicas poderosas para transformar as dificuldades da vida em benefício e caminho para o despertar. O professor zen Norman Fischer guia-nos por elas. Ilustrações de Keith Abbott.

Existe um antigo ditado Zen que diz: o mundo inteiro está de cabeça para baixo. Em outras palavras, o modo como o mundo aparenta ser do ponto de vista comum ou convencional é praticamente o oposto da forma como o mundo realmente é. Existe uma história que ilustra isso.

Havia um mestre Zen que era chamado de Roshi Ninho de Pássaro [Roshi na tradição Zen significa “velho mestre”] porque ele meditava dentro de um ninho de águia no topo de uma árvore. Ele se tornou bastante famoso por conta dessa prática arriscada. Uma vez, o poeta Su Shih (que também era um oficial do governo) da Dinastia Song foi visitá-lo e, parado em pé muito abaixo de onde o mestre meditava, perguntou que tipo de espírito do mal o havia possuído que o fazia viver de forma tão perigosa. O roshi respondeu: “Você chama isso de perigoso? O que você está fazendo é muito mais perigoso!” Viver normalmente no mundo, ignorando a morte, a impermanência e a derrota, as perdas e o sofrimento, como nós rotineiramente fazemos, como se isso fosse um modo normal e seguro de se viver, é na realidade muito mais perigoso do que subir em um galho de árvore para meditar.

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Por mais que pareça natural e compreensível tentar evitar as dificuldades, isso na verdade não funciona. Nós achamos que faz sentido nos protegermos da dor, mas nossa autoproteção acaba por nos causar dores mais profundas. Nós achamos que precisamos nos agarrar ao que temos, mas esse próprio ato de agarrar nos faz perder o que temos. Nós estamos apegados ao que gostamos e tentamos evitar o que não gostamos, mas não conseguimos manter o objeto que nos atrai e não conseguimos evitar os objetos que não desejamos.

Então, embora possa parecer contraintuitivo, evitar as dificuldades da vida na verdade não é o caminho de menor resistência; esse é um meio perigoso de se viver. Se você quer ter uma vida plena e feliz, em tempos bons e ruins, você deve se acostumar com a ideia de que encarar o infortúnio de forma direta é melhor do que tentar escapar dele.

Não se trata de focar as dificuldades da vida com austeridade. É simplesmente a forma mais suave possível de acessar a felicidade. É claro que quando pudermos evitar as dificuldades nós o faremos. Pode ser que o mundo esteja de cabeça para baixo, mas nós ainda temos que viver nesse mundo de cabeça para baixo e temos que ser práticos nessas condições. O ensinamento sobre como transformar as circunstâncias difíceis em caminho não nega isso. O que eles apontam é a atitude subjacente de ansiedade, medo e de mentalidade estreita que faz com que tenhamos vidas infelizes, cheias de medo e limitadas.

Transformar circunstâncias difíceis em caminho está associado à prática da paciência. Existem seis frases de treinamento da mente (lojong) conectadas a isso:

  1. Transforme todos os contratempos em caminho.
  2. Atribua todas as culpas a um só.
  3. Seja grato a todos.
  4. Veja a confusão como o Buda e pratique a vacuidade.
  5. Faça o bem, evite o mal, aprecie sua loucura, reze por ajuda.
  6. O que quer que encontre é o caminho.

 

1. Transforme todos os contratempos em caminho.

O primeiro aforismo, “Transforme todos os contratempos em caminho”, soa completamente impossível à primeira vista. Como você faria isso? Quando as coisas vão bem nós nos alegramos — nos sentimos bem e temos sentimentos espirituais positivos — mas assim que coisas ruins começam a acontecer, nós ficamos depressivos, desmoronamos, ou, na melhor das hipóteses, seguramos firme e lidamos com a situação. Nós certamente não transformamos os contratempos em caminho. E por que o faríamos? Nós não queremos que os contratempos existam; nós queremos que eles desapareçam o mais rápido possível.

“Nós não estamos falando sobre milagres. Nós estamos falando sobre treinar a mente.”

Aqui, o aforismo nos diz que nós podemos transformar tudo isso em caminho. Fazemos isso praticando a paciência, minha qualidade espiritual insuperavelmente favorita. Paciência é a capacidade de dar boas-vindas às dificuldades quando elas chegam, com um espírito de força, resistência, tolerância e dignidade, ao invés de medo, ansiedade e fuga. Nenhum de nós gosta de ser oprimido ou derrotado, no entanto conseguir suportar a opressão e a derrota com força, sem lamentar, nos enobrece. A paciência torna isso possível. Na nossa cultura, nós achamos que a paciência é passiva e sem glamour; outras qualidades como amor e compaixão ou insight são muito mais populares. Mas quando tempos difíceis fazem com que o amor se desgaste e se torne aborrecimento, que a compaixão seja vencida pelo medo e que o insight evapore, aí então a paciência começa a fazer sentido. Para mim ela é a mais substancial, a mais útil e a mais confiável de todas as qualidades espirituais. Sem ela, todas as outras qualidades se tornam instáveis.

A prática da paciência é bastante simples. Quando a dificuldade surgir, perceba as formas óbvias e não tão óbvias com as quais nós tentamos evitá-la — as coisas que falamos e fazemos, os jeitos sutis com que nossos corpos recuam e tensionam quando alguém diz ou faz algo para nós que não gostamos.

Praticar a paciência é notar essas coisas e manter-se ferozmente presente com elas (respirar um pouco ajuda; voltar para a plena consciência do corpo ajuda) ao invés de reagir a elas. Nós nos pegamos fugindo e invertemos o curso, voltando-nos para as emoções aflitivas, entendendo que elas são naturais em tais circunstâncias — e que evitá-las não irá funcionar. Nós evitamos nossa agitação em relação a essas emoções e então permitimos que elas fiquem presentes com dignidade. Nós nos perdoamos por tê-las,  perdoamos (pelo menos provisoriamente) quem quer que estejamos culpando por nossas dificuldades, e com esse perdão espontâneo surge uma sensação de alívio e até mesmo de gratidão.

Isso pode soar um pouco forçado, mas não é. Nós não estamos, no final das contas, falando sobre milagres; nós não estamos falando sobre afirmações ou sobre desejar o impossível. Nós estamos falando sobre treinar a mente. Se você meditasse diariamente, trazendo à mente essa frase, “Transformar todos os contratempos em caminho”, na sua meditação formal, escrevendo-a, repetindo muitas vezes ao dia, então você poderia ver que pode acontecer uma mudança em seu coração e em sua mente exatamente da forma como estou descrevendo. O modo como você espontaneamente reage em tempos difíceis não é imutável.

A sua mente e o seu coração podem ser treinados. Uma vez que você tenha uma única experiência de reagir de forma diferente, você se sentirá encorajado, e, em uma próxima vez, será mais provável que você se pegue pela mão. Quando surgir alguma dificuldade, você treinará para parar de dizer: “Droga! Por que isso teve que acontecer?!” para começar a dizer: “Sim, claro, isso é assim mesmo. Agora eu vou olhar para isso, vou praticar com isso, vou atravessar essa confusão em direção à gratidão.”

Isso porque você terá compreendido que coisas ruins irão acontecer porque você está vivo e não morto, porque você tem um corpo humano e não algum outro tipo de corpo, porque este é um mundo físico e não um mundo etéreo, e porque todos nós juntos como pessoas somos o que somos. Isso é o mais natural, o mais normal, a coisa mais inevitável no mundo. Não se trata de um erro e não é culpa de ninguém. E nós podemos fazer uso disso para aprofundarmos nossa gratidão e nossa compaixão.

 

2. Atribua todas as culpas a um só.

O segundo aforismo sobre transformar circunstâncias difíceis é famoso: Atribua todas as culpas a um só. Esse também é bem contraintuitivo, bem de ponta-cabeça. O que ele diz é: o que quer que aconteça, nunca culpe alguém ou algo; sempre culpe apenas você mesmo.

Isso é complicado, porque não é exatamente nos culpar em um sentido comum. Nós sabemos perfeitamente bem como fazer para nos culparmos. Nós temos feito isso durante todas as nossas vidas. Nós não precisamos de aforismos budistas para nos mandar fazer isso. Mas claramente não é isso que significa.

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“Atribuir todas as culpas a um só” significa que você não pode culpar ninguém pelo o que acontece. Mesmo se for de fato erro de alguém, você não pode realmente culpá-lo. Algo aconteceu, e já que aconteceu, não há nada mais a ser feito a não ser tirar algum proveito disso.

Em tudo o que acontece, seja o desastre que for, e seja quem for que tenha falhado, existe um benefício potencial e sua tarefa é achá-lo. Atribuir todas as culpas a um só significa que você assume total responsabilidade por tudo o que surge em sua vida.

Isso é muito ruim, não era isso que eu queria, isso vai causar muitos outros problemas. Mas o que eu vou fazer com isso? O que eu posso aprender com isso? Como posso fazer uso disso no caminho? Essas são as questões a serem feitas, e respondê-las é responsabilidade totalmente sua. Além do mais, você consegue respondê-las; você tem o poder e a capacidade para isso. Atribuir todas as culpas a um só é uma prática formidável para cortar o antigo hábito humano de reclamar e lamentar, e de achar, do outro lado disso, a força para transformar todas situações em caminho. Aí está. É isso. Não há outro lugar para ir a não ser para o próximo momento. Repita essa frase quantas vezes for necessário.

 

3. Seja grato a todos.

Seja grato a todos: esta é muito simples mas bastante profunda.

Minha esposa e eu temos um neto. Nós fomos visitá-lo quando ele estava com mais ou menos seis semanas de vida. Ele não conseguia fazer nada, nem mesmo manter sua cabeça firme, muito menos se alimentar. Se ele estivesse em apuros, ele não conseguiria pedir ajuda. Impossibilitado de fazer qualquer coisa por conta própria, ele era completamente dependente dos cuidados e constante atenção de sua mãe. Ela o alimentava, ninava, tentava entender e antecipar suas necessidades e cuidava de tudo, incluindo do seu xixi e cocô.

Nós já estivemos todos exatamente nessa situação e alguém teve que cuidar completamente de nós do mesmo modo. Sem 100% de cuidado de outra pessoa, ou talvez de muitas, não estaríamos aqui. Estes certamente são motivos para sentirmos gratidão a outras pessoas.

“Não poderia haver o que chamamos de uma pessoa sem outras pessoas.”

Mas nossa dependência dos outros não termina aí. Nós não crescemos e então nos tornamos independentes. Agora nós podemos manter a cabeça firme, preparar o almoço, limpar nosso bumbum, e parece que não precisamos que nossa mãe e nosso pai cuidem de nós — então pensamos que somos autônomos.

Mas pense nisso por um momento. Você cultivou o alimento que te sustenta todos os dias? Você produziu o carro ou o trem que te leva para o trabalho? Você costurou suas roupas? Construiu sua própria casa com a madeira que você serrou?

Você precisa dos outros todos os dias, em cada momento da sua vida. É graças à presença e aos esforços dos outros que você tem as coisas que precisa para seguir, e que tem amizade, amor e sentido para a vida. Sem os outros você não é nada.

Nossa dependência dos outros é ainda muito mais profunda que isso. Para começar, de onde vem a pessoa que nós acreditamos ser? Além dos genes, apoio e cuidados dos nossos pais, e da sociedade e de tudo que ela produz para nós, existe toda uma rede de condições e circunstâncias que intimamente nos faz ser o que somos. O que dizer de seus pensamentos e sentimentos? De onde eles vêm? Sem palavras para se pensar, nós não pensamos, nós não temos nada como um sentido de um eu como nós entendemos, e nós não temos as emoções e sentimentos que são moldados e definidos por nossas palavras. Sem a miríade de circunstâncias que nos proporcionaram as oportunidades para a educação, fala, conhecimento e trabalho, nós não estaríamos aqui da maneira que estamos.

Então é literalmente o caso de que não poderia haver o que chamamos de uma pessoa sem outras pessoas. Nós podemos dizer “pessoa” como se pudesse haver tal coisa autônoma, mas na verdade isso não existe. Não há tal coisa como uma pessoa — há apenas pessoas que cocriaram umas às outras durante a longa história da nossa espécie. A ideia de uma pessoa independente, isolada e atomizada é impossível. E aqui não estamos falando apenas sobre nossa necessidade dos outros no âmbito prático. Nós estamos falando sobre nosso mais íntimo sentido de identidade. Nossa consciência de nós mesmos nunca é independente dos outros.

Isso é o que não-eu ou vacuidade significa no ensinamento budista: que não existe tal coisa como um indivíduo isolado. Embora nós possamos dizer que exista e embora nós pensemos que exista, e apesar de muitos de nossos pensamentos e motivações aparentarem estar baseados nessa ideia, na realidade essa é uma ideia errada. Literalmente todos os pensamentos em nossas mentes, cada emoção que sentimos, cada palavra que sai de nossas bocas, tudo o que precisamos para o nosso sustento material a cada dia, vêm através da bondade dos outros e da interação com os outros. E não apenas outras pessoas mas não-humanos também, literalmente toda a Terra, o solo, o céu, as árvores, o ar que respiramos, a água que bebemos. Nós não apenas dependemos de tudo isso — nós somos tudo isso e tudo isso é nós. Isso não é uma teoria, não é um ensinamento religioso. É simplesmente a mais nua realidade.

Então, praticar “Seja grato a todos” é treinar esse profundo entendimento. É cultivar todos os dias esse senso de gratidão, a mais feliz de todas as atitudes. Infelicidade e gratidão simplesmente não podem existir em um mesmo momento. Se você se sente grato, você é uma pessoa feliz. Se você se sente grato por aquilo que é possível para você neste momento, sem importar quais são os desafios, se você se sente grato simplesmente por estar vivo, por ter a capacidade de pensar, de sentir, de manter-se em pé, sentar, andar, falar — se você se sente grato, você é feliz e você maximiza suas chances de bem-estar e de partilhar a felicidade com os outros.

 

4. Veja a confusão como o Buda e pratique a vacuidade

O quarto aforismo, “Veja a confusão como Buda e pratique a vacuidade”, requer um pouco de explicação. Isso vai além do nosso entendimento convencional ou relativo, em direção a um sentido mais profundo do que nós somos. Embora convencionalmente eu seja eu e você seja você, de uma perspectiva absoluta, aos olhos de Deus, se preferir, não há o eu e não há o outro. Há apenas o existir, e existe apenas amor, compartilhado por si só calidamente e sem impedimentos. Só acaba parecendo haver um eu e você para nós porque é assim que nossas mentes e aparatos sensoriais funcionam. Esse amor sem limites é a prática da vacuidade.

“Veja a confusão como Buda e pratique a vacuidade” significa que nós nos situamos de forma diferente em relação à nossa confusão humana comum, à resistência, à dor, ao medo, à mágoa, e assim por diante. Ao invés de desejar que essas emoções e reações por fim desapareçam e que nos livremos delas, nós as levamos a um nível mais profundo. Nós olhamos para sua realidade subjacente.

O que realmente está acontecendo quando estamos chateados ou com raiva? Se pudéssemos nos desprender por um momento do ato de culpar, do desejo e da auto-piedade e então olhar para a base real do que está de fato acontecendo, o que veríamos? Nós veríamos o tempo passando. Nós veríamos as coisas mudando. Nós veríamos a vida surgindo e passando, vindo de lugar nenhum e indo para lugar nenhum. Momento a momento, o tempo escapa e as coisas se transformam. O presente se torna o passado — ou ele se torna o futuro? E, ainda assim, no momento presente não há passado nem futuro. Assim que examinarmos o “agora”, ele terá ido embora. E nós não temos como saber como ou para onde ele vai.

Isso pode soar como filosofia, mas não parece filosofia quando você ou alguém próximo a você está dando à luz. Se nesse momento você está sentado na sala de espera ou está você mesma, em meio à dor e à alegria, está dando à luz — nesse primeiro momento de explosão, você fica maravilhada. Essa vidinha que você achava que estava vivendo, com suas várias questões e problemas, desaparece completamente frente ao milagre da vida visceral brotando na frente dos seus olhos. Ou se você está presente quando alguém deixa este mundo e entra na morte (se é que existe um lugar para entrar), você sabe então que esse vazio não é somente filosofia. Você pode não saber o que é, mas você saberá que é real. Você sabe que essa realidade é poderosa e faz com que você olhe para a sua vida, e para a vida como um todo, de forma bastante diferente. Surge um novo contexto que é mais que um pensamento, mais que um conceito. Quando você olha para seus problemas humanos diários à luz do nascimento e da morte, você está praticando esse aforismo. Cada momento da sua vida, até mesmo (e talvez especialmente) seus momentos de dor, desespero ou confusão, é um momento de buda.

Então esteja presente em momentos de nascimento e de morte sempre que possível e aceite esses momentos como presentes, como oportunidades para a profunda prática espiritual. Mas mesmo quando você não estiver participando desses momentos de pico, você pode repetir e rever essa frase, e você pode meditar sobre ela. E quando sua mente estiver emaranhada na confusão, você pode respirar e tentar escorregar para o que está por debaixo do desejo e da confusão. Você pode perceber que nesse exato momento o tempo está passando, as coisas estão se transformando e que esse fato impossível é profundo, bonito e alegre, mesmo que você continue com sua angústia.

 

5. Faça o bem, evite o mal, aprecie sua loucura, reze por ajuda.

Agora os aforismos nos trazem de volta à terra. Se os ensinamentos espirituais existem para realmente transformar nossas vidas, eles precisam oscilar (como esses aforismos fazem) entre dois níveis, o profundo e o mundano. Se a prática é muito profunda, isso não é bom. Nós estamos cheios de insights maravilhosos e elevados, mas nos falta a habilidade de atravessar o dia com alguma graciosidade, ou de nos relacionarmos com os problemas e as pessoas na vida comum. Nós podemos ser sublimemente metafísicos, tocantemente compassivos, e ainda sermos incapazes de nos relacionarmos com um ser humano normal ou com um problema mundano. Esse é o momento em que o mestre Zen nos golpeia com seu bastão e diz: “Lavem suas tigelas! Matem o Buda!”.

Por outro lado, se a prática é muito mundana, se nós nos tornamos demasiadamente interessados nos detalhes de como nós e os outros nos sentimos e o que nós ou eles precisam ou querem, então a natureza elevada de nossos corações não estarão acessíveis e nós afundaremos com o peso das obrigações, dos detalhes e das preocupações do cotidiano. Este é o momento em que o mestre diria: “Se você tiver uma bengala, eu te darei apoio; se você precisar de uma bengala, eu a tirarei de você.” Nós precisamos tanto da filosofia religiosa profunda quanto das ferramentas práticas para o dia-a-dia. Essa necessidade dupla, de acordo com as circunstâncias, parece sempre acompanhar o ser humano. Nós estivemos contemplando a realidade como o Buda e praticando a vacuidade. Isso foi importante. Agora é hora de voltar para a terra.

Primeiro, faça o bem. Tenha ações positivas. Diga oi para as pessoas, sorria para elas, diga feliz aniversário, sinto muito pela sua perda, há algo que eu possa fazer para ajudar? Estas coisas são gentilezas sociais comuns, e as pessoas dizem isso o tempo todo. Mas praticá-las intencionalmente é trabalhar um pouco mais duro para que sejam realmente sinceras. Nós genuinamente tentamos ser úteis, gentis e atenciosos de formas simples e grandiosas todos os dias do jeito que conseguirmos.

Segundo, evite o mal. Isso significa prestar mais atenção em nossas ações de corpo, fala e mente, notando quando nós fazemos, falamos ou pensamos coisas que são prejudiciais ou indelicadas. Tendo chegado até aqui com o treinamento da mente, nós não temos como não notar nossos momentos ordinários ou maldosos. E quando notamos, nos sentimos mal. No passado nós poderíamos ter dito para nós mesmos: “Eu só disse isso porque ela realmente precisa se endireitar. Se ela não tivesse feito isso comigo, eu não teria dito aquilo para ela. Foi realmente culpa dela.” Agora nós vemos que essa é uma forma de nos protegermos (afinal de contas, nós acabamos de praticar “Atribua todas as culpas a um só”) e almejamos aceitar a responsabilidade pelas nossas ações. Então nós prestamos atenção nas coisas que falamos, pensamos e fazemos — não obsessivamente, não de um modo perfeccionista, mas apenas naturalmente e com generosidade e compreensão — e finalmente nós nos purificamos de boa parte dos pensamentos e palavras pouco generosos.

As duas últimas práticas deste aforismo, que eu interpretei como “Aprecie sua loucura” e “Reze por ajuda”, têm tradicionalmente relação com fazer oferendas para dois tipos de criaturas: demônios (seres que estão te impedindo de manter-se determinado em sua prática) e protetores do Darma (seres que estão te ajudando a permanecer sincero na sua prática). Mas para nossos propósitos neste momento é melhor vê-las de forma mais geral.

Nós podemos entender as oferendas a demônios como “aprecie sua loucura”. Reverencie suas próprias fraquezas, sua própria loucura, sua própria resistência. Congratule-se por elas, as aprecie. Isso é de fato uma maravilha, o quanto nós somos egoístas, confusos, preguiçosos, ressentidos e assim por diante. Nós adquirimos essas coisas com honestidade. Nós fomos bem treinados para manifestá-las a cada momento. Esse é o prodígio da vida humana transbordando, é o efeito da nossa criação, da nossa sociedade, que nós apreciamos até mesmo quando estamos tentando domá-las e gentilmente convencê-las a manifestar o bem. Então nós fazemos oferendas aos demônios dentro de nós e desenvolvemos um senso de apreciação bem-humorada de nossa própria estupidez. Estamos em boa companhia! Podemos rir de nós mesmos e de todo o resto.

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Ao fazermos oferendas para os protetores do Darma, nós rezamos a qualquer força, que nós acreditamos ou não, para nos ajudar. Quer imaginemos uma deidade ou um Deus ou não, nós podemos buscar algo além de nós mesmos e além de qualquer coisa que possamos descrever objetivamente e pedir por ajuda e força para o nosso trabalho espiritual. Nós podemos fazer isso em meditação, com palavras silenciosas ou em voz alta, verbalizando nossas esperanças e desejos.

A oração é uma prática poderosa. Não é uma questão de abandonar a nossa própria responsabilidade. Nós não estamos pedindo para sermos liberados da necessidade de agir. Nós estamos pedindo ajuda e força para fazer o que nós sabemos que precisamos fazer, com o entendimento de que embora nós precisemos dar o nosso melhor, qualquer coisa benéfica que surja em nosso caminho não é realização nossa, produção pessoal nossa. Isso vem de uma esfera mais ampla do que podemos controlar. Na verdade, é contraproducente conceber a prática espiritual como uma tarefa que vamos realizar sozinhos. Afinal de contas, já não praticamos o “Seja grato a todos”? Nós já não aprendemos que não há como fazer nada sozinho? Afinal de contas, estamos treinando uma prática espiritual e não uma auto-ajuda pessoal (embora esperemos que isso nos ajude, e provavelmente ajudará). Então, não apenas faz sentido rezar por ajuda, não apenas aparenta ser poderosamente certo e bom fazê-lo, isso é importante também para que possamos lembrar que não estamos sozinhos e que não podemos fazer nada sozinhos.

Seria natural esquecermos este ponto, cairmos no hábito de imaginarmos uma autossuficiência ilusória. As pessoas frequentemente dizem que budistas não rezam porque o budismo é uma tradição ateísta ou não-teísta, que não reconhece Deus ou um Ser Supremo. Tecnicamente isso pode estar correto, mas a verdade é que budistas rezam e sempre rezaram. Eles rezam para toda uma panóplia de budas e bodisatvas. Até mesmo zen-budistas rezam. Rezar não requer uma crença em Deus ou deuses.

 

6. O que quer que encontre é o caminho

Esse aforismo resume os outros cinco: o que quer que aconteça, bom ou ruim, faça com que isso seja parte da sua prática espiritual.

Na prática espiritual, que é a sua vida, não há intervalos nem erros. Nós seres humanos estamos sempre realizando uma prática espiritual, saibamos disso ou não. Você pode pensar que perdeu o fio de sua prática, que você estava indo muito bem e então a vida ficou muito ocupada e complicada e você perdeu o rumo do que estava fazendo. Você pode se sentir mal por causa disso, e esse sentimento se alimenta de si mesmo, e torna-se cada vez mais difícil de voltar para o trilho.

Mas isso é apenas o que você pensa; não é isso que está acontecendo. Uma vez que você começa a praticar, você está sempre prosseguindo, porque tudo é prática, até mesmo os dias ou as semanas ou as vidas inteiras em que você esqueceu de meditar. Mesmo assim, você está praticando, porque é impossível se perder. Você está constantemente sendo achado, sabendo disso ou não. Praticar esse aforismo é saber que, não importa o que esteja acontecendo — não importa quão distraído você pense que esteja, não importa o quanto você se sinta um indivíduo terrivelmente preguiçoso que perdeu completamente o rumo de suas boas intenções e está agora irremediavelmente perdido — ainda assim você tem a responsabilidade e a capacidade de pegar toda essa negatividade, circunstâncias adversas e dificuldades e transformá-las em caminho.

 

© 2013 by Norman Fischer. Excerpted from “Training in Compassion: Zen Teachings on the Practice of Lojong.” Reprinted by arrangement with Shambhala Publications. Publicado em Lions Roar

Tradução: Alexandre Y. Okamoto e Jeanne Pilli

 

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  • “não importa o que esteja acontecendo — não importa quão distraído você pense que esteja, não importa o quanto você se sinta um indivíduo terrivelmente preguiçoso que perdeu completamente o rumo de suas boas intenções e está agora irremediavelmente perdido — ainda assim você tem a responsabilidade e a capacidade de pegar toda essa negatividade, circunstâncias adversas e dificuldades e transformá-las em caminho.” isto é néctar em dias como hoje!