Estamos realmente meditando? Elizabeth Mattis-Namgyel

Elizabeth Mattis-Namgyel examina equívocos comuns sobre a prática budista que podem atrapalhar até mesmo os praticantes mais experientes.

O que é a prática da meditação? Quando é que nós estamos praticando genuinamente e quando é que estamos apenas “repetindo os movimentos”, presos em suposições inconscientes acerca da prática? Eu frequentemente me pergunto isso, para não sucumbir à imprecisão espiritual – e porque quero que minha prática continue a crescer.

O propósito da meditação é desenvolver um relacionamento saudável com a nossa experiência. As dificuldades que temos na vida – se fechar, se afastar, sentir-se sobrecarregado, e todo o apego neurótico – nascem da confusão que cultivamos sobre como nos relacionar com a rica energia da mente. Quando comemos, nós ingerimos, processamos e eliminamos alimentos. Mas como será que digerimos a nossa experiência? Isso não está tão claro.

Como meditantes, nós olhamos para a mente e suas atividades. Quando começamos a praticar, normalmente nos surpreendemos: “Eu não tinha percebido que a minha mente era tão selvagem e desobediente”. Até mesmo praticantes experientes reclamam: “Eu estou praticando há trinta anos e minha mente continua louca”. Frequentemente vemos nossa experiência como um problema. Então como trabalhar com ela? Será que existe uma maneira de apreciar a atividade da mente? Como a prática pode nos levar a um relacionamento sadio com o nosso mundo? A meditação coloca essas questões no centro do foco.

 

Os métodos em si não são a prática

Nós pensamos na meditação como sendo o ato de sentar em postura de lótus, recitar um mantra, visualizar algo ou focar na respiração. Esses métodos hábeis nos ajudam a navegar pelo nosso mundo. Eles mantêm nossos corpos eretos, nossa energia circulando e – o mais importante – podem nos guiar para longe das nossas tendências habituais.

Às vezes, simplesmente seguir a técnica de meditação nos leva a um momento de clareza, no qual experimentamos uma sensação de liberação. Eu não quero dizer “LIBERAÇÃO!!!”, como alguma coisa pretensiosa. Estou apenas me referindo ao fato de que podemos desfrutar um momento no qual a mente para de tentar consertar ou alterar as coisas, o que nos permite uma abertura a um jeito mais amplo de existir.

No entanto, nós sabemos que às vezes podemos aplicar as técnicas da prática sem estar realmente “praticando”. Em tais momentos, esses métodos não tocam nossas tendências habituais e nós retornamos às maneiras usuais de nos relacionar com a mente – por exemplo, se perder em meio aos impulsos dos pensamentos e emoções, ou então rejeitá-los. Podemos gastar muito tempo desejando ser outra pessoa e estar em outro lugar tendo uma experiência diferente. Mesmo sentados na almofada, pode ser que nos percebamos querendo ou não-querendo, agarrando ou rejeitando.

As várias ferramentas da prática meditativa podem nos pôr em uma fortaleza proposital. Quando colocamos nosso corpo em uma postura de meditação, recitamos um mantra ou acompanhamos a respiração, estamos nos proporcionando uma estrutura de apoio a partir da qual observar a mente e suas distrações. Com frequência nós esquecemos que, por si só, esse ato de “ver” é uma realização poderosa e necessária. Na verdade, ele é o ponto de partida para o nosso caminho.

Algumas vezes, entretanto, ao invés de apreciar nossas descobertas ao longo do caminho, nós nos protegemos delas – e da nossa experiência. Quando isso ocorre, perdemos a genialidade dos métodos da prática, que foram projetados para nos levar a um relacionamento saudável com a nossa experiência. É como Tilopa, um grande mestre do budismo tibetano, disse ao seu discípulo Naropa: “Não são as experiências em si que te aprisionam, e sim a forma como você se agarra a elas ou as rejeita.”

Nós podemos estar recitando orações, sentando eretos, ou observando a respiração, mas será que estamos realmente trabalhando com a nossa mente? Será que a nossa prática está tocando e transformando nossas tendências habituais de apego e rejeição? Essas questões sobre como nós aplicamos a prática momento-a-momento são extremamente pessoais. Precisamos repeti-las continuamente, porque se nós acreditarmos que meditar significa apenas aplicar uma técnica, pode ser que nunca tenhamos a experiência de liberação que a prática genuína pode trazer. Eventualmente, podemos concluir que a prática não funciona, que nós desperdiçamos o nosso tempo e que agora vamos retornar para o mundo real. Acontece.

 

Aguentando firme

Diz-se que os grandes yogues do passado, incluindo Milarepa, Yeshe Tsogyal e Bodhidharma, passaram anos praticando austeridades, tais como sentar nu em meio à neve do topo das montanhas e cortar as próprias pálpebras para não cochilar durante a meditação.

Como nós praticantes pelejamos com a nossa experiência, pode ser que comecemos a associar meditação com sofrimento. Talvez até mesmo vejamos esse esforço como purificação de carma, presumindo que, a menos que estejamos desconfortáveis, não estaremos realmente praticando. Quando nos apegamos a tais noções sobre a prática, nosso sofrimento se torna cada vez mais real, juntamente com o sentimento de repulsa em relação a essa situação desagradável.

Em seu primeiro ensinamento de todos, o Buda disse: “Existe sofrimento”. Às vezes nós interpretamos isso erroneamente como se dissesse que estamos condenados a sofrer. Eu tomo as palavras do Buda como um convite para praticar a não-violência em relação a meus mundos interno e externo. Com essa afirmação simples, porém poderosa, o Buda sugere que o sofrimento não é algo que possamos consertar, ignorar ou descartar. Ao invés disso, ele está insinuando que a prática gera a habilidade de tornar-se grande o suficiente para incluir tanto a dor quanto a beleza da condição humana – não apenas a nossa própria, mas também a dos outros.

Nossa habilidade de testemunhar o sofrimento sem tentar afastá-lo ou sentir-se soterrado por ele está ligada à liberação. No que consiste a experiência antes de tentarmos fugir dela, subjugá-la ou manipulá-la? Essa é a questão para os praticantes.

A transição de “eu estou sofrendo” para “existe sofrimento” permite que a dor da condição humana nos toque e libere nossa compaixão e sabedoria mais profundas. Dessa forma, os grandes praticantes do passado vivenciaram aquilo que podemos chamar de sofrimento como sendo uma espécie de empoderamento feroz.

 

Não é como pagar impostos

Se nossa prática consistir em forçar a barra, vai chegar um momento em que sentiremos ter aguentado o suficiente. Talvez decidamos abandonar tudo isso e ir dançar – como se prática e deleite fossem incompatíveis. Em seu livro Palavras do Meu Professor Perfeito, Patrul Rinpoche diz que nós frequentemente praticamos “como se estivéssemos pagando impostos”: o que realmente queremos é chegar em casa depois do trabalho e assistir televisão, mas sentimos que deveríamos meditar.

Isso leva a uma pergunta valiosa: “O que é o verdadeiro deleite?”. Meu professor, Dzigar Kongtrul Rinpoche, uma vez definiu a felicidade última como sendo “a ausência de apego e rejeição”. Se esse for o caso, deleite pode ser uma boa definição de “prática”.

O propósito da prática de meditação é apreciar a vitalidade natural da mente; a prática não é algo que nós deveríamos fazer a partir de um senso de obrigação. Para quem nós estamos praticando? Para o professor? Estamos fazendo isso para não ir ao inferno? Para sermos bons? Quem define o que é “bom”, afinal? O objetivo da prática não é ser bom, mas sim aprender a estar em paz com a nossa experiência – e apreciar, de maneira profunda, nossa mente e nossa vida.

 

Breves experiências passageiras

Às vezes nós encontramos um professor, ouvimos um ensinamento ou temos uma experiência – talvez em meio à natureza – que nos desperta. Do nada, nossa mente habitual para e nós desfrutamos um momento de encantamento ou abertura. Tais experiências nos lembram que existe vida além do apego e da rejeição.

Mas quando tentamos reter essas experiências passageiras, novamente nos vemos transportados ao mundo condicional das preferências, com todo seu “quero” e “não-quero”, sua esperança e medo. Eis onde costumamos viver, engajados em uma peleja com o mundo.

Nos ensinamentos de treinamento da mente existe um ditado: “Abandone toda a esperança de fruição”. As pessoas normalmente interpretam isso como significando que não há lugar de repouso para o praticante, mas o que realmente quer dizer é que quando nos apegamos a experiências positivas, caímos de volta na mente ordinária. A liberdade é justamente o oposto: ela surge ao darmos valor a toda experiência – e ao permanecermos abertos à vida, com toda sua dor e alegria.

 

Sem fronteiras físicas

Quando as pessoas entram em retiro pela primeira vez, pode ser que tenham uma relação esquisita ou desconfortável com a experiência das fronteiras. Muitas vezes, para se distrair da prática de meditação, elas vão tentar se comunicar com os outros ou encontrar coisas “interessantes” para fazer. Algumas vão se distanciar das experiências e tentar criar um escudo protetor, mantendo-se em uma postura rígida e retraída. Esses dois estilos de se relacionar com a experiência são novamente expressões de apego e rejeição. Eles indicam que nós não sabemos como estar com a nossa experiência de uma maneira fácil, agradável e inteligente – de uma maneira prática.

Durante um longo retiro, no qual estávamos em um pequeno grupo que praticava em cabines separadas no mesmo terreno, nossas ocasionais sessões de prática coletiva me geravam pânico e eu me via tentando evitar meus amigos praticantes no bebedouro. Quando alguém passava perto de mim, eu sentia minha mente e meu corpo se contraírem.

Um dia, eu não reconheci uma pessoa que vinha caminhando na minha direção em meio à trilha e me joguei num arbusto. Meu professor, que coincidentemente estava por perto, brincou, implicando comigo: “Essa não é uma forma digna de um praticante agir”. Eu sabia que ele estava certo.

Ter que me debater com a minha confusão acerca das fronteiras eventualmente me levou a fazer algumas perguntas muito profundas e essenciais sobre a prática: Onde fica a verdadeira fronteira da prática? Onde fica o limiar, e como eu faço para ultrapassá-lo?

Às vezes nós equivocadamente pensamos que a prática da meditação consiste em permanecer no âmbito protetor de um ambiente físico, tal como um retiro, ou então seguir preceitos e um cronograma estabelecido. Embora essas coisas sirvam de fronteiras para a nossa prática, existe uma fronteira mais sutil, que diz respeito a como nós mantemos nossa mente orientada para a prática.

As pessoas sempre falam do desafio de sair de um retiro. Elas dizem que quando voltam para suas vidas comuns, a mente não se sente mais protegida ou conectada com a prática da meditação. Isso se dá porque nós confundimos a fronteira externa com a prática em si, quando na verdade a fronteira da prática não é algo fora de nós – ela tem a ver com a maneira de nos relacionarmos com a rica experiência dos nossos mundos interno e externo.

A fronteira física e os preceitos que definem a estrutura de um retiro servem como suportes indispensáveis para esse tipo de prática. Eles nos mantêm dentro do território saudável da nossa intenção, que é encontrar o verdadeiro lugar de repouso para além de apego e rejeição. Mas eles não são a prática em si.

 

Valorize toda experiência

Se a prática não é meramente uma técnica ou algo que possa ser identificado por fronteiras físicas e breves experiências passageiras, então como saber quando estamos praticando ou não? Eu acho que precisamos olhar para a atitude fundamental que trazemos para a nossa experiência. Nós estamos valorizando toda experiência? Ou estamos sucumbindo às nossas tendências habituais de nos proteger daquilo que não queremos e agarrar o que achamos prazeroso?

A prática nos oferece a oportunidade de testemunhar tais lapsos sem julgá-los. Ao invés de nos sentirmos desencorajados, podemos apreciar a potência da nossa habilidade de discernimento: O que é prática? O que não é prática? Isso é parte crucial da nossa investigação – e o início de uma resposta não-agressiva à nossa experiência.

A habilidade de aceitar nossa própria humanidade com todas as suas pelejas, clarezas e confusões amplia nossa capacidade de contemplar tanto a beleza quanto o sofrimento que encontramos no mundo. Isso gera destemor, compaixão, clareza e uma apreciação tanto de nós quanto dos outros. Como nos sentimos menos intimidados por nossa mente e nosso mundo, podemos caminhar pela vida com graça e compostura. Nosso relacionamento com o mundo ao redor é menos reativo e mais responsivo.

Para estar em um relacionamento saudável com a nossa experiência, nossa vida e nosso mundo, precisamos aprender a digerir as experiências – deixar a vida nos tocar, nos nutrir e se mover através de nós, ao invés de reagir a ela com tantas fixações e preferências. Isso significa que precisamos encontrar um modo de existir que esteja além de apego e rejeição. Apenas então poderemos apreciar nossa humanidade em toda sua plenitude. E não é esse o objetivo da meditação?

Texto escrito por Elizabeth Mattis Namgyel, originalmente publicado no Lions Roar. Tradução de Gabriel Falcão e Marcus Telles

elizabethElizabeth Namgyel é uma das muitas mestras budistas contemporâneas, estuda e pratica o budismo por 30 anos sob a orientação de seu professor e marido, Dzigar Köngtrul Rinpoche.

Passou sete anos em retiro solitário e é mestra de retiros no Longchen Jigme Samten Ling, centro do Mangala Shri Bhuti no sul do Colorado. Editou dois livros de Dzigar Köngtrul Rinpoche e é autora de “The Power of an Open Question”.

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