Como praticar com cultura e entretenimento
O budismo consiste de uma série de treinamentos que visam deixar a mente receptiva para uma análise final da realidade – que irá não só suplantar todas as aflições, mas revelar o estado desperto e as qualidades compassivas de um Buda.
Ainda que talvez não seja totalmente inexistente, a ideia de treinamento da mente não é comum a outras tradições. Tanto essa ideia não é comum que é preciso sempre lembrarmos que o objetivo de nosso contato com o budismo, e de todas as práticas budistas que fazemos, não importa a aparência externa que elas tenham, é gerar essa imparcialidade radical, essa ausência de viés absoluta – que requer que desmanchemos os hábitos que nos aprisionam a pensar, agir e ter emoções de forma parcial, enviesada. De fato, esse é o único requisito: que abandonemos o que é supérfluo, e usemos nossa liberdade completamente. Para este fim há uma pletora de métodos.
Porém, isso nem sempre é óbvio ou fácil, particularmente porque nesse momento nos encontramos totalmente enredados em hábitos que não reconhecemos, não entendemos, e cuja origem nos é obscura. Muitas vezes agrupamos esses hábitos e os rotulamos como “eu”, e eles superficialmente até parecem prover certo senso de identidade. Porém, segundo os ensinamentos e a verificação empírica, além desse rótulo em si ser frívolo e fruto de mera insegurança, os próprios hábitos são temporários, falsos e fonte de sofrimento – e é só reconhecendo nossos feitores e carcereiros que podemos nos libertar deles.
Um dos aspectos do treinamento da mente é o que no budismo se chama de sila, e que é algumas vezes traduzido como “ética”. Apesar de nossas preconcepções sobre esse termo, e nossas noções de moralismo judaico-cristão, para o budismo é muito importante entender a ética como também um treinamento da mente. No budismo as pessoas não praticam obediência ao Buda ou a estrutura hierárquica do budismo, mas sim o exame das próprias mentes e dos resultados das próprias ações, e métodos para vencer a resistência natural a mudar hábitos desinteressantes. Pessoas que dão mais ênfase a seguir regras do que treinar a mente ou não prejudicar os outros certamente não estão praticando o budismo da melhor forma.
O que não quer dizer que certas prescrições não tenham seu lugar. E podemos distinguir duas classes mais gerais de prescrição. Há prescrições éticas que são “naturais”, isto é, visam evitar que criemos impactos negativos (sofrimento) para outros seres – coisas como não matar, não roubar, ou não usar a sexualidade para causar sofrimento. Estas prescrições são universais (não são tidas como culturais ou pessoais), e assumidas por todos que tomam refúgio no Buda, isto é, que se comprometem formalmente com seus métodos. Mesmo em meio a essas prescrições naturais e universais, o foco principal segue sendo examinar as próprias ações e treinar a mente – e não meramente obedecer ao que está na lista.
Mas além desse conjunto mais universal de prescrições há um segundo tipo que pode ser dito “artificial”. Elas funcionam apenas dentro do contexto de um treinamento específico da mente. Por exemplo, da prática de meditação, ou do contexto monástico. Se violadas, elas não prejudicam diretamente os seres ou a nós mesmos, mas dificultam nosso treinamento da mente – trata-se de um dano indireto.
Por exemplo, quando se está fazendo uma prática de meditação ao estilo de shamata (repousar em equilíbrio imperturbável), é especificado que não devemos nos mover durante o tempo designado para a prática formal. Caso nos movamos, no entanto, por acaso isso causará algum impacto negativo sobre os outros seres? Diretamente, provavelmente não, embora se possa dizer que ao se mover há efetivamente mais chance de, por exemplo, matar insetos inadvertidamente. Mas esse não é o ponto, a ideia não é brincar de estátua devido ao potencial de ser inadvertidamente violento apenas ao se movimentar. O ponto é que, como nos comprometemos com a prática ao começar a sessão, manter o compromisso deve ser reconhecido como parte pura e simples do treinamento da mente. É simplesmente coerência, ou honestidade para consigo. Há uma lógica para o treinamento em imobilidade em shamata, mas essa é uma lógica própria da prática – e podemos buscar entender os pormenores do porque disso, mas também podemos simplesmente aceitar a prática como um experimento e verificar por nós mesmos como, após seis meses de 5 minutos por dia, nossa mente verdadeiramente fica mais flexível e coerente.
Se precisarmos nos mexer, e acabarmos por nos mexendo, definitivamente devemos sentir desconforto por ter violado um compromisso que assumimos. É uma ideia errada confundir isso com culpa – culpa é quando se usa o erro contra si próprio. Saber que cometeu um erro é importantíssimo! Não precisamos nos surrar por isso, mas precisamos reconhecer quando, por qualquer motivo, não fizemos o que nos propomos a fazer. É normal, por exemplo, juntar as palmas perante uma visualização do Buda assumindo a falta: “não deu, precisei mover a perna”. É importante gerar essa mente que se compromete com o treinamento, e que, não sendo dura, ainda assim reconhece o que não é adequado.
É óbvio que há uma diferença enorme entre matar um ser ou mover o dedão durante uma prática. E, numa perspectiva “natural”, em que não se considera treinamentos, mover o dedão ou não mover é a coisa mais irrelevante do mundo. O budismo transforma esse detalhe numa coisa relevante apenas para revelar algo sobre o estado inflexível da mente nesse momento. A princípio pensamos que seguir todas essas regras arbitrárias é um processo de enrijecimento, mas, pelo contrário, é exatamente o que nos livra dos hábitos – e a própria profunda arbitrariedade aparente desses detalhes é que nos permite manter a liberdade perante o próprio método. O objetivo não é aprender a ficar imóvel como uma estátua, ou fazer rituais perfeitamente – essas profundas artificialidades são meros treinamentos da mente, e devem ser tratadas como tal. O que quer dizer se engajar nessas coisas com abertura e flexibilidade, mas também um senso de precisão e honestidade para consigo.
O que chamamos de “monge” é, também, na verdade, apenas um vasto conjunto desse tipo de “ética artificial”, que é puro treinamento da mente. A pessoa reconhece o valor no darma e deseja intensificar sua prática com esse estilo particular, então ela toma votos específicos – e para algumas pessoas funciona muito bem. Não é necessário ser um monge para praticar o darma, mas pode ser um caminho excelente caso alguém tenha esse tipo de inclinação.
Porém, em todo caso, é preciso reconhecer que a maioria dos votos monásticos, se quebrada, não prejudica diretamente os seres – prejudica o treinamento do monge, a imagem do budismo, e assim por diante. Isso não quer dizer que não seja grave, pelo contrário. Em certo sentido é prejudicar os seres imensamente, só que de forma indireta. Quebrar esses votos é diminuir a força de um ensinamento ou treinamento da mente que o Buda nos apresentou. É nesse sentido que o dano é causado. Um monge “quebrado” prejudica toda a sanga (comunidade de praticantes), o que significa prejudicar todos os seres – mas indiretamente, enfraquecendo a imagem dos ensinamentos que levam a liberação.
Em todos os casos a ética deve ser encarada em primeiro lugar como treinamento da mente. Mesmo no caso da ética dita “natural”, isto é, evitar prejudicar os outros como parte de simplesmente ser um ser humano decente, quando tomamos votos e direcionamos isso para o caminho budista, esse segundo nível – de puro treinamento da mente – se torna mais importante. Isso é assim porque vemos que não só estamos evitando prejudicar aquele ser naquela ocasião, mas treinando atenção e um hábito positivo para em todas as circunstâncias futuras agir da mesma forma cuidadosa.
Não só nos focamos em evitar prejudicar aquele ser, naquele momento, mas em nos beneficiar no longo prazo – para poder efetivamente não prejudicar e beneficiar os outros num prazo ainda maior. Protegemos aquele ser, mas protegemos ainda mais nossa mente, que vai proteger incontáveis seres num futuro incomensurável. Esse segundo aspecto é mais importante e deve ser frisado.
Num primeiro nível, seguimos princípios, mas num segundo nível, geramos hábitos, formamos um “caráter”. Um terceiro nível seria reconhecer a própria flexibilidade da mente como um valor inerente. Se a mente pode ser treinada, não é nem um treinamento ou outro que é mais importante, mas o próprio fato de que ela é plástica. Estes três treinamentos são geralmente encapsulados nos aspectos de corpo, fala e mente; isto é ética, cultivo (prática formal e no cotidiano, o que também é chamado de “meditação”) e sabedoria.
Em suma, evitar prejudicar, trazer benefícios, treinar a mente – cuja essência é ação com menos impacto negativo no mundo, geração de hábitos positivos e reconhecimento da flexibilidade da mente.
Cultura e entretenimento
Este assunto é controverso porque tendemos a sacralizar cultura e arte. E, de fato, estas características humanas apenas muito recentemente perderam, no ocidente, sua conexão diretamente religiosa.
O processo de secularização também em alguns casos se revelou ele próprio um buscar do sagrado fora da religião – então a arte, a partir dos românticos, e em muitos revivals assemelhados até hoje, substituiu as noções de assombro e sublime que eram particulares da experiência religiosa pela obra ou pelo artista. A epifania larga a Igreja e penetra a cultura através de James Joyce, e se alastra enfim até pela publicidade invasiva, memes e o binge watching. Numa eterna reciclagem de louvor e crítica, elevado e abjeto, alta cultura e o popular mais brega.
A arte nasceu como fetiche, e nunca deixou de sê-lo. O fetiche é um objeto a que entregamos nosso valor próprio. Então, com o fim da religião, efetivamente abandonamos Jesus Cristo por John Lennon, ou algo desse tipo – enquanto cultura. Claro, essa experiência não é tão universal como foi com o cristianismo e com as grandes religiões (que ainda existem e têm sua força, é claro), mas tendemos muitas vezes a buscar na arte o sentido que um dia foi papel da religião nos prover. Ou pelo menos tendemos a tratar a arte como alguma espécie de santuário da humanidade do “bom selvagem” ou como liberação política e pessoal perante um mundo opressivo.
É claro, além de um valor transcendente, a arte tem essa dimensão que tendemos a ver como degradada e que chamamos de “entretenimento”. É algo que efetivamente apenas ocupa nossa mente e nos distrai de questões mais amplas e de sentido. Reconhecemos também a existência disso, e como o atual viés econômico incentiva esse tipo de produção e consumo na forma de uma “indústria cultural”.
É como se o aspecto sublime e o aspecto teúrgico da religião tivessem seu contraponto na produção cultural. Essa transferência dos valores da religião ocorreu organicamente, e muitas vezes é absolutamente desavisado. Transferimos certas ânsias de uma instituição para uma ausência de instituição, e um mistério para outro mistério – mas nossas expectativas se mantém semelhantes.
Estritamente falando, categorizar a arte é entrar num labirinto sem saída – uma vez que o termo é “essencialmente contestável”. Um termo “essencialmente contestável” é algo cuja definição em si envolve necessariamente um debate sem solução, como “justiça” ou “filosofia”. Mas basicamente o que se está visando nesse artigo são engajamentos da mente com a produção de outras pessoas, e qual seria a posição do treinamento da mente budista quanto a isso – considerando uma cultura que provavelmente não é (e não será) homegeneamente budista, e as peculiaridades do treinamento da mente.
Cientificamente falando, esses engajamentos são uma forma evolucionária de aprendizado emocional. No caso de narrativas, o contar de histórias se torna uma forma de educação fundamental no ethos tribal, e assim por diante. Claro, definir “arte” dessa forma é atrair a crítica de um funcionalismo de que o conceito tem, em muitos casos, fugido. Mas essa é uma explicação comum para a existência da ficção.
E, em certo sentido mais profundo, a idolatria da arte faz sentido porque ela também nos revela algo sobre a flexibilidade cognitiva. O fato de que podemos penetrar mundos e viver sonhos mesmo dentro desse corpo, e acordados – e deliberadamente. Porém, essa é uma reflexão que só existirá se não formos simplesmente arrastados pelas experiências, mas conseguirmos impor uma meta-reflexão que é justamente incomum na mente sem treinamento.
Onde entra o budismo?
Na sessão anterior do texto fiz essa distinção entre ética natural e ética de treinamento da mente. Modo geral, usar nosso tempo para admirar a produção dos outros é uma questão de ética como treinamento da mente. É evidente que, a não ser no caso de uma negligência explícita de abuso no uso desse tempo (uma pessoa que não cuida do filho porque assiste muita série de TV, por exemplo), não há um impacto direto em consumir cultura. O impacto é geralmente bastante indireto.
O moralismo usual reconhece um tipo de impacto indireto na produção cultural que seria algo como destruição dos valores tradicionais (sexo e drogas) e aumento de violência. O budismo reconhece alguma possibilidade nisso – videogames sendo usados para treinar futuros militares, e mais do que treinar, deixa-los propensos a normalização da guerra e da violência. Um processo que é claro também normaliza o viés econômico e os sonhos e incentivos do viés econômico que domina nossa cultura – e que é o grande patrocinador da “indústria”. Porém, este não é talvez o ponto crucial para os budistas – isto é, o ponto crucial, a princípio, não seria medir que impacto certo conteúdo tem na sociedade, e sim medir que impacto o conteúdo tem no treinamento da própria mente.
E aqui temos uma dessas encruzilhadas que o ser contemporâneo muitas vezes se depara ao se relacionar com o budismo. Temos esse fetiche pela arte, temos a arte como valor transcendente e misterioso – mas no budismo a prioridade segue sendo justamente o treinamento da mente. Da mesma forma que com a encruzilhada da “falácia naturalista” – em que nossos impulsos biológicos seriam algo moralmente justificado por teorias como a evolução – tendemos a não querer desafiar a suposta liberdade de nos engajarmos com qualquer conteúdo que seja.
Parece uma liberdade duramente conquistada pelo esclarecimento secular perante a religião repressora. A ideia de formar um critério pessoal ou caráter na busca de conteúdos é considerada limitadora. Em parte isso ocorre porque a cultura de consumo e o viés econômico incentivam a ideia de que liberdade é aleatoriedade e obedecer aos próprios impulsos, e então acreditamos nisso.
Porém, tudo que o budismo pede é formação de critérios – coerência, honestidade. A não ser que o caminho monástico seja escolhido, nesse caso, o entretenimento deve ser evitado de forma geral – e talvez aí se possa entender que presume evitar qualquer arte sem uma motivação estrita e explicitamente religiosa.
Na verdade, podemos ter dois conjuntos de critérios. Um mais próximo do monástico, e outro mais próximo da vida cotidiana secular. Enquanto não somos grandes praticantes de treinamento da mente, fazemos sessões curtas diárias de, por exemplo, meditação – além de tentar levar uma vida de acordo com os ensinamentos do Buda. Porém, podemos ansiar por momentos de maior foco na prática – o que chamamos de “retiros” – e nesses âmbitos podemos, temporariamente, assumir certos aspectos da postura monástica. Isto é, não consumir qualquer entretenimento, ou evitar consumir qualquer entretenimento por um tempo.
Dessa forma, de modo geral, um praticante deve considerar períodos de abstinência de internet, leitura (de livros não ligados a prática que se está fazendo), TV, cinema, dança, teatro – tudo o que chamamos de arte, cultura e entretenimento – e períodos em que se consumirá essas coisas ao mesmo tempo em que se busca desenvolver critérios. Estes critérios são semelhantes a formação de um senso estético, que não é efetivamente separável de um caráter ético. Isto é, é parecido com aprender a não consumir tanta junk food. Mas procurar conteúdos que, independente de serem alta cultura ou cultura popular, se coadunem com o modo de vida que conduz ao treinamento da mente, bem como ao próprio treinamento da mente.
Existe uma vantagem nessa perspectiva dupla. Nosso objetivo é a flexibilidade da mente. Então cultivamos hábitos em meio ao mundo e um pouco artificialmente protegidos dele também. Isso se espelha no momento diário de prática formal, mas pode se estender para períodos mais prolongados. De todo modo, a experiência de manter a mesma flexibilidade mental na presença e na ausência de entretenimento (ou arte, cultura, “produção de outros e própria”) é a estabilidade na prática.
Com relação aos conteúdos específicos, isto é bastante pessoal. Mas é preciso reconhecer que existe a necessidade de formação de critérios – isto é, a não ser que você seja um praticante altamente realizado, nem tudo é bom para você. Você deve estudar a própria mente. Embora só você possa precisar que, dentre 20 “videocassetadas”, apenas 2 lhe são aceitáveis, e talvez engraçadas, esse é um trabalho que você, como budista, deve fazer. Você deve examinar porque está rindo junto com as pessoas de certas coisas – as pessoas de fato usam o humor – e qualquer outro aspecto da cultura – de forma negativa. E faz parte do seu treinamento da mente descobrir o que é adequado e o que não é.
Quando você se perceber quase rindo de algo, mas incomodado – não fique chateado achando que está “se autolimitando”. Use o momento para jogar lucidez sobre a situação. Desconfie dos seus amigos e da cultura. Nesse momento, seja rebelde, não seja maria-vai-com-as-outras. Não pratique o “pacto de mediocridade”. Não caia numa teoria rasa de que, só porque existe, e só porque você pode, tudo é válido.
As pessoas e a cultura estão frequentemente operando aleatória ou negativamente. É preciso gerar o discernimento para praticar o regozijo com o que é bom, e não coadunar com uma negatividade generalizada, uma “banalidade do mal”, nas palavras de Hannah Arendt.
Podemos lembrar o exemplo de Heath Ledger e tantos outros grandes artistas cujo processo criativo foi parte de uma doença ou de um processo de autodestruição. Algumas pessoas poderão dizer que eles são mártires no altar da arte – mas o mais comum é dizer que eles eram seres livres, até quando perceberam que não eram. Uma pessoa preocupada com a própria saúde, e talvez com a saúde da cultura, evita certos papeis. O que presenciamos é, no fundo, algo semelhante a uma autoimolação bem pública – aquela atuação como Curinga nos é cativante porque sabemos ser em algum sentido “legítima”, tocar pessoalmente o artista. Mas isso em nada é diferente da mídia sensacionalista usual, e dos Johnny Knoxville da vida.
Algo que, como treinamento da mente, podemos assistir ou não – mas que não podemos evitar de ver como exploração da fragilidade do outro incentivada pelas emoções mais vis e valor econômico.
Quando se começa a gerar critérios desse tipo, e escolher o que se assiste de acordo com uma perspectiva ética e de treinamento da mente, é aí que começa a prática no cotidiano.
E isso tem várias dimensões. Não é o caso que um filme perturbador ou violento, ou em que se usa imagens de cunho sexual, naturalmente seja inadequado. O objetivo não é virar um beato ou carola. Se sentir bem ou mal diante de um conteúdo não é o critério: o critério é “como isso está treinando minha mente”. E é claro, isso vai de sua capacidade. Isso é totalmente com você.
Você pode ver algo negativo e aprender com isso, ou você pode apenas seguir junto com a mente. E efetivamente treinar a mente para algo não muito positivo, para a normalização de algo não muito positivo. E nesse sentido, sim, você é livre para ver qualquer coisa – mas você principalmente é livre para olhar para a própria mente e reconhecer o que está reforçando seus hábitos limitadores, e suas fixações mais arraigadas.
Se alguém percebe que o conteúdo leva mais a uma reflexão sobre as próprias limitações do que apenas um regozijo na maldade, pode efetivamente ser muito interessante se relacionar com esse conteúdo. Alguns praticantes budistas tradicionalmente procuravam experiências amedrontadoras, e viviam em meio a cadáveres por algum tempo, e usavam essa experiência para caírem na real sobre a experiência humana.
Há filmes em que o grotesco é sensacionalista, mas há filmes que nos fazem refletir sobre a realidade orgânica da morte e de outras coisas que a sociedade globalizada moderna gosta de esconder. Esse é um critério que precisamos desenvolver – precisamos parar de acreditar que uma mera ausência de critério nos seja vantajosa como seres humanos.
Um exemplo de conteúdo particularmente difícil são histórias de vingança. De modo geral, elas não parecem estar ensinando nada positivo. Particularmente se a vingança é literal e não há nenhum tipo de ambiguidade moral, nesse caso é possível que seja interessante evitar totalmente – porque, segundo o budismo, se você regozija juntamente com os personagens fictícios em suas ações negativas (e a vingança, por mais justa que seja, é uma ação negativa segundo o budismo), você está gerando hábitos mentais ruins. Você está treinando a mente na direção oposta a uma maior flexibilidade.
Porém, se há suficiente ambiguidade moral, pode ser uma reflexão sobre nossas próprias atitudes vingativas – mais do que um mero festim de nossas próprias piores tendências.
Então o importante é gerar critérios e treinar a mente.
TV como prática
Absolutamente tudo pode ser integrado como prática. Mas isso não quer dizer que uma pessoa em particular seja capaz de integrar tudo. É preciso conhecer as próprias limitações.
Estritamente falando, pessoas que levam o refúgio e o voto de bodisatva a sério não deveriam conceber a noção de “momento de prática” versus “momento de não prática”. Tudo que surge precisa ser encarado como prática. Por isso mesmo, devemos estar cientes de nossas limitações, e é aí que surgem certas proteções artificiais, como não assistir certos conteúdos, ou ver menos TV. Já que vemos ser difícil praticar em certas condições, evitamos essas condições.
Claro, entendemos que um grande praticante pode praticar em qualquer circunstância. Até mesmo recebendo eletrochoque de prostitutas vestidas como abelhas enquanto come Fruity Loops, ou algo assim. Se isso é o que precisa fazer para se divertir… Porém, sabemos que mesmo em silêncio, num lugar quieto, com um incenso de boa qualidade e som de pássaros, imóveis e imperturbados na almofada, nossa prática muitas vezes não é tão boa. Então, sejamos realistas.
E aqui vem aquele recado final sobre o “caminho do meio”, aquele que é além dos extremos, mas que algumas vezes também prega a moderação.
Como já dito, a experiência da arte em geral revela algo sobre a flexibilidade da mente – somos capazes de vivenciar esses mundos porque nossa mente tem essa liberdade inerente. Quando eu era mais jovem, lembro de assistir algumas coisas com minha avó, e ela simplesmente não se divertia. Para ela, a maioria dos conteúdos era “bobagem”. A mente dela havia se enrijecido de uma forma tal que ela não sentia nenhum vínculo ou vontade de penetrar cognitivamente a maioria dos conteúdos na TV. No caso dela, era com quase tudo – mas entendo porque há alguns conteúdos que são mal feitos ou que não tocam nos meus próprios “botões”, e que eu vejo da mesma forma.
Para um bodisatva, a maioria dos conteúdos do mundo é bobagem, mas ainda assim, ele manifesta a liberdade de penetrar nas histórias dos seres, porque sua motivação é compassiva. Podemos treinar isso com a arte também.
Apenas precisamos ser honestos e ficar atentos até onde vai nosso treinamento da mente, quando ele se torna impossível (para nossas próprias capacidades) e que tipo de hábitos estamos fomentando.
O Buda não vê sonho nenhum em lugar algum, e ainda assim nunca se ausenta das infindáveis projeções oníricas – sejam elas criadas ou espontâneas. A cognição que não rejeita ou reifica sua projeção natural surge no trono adornado pelo hábito sublime de reverenciar as exaltadas formas e artificialidades do Buda, a substância não reificada do mérito dos seres, cujo foco único sempre é a mera ausência de rigidez. Na exibição dramática de som e fúria, a coragem dos bodisatvas é a atuação sem nenhuma plateia. Os praticantes dos métodos excelentes da vastidão de abordagens sublimes se deleitam com a festa incessante da ausência de tédio da maleabilidade incessante de lucidez e espaço. Que os treinamentos em corpo, fala e mente possam revelar seus resultados.
Padma Dorje é praticante budista e autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos. Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org.