Vivemos numa cultura de massa em que tendemos a nivelar tudo pelo mínimo denominador comum. Até mesmo nossos bons valores iluministas de igualdade democrática, liberdade de expressão, informalidade e irreverência algumas vezes acabam distorcidos como justificações para a mediocridade ou o vale-tudo, e podem acabar produzindo um sentimento de empobrecimento cultural e estético, bem como de perda de dignidade e valor-próprio. Isso ocorre muitas vezes sem nem mesmo realmente incluir a diversidade e as minorias que supostamente deveriam acolher. Porém, talvez não precise ser assim: o treinamento budista pode reintroduzir valores e dignidade sem cair nas armadilhas da separação elitista ou aristocrata.
Precisamos reconhecer alguns padrões de nossa cultura. Nossas instituições tradicionais estão num processo de pelo menos trezentos anos de reforma exponencialmente cada vez mais disruptiva. Nesse período vimos uma após a outra as instituições da religião, da monarquia e outros modos de governo, modos de produção e consumo, bem como a aparente vontade das massas, se tornarem ferramentas de opressão, exploração e totalitarismo. Como vimos tantas coisas erradas cometidas em nome de valores supostamente elevados, assumimos que isso sempre necessariamente aconteça, e assim todos nos engajamos em uma “revalorização dos valores”, que segue do modernismo até os dias de hoje.
Por exemplo, tanto lemos sobre os históricos abusos de exploração econômica em nome da fé cometidos pela Igreja Católica, foco das críticas de Lutero quinhentos anos atrás, e tanto vimos pastores televisivos pedindo dinheiro em nome de algum serviço divino, que nossa tendência natural acaba sendo desconfiar de toda e qualquer circunstância que misture religião e dinheiro. De fato, por esse e outros abusos, a maioria de nós assume uma postura francamente anti-institucional quanto à religião. “Religião sempre dá em violência, exploração, abuso sexual”, e assim por diante.
Românticos, decadentistas, geração perdida, beats, hippies, punks, yuppies e hipsters nos revelaram, uns após os outros, o descontentamento com os valores institucionais, particularmente pela esfera mais jovem da sociedade. É um rito de passagem globalizado terminar a infância e a adolescência tardia com uma aceitação amarga dos valores que as revoluções sistematicamente deixaram intactos, só para ver a próxima geração se segmentando em suas próprias tendências anti-institucionais. Porém, na era em que somos, antes de tudo consumidores (e o ato de comprar é confundido com liberdade), a transvaloração dos valores é tão completa que já há tempos é o óbvio ululante reconhecer a transgressão, vez após vez, como apenas mais um produto.
Em certo sentido, o desafio consciente e altivo de gente como Thoreau, Gandhi, Rosa Parks, Mandela, e assemelhados pouco a pouco se tornou pouco mais do que um slogan impresso numa caneca. Que custa R$12.
Ainda assim, todos nos consideramos livres: pensadores isentos e não institucionais, e seguimos para nossos lagos Walden, ou montamos em Harleys, e usamos coturnos – tanto reais, quanto na mente, metaforicamente falando. Todo mundo se conforma em ser um não conformista. Cada um igual em sendo seu próprio diferentão.
Porém, quando examinamos as culturas tradicionais asiáticas – em franco risco de extinção, como todas as culturas não hegemônicas na globalização – podemos pensar que, como a Ásia simplesmente não passou pelo iluminismo, os ventos da modernidade ocidental chegaram lá e aceleraram um processo de desinstitucionalização que era, de algum modo, inevitável. A maioria das pessoas, mesmo inconscientemente, quando se depara com essa problemática em algum âmbito, tende a guardar algum nível de etnocentrismo Europeu – e há várias teorias europeias que tratam a história como um processo inevitável e cíclico, até certo ponto previsível. Isso nos produz tanto um fascínio com a preservação do tradicional, quanto produz um reconhecimento cínico de que as correntes hegemônicas vão naturalmente sufocar essas expressões tradicionais, exatamente como no ocidente, pelos mesmos “bons” motivos que isso ocorreu aqui – e que é provavelmente “natural” que ocorra assim.
Afinal, nosso universalismo internalizado nos diz que as histórias por todo lado são as mesmas, só mudam os nomes.
Nem desconfiamos que possa haver real diferença.
Com base nessa perspectiva estreita, o “sonho americano” se torna a perspectiva basal. Se tivermos muita sorte, trabalharmos muito, e tudo correr bem, as forças da livre-competição vão nos conceder uma casa pré-fabricada, comida processada, um simulacro de educação, um carro, e tempo livre para ir ao shopping no fim de semana. Se não para a maioria, para uma boa parcela – e é assim mesmo que sempre foi; já até melhorou um pouquinho, então melhor não esperar por mais.
Esse entendimento da Ásia tradicional sob um viés etnocêntrico também ocorre entre aqueles sociólogos que falam de uma China ou Tibete “feudais”, usando um arcabouço eurocêntrico para interpretar as sutis dinâmicas sociais nestes países antes das grandes revoluções do século XX. Também olhamos para um fenômeno complexo como o Japão pós-guerra e vemos uma mistura muito específica de cooptação da cultura do dominador, e preservação cultural – na qual muitas coisas acabamos admirando muito, enquanto outras não nos fazem sentido algum. Trata-se da talvez mais híbrida cultura do mundo hoje.
Esse mesmo tipo de dificuldade entre o que são prerrogativas nossas e o que nos é diferente também ocorre com o praticante que se aproxima de um centro de darma e espera uma brasileiração ou ocidentalização dos métodos, de preferência eliminando esses “aspectos religiosos” um tanto embaraçosos, como devoção e renascimento. Tudo isso se embasa em nossa dificuldade de lidar com o diferente de uma maneira livre de viés, e com frescor. Marketeiros até mesmo destacam o budismo de seu branding budista, e nos vendem uma homogeinização pobre de treinamento da mente supostamente “científico” na forma de autoajuda e crescimento pessoal. E ainda acreditam-se estar compassivamente tentando alcançar aqueles que não conseguem aceitar os aspectos mais tradicionais, que surgem como algo exótico, idiossincrático e desnecessário, seja por serem religiosos ou asiáticos.
O budismo se torna mais um campo de exploração. Um campo em que grandes máquinas, laboratórios e times de propaganda tentam sugar o princípio ativo daquela floresta magnífica de panaceias que é o darma, reduzindo tudo a escombros e vendendo e patenteando o que enfim se mostra um produto muito específico e inadequado. Mas, é o que essas mentes limitadas conseguem reconhecer como tendo valor, e é isso que elas acham “compassivo” (quando muito) repassar.
Essas atitudes mostram que as estruturas usuais de nossa própria história – ou melhor, da história da Europa, que nós aqui na América do Sul não tivemos muita chance de avaliar antes de nos vermos soterrados por uma língua e valores de outro continente – estão bem presentes. Elas passam pelas raízes cristãs, pelo iluminismo, pela revolução industrial e pelo materialismo que, acima de tudo, presentemente ameaça o planeta. Então, encaramos o Darma do Buda do jeito que conseguimos encarar, num encontro entre a adaptação do que ainda existe das estruturas tradicionais, com nossas próprias prerrogativas limitadas, sejam elas positivas ou negativas. É bom reconhecer que mesmo nossos critérios para avaliar o que é positivo e negativo, em termos dessa transição, também muitas vezes estão determinados pelo nosso viés cultural.
Mas, como “isentos pensadores livres” que nos consideramos, acreditamos saber melhor como empacotar e vender o darma sagrado como algum tipo de terapia da moda ou comunidade de crescimento pessoal.
Caso façamos um esforço para superar a visão cínica que foi o resultado de nossa história, temos ainda outro desafio. Não é o caso que as culturas asiáticas e seus modos de existir sejam livres de problemas. Em nosso viés extremista, no entanto, fazemos críticas com base numa perspectiva distorcida, e também glorificamos os “bons selvagens” com motivos arbitrários. E temos feito isso consistentemente por cerca de 200 anos, com relação ao budismo em particular.
Considerando tudo isso, é um verdadeiro milagre que o darma autêntico tenha chegado ao ocidente.
O fato é que, se consideramos bem estes aspectos, a cultura e a mente condicionada que a acompanha, são como o samsara ou, mais que isso, são o próprio samsara: “não tem solução”. (Samsara é a experiência cíclica de sofrimento ou insatisfatoriedade, estruturado pelas aflições mentais e que produz as condições de competição por recursos, ausência de sentido e morte.) Portanto, não é que samsara não tenha solução – é que samsara, na perspectiva de samsara, não tem solução.
O que fazer então?
Erguendo uma Terra Pura
A expressão “Terra Pura”, como muitas outras no budismo, é vastamente polissêmica. Tem muitos sentidos. Não é somente que ela exista como uma espécie de céu, ou que seja apenas a verdadeira natureza de nossa mente. Não é que ela seja um lugar ou apenas uma metáfora. Terra Pura navega sem problema por todas essas gradações de sentido, da mais abstrata e sutil a mais concreta, palpável e reconhecível.
O importante aqui é perceber que, do ponto de vista do praticante, Terra Pura é algo que se constrói, a que se chega, ou que se reconhece. Qualquer uma das três coisas para acontecer exigirá essencialmente mérito e sabedoria. Mérito e sabedoria são o material de construção, o mapa que nos leva até esse lugar secreto, ou as plantas baixas e diagramas que permitem a Terra Pura – ou o próprio tecido dessas condições que chamamos de Terra Pura. (Mérito é a prática consistente da virtude, e sabedoria é o que se obtém com estudo e o refino de ferramentas cognitivas, como a meditação, e o exame cuidadoso de nossa condição.)
E por que a Terra Pura é importante? É somente na Terra Pura que recebemos ensinamentos. Os ensinamentos são importantes porque queremos parar de sofrer e ser efetivamente capazes de ajudar os outros, bem como reconhecer a verdadeira natureza da realidade.
A Terra Pura não é um lugar para descansar ou usufruir algum tipo de férias e escapar do samsara. A Terra Pura é o ambiente em que os ensinamentos fazem sentido e onde eles podem ser entendidos. Na perspectiva de samsara, samsara não tem solução. Isso inclui cultura e história, bem como nossos vieses e “aprendizados”. Precisamos de outra perspectiva. Essa perspectiva é a experiência de mundo construída por mérito e sabedoria. Precisamos conscientemente procurar habitar esse âmbito, e então a prática e os ensinamentos se tornam possíveis.
Alguém pode dizer que já ouviu ensinamentos, e que eles fizeram algum sentido, mas que não viu Terra Pura alguma. Pois bem, é verdade que estamos na Terra Pura do Buda Sakyamuni, embora nem sempre reconheçamos assim. Na medida em que os ensinamentos fazem sentido, vemos a Terra Pura, e na medida em que a Terra Pura é reconhecida, os ensinamentos fazem sentido.
A Terra Pura é um lugar, mas é um lugar que pode ser sutil. Como já dito, é um lugar que surge em interdependência com nossos méritos e sabedoria, mais do que com uma cultura ou um sítio específico – seja nosso conhecido ou exótico. Nós de fato renunciamos aos hábitos e padrões usuais da mente, e os buscamos substituir por hábitos e tendências que permitam a prática. A prática, o treinamento da mente, é importante porque nos leva a superar o sofrimento, nos dá ferramentas para ajudar os outros, e nos permite assentar a mente de forma a reconhecer as coisas como elas realmente são. A Terra Pura é o ambiente que geramos nesse processo.
E por isso, em certo sentido, o radicalismo do budismo está além dos extremos de reificar instituições ou se livrar delas. A Terra Pura é um desafio às estruturas condicionadas, e não é um desafio que cai no conformismo inevitável, ou na mera tentativa de rompimento. É um reconhecimento de que nossa sabedoria e mérito fazem mais diferença do que o que algumas vezes reconhecemos como “condições externas”.
Interdependência com o que é auspicioso
A própria palavra “pura” pode nos causar algum estranhamento. O que é impureza? O Buda (através de Avalokiteshvara) não disse no Sutra do Coração que a sabedoria está além de pureza e impureza? De onde vem a “pureza” desses campos de budas ou mandalas (outras traduções para Buddhakṣetra, Terra Pura) de que estamos falando aqui?
Talvez a palavra “pura” tenha sido introduzida na tradução, ou em alguma interpretação particular dos ensinamentos do sudeste da Ásia. É muito comum que caiamos em extremos do tipo “mas eu sou um ser impuro, como eu caberia nessa coisa pura, que talvez não exista?” ou “mas tudo é puro, porque transformar essa ou aquela instância em algo especial?”.
O aspecto de “puro” aqui está ligado à sabedoria. Sabedoria é o reconhecimento da interdependência, e não só entre todos os seres – essa interconexão necessária, em que cada um depende de todos os outros, e vice-versa. A interdependência também está ligada ao que se traduz de forma meio esquisita como “auspiciosidade”. Quando nossa mente inclui todos os seres, reconhece o âmbito não condicionado, e exala positividade – a atitude da iluminação, “bodichita” – isso é a pureza. Isso é o que nossa mente faz, naturalmente, quando não está obstruída por vieses e aflições mentais.
Isto é, impureza é o que é circunstancial, pureza é o que realmente há – nossa verdadeira natureza. Essa é a perspectiva que, estando fora da experiência cíclica, permite uma solução para o samsara. Se reificamos a impureza como algo que existe de algum modo mais forte, em algum sentido independente, aí samsara de fato não tem solução.
Então há uma pureza não condicionada, um estado livre das perspectivas convencionais de puro e impuro, que surgem de conceitos relativos. É uma grande pureza, uma pureza atemporal ou primordial.
Auspicioso, portanto, é basicamente algo perfeitamente bom, naturalmente bom, bom de forma inata. Simplesmente isso. O que pode cair sob o conceito de “bom” nessa era de relativismo ético? É aquilo que causa felicidade mais duradoura e que nos leva a nos interessar, ouvir e integrar os ensinamentos – que levam a ainda mais auspiciosidade e ao reconhecimento da “realidade como ela é”, além das aparências criadas pelo que chamamos de “ignorância” – que é onde supostamente estamos inseridos hoje, a maior parte do tempo pelo menos.
Mas porque usamos auspicioso em vez de “bom” e porque falamos isso em termos de interdependência? Por que, quando falamos em treinamento, estamos falando em gerar conexão com o que é bom, produzir interdependência com a auspiciosidade.
Para isso usamos certos padrões culturais do que reconhecemos como elevado, como imagens de esplendor, tais como a figura do Buda, altares, “plantas baixas” de palácios de Terras Puras que chamamos de “mandalas”, e assim por diante. A cultura em si é um elemento indeterminado, pode ser positiva, negativa – mas a cultura de onde os ensinamentos vêm está imbuída de interdependência com a auspiciosidade, e esse é um caminho perfeitamente válido para nós mesmos gerarmos essa auspiciosidade e transformarmos ou reconstruírmos nossa própria cultura.
Então, deliberadamente treinamos a mente para o que é auspicioso usando auspiciosidade convencional, para então reconhecermos aquela pureza que é inerente e além dos extremos.
E veja só como é fácil cair em extremos: Não é incomum hoje a gente ver as duas atitudes que vou descrever em seguida numa mesma pessoa, em talvez alguns minutos de intervalo.
A primeira atitude é “não tem jeito”, os problemas são grandes ou difíceis demais, e todo mundo morre, o planeta já foi para as cucuias, está tudo errado e não vai dar para fazer nada a respeito. E ainda é tudo culpa do Obama, ou da Merkel, ou dos neofascistas – ou do atendente de telemarketing com que se está falando.
A segunda atitude começa com “ah, mas tem umas coisas boas”, e logo surge uma soberba em que pensamos: “bom, eu não preciso de mais nada, sou autossuficiente, e do jeito que está já é perfeito”. Não estou condicionado por vieses, sou livre, compro o que quiser, e, qualquer coisa, pago em parcelas.
Essas duas atitudes impedem a interdependência auspiciosa. Como tendemos a cair numa e na outra vez após vez, caso tenhamos essa disposição inusitada de seguir um caminho espiritual, e caso esse caminho espiritual seja o budismo, começamos muito lentamente e com talvez bastante esforço, a proteger o cantinho de Terra Pura que conseguimos desvelar. Deliberadamente cultivamos, através das práticas formais e das práticas no cotidiano, um hábito mental de abertura. Uma interdependência com o que é naturalmente puro e bom, essa tal “auspiciosidade”.
A forma mais básica de fazer isso é regozijar com ter encontrado o darma. Regozijar com os professores e o próprio Buda. Se esforçar para tratar o darma como o darma deve ser tratado, com seriedade e respeito, e assim por diante. E isso pode incluir participar da estrutura histórica que sustentou o budismo, por que não?
É estranho ter que dizer isso. Esse ensinamento não é tão enfatizado na apresentação asiática – e isso porque, ora, eles tradicionalmente já tinham bastante respeito pela cultura em que viviam e pelos ensinamentos. Eles não passaram por todas as crises críticas que o ocidente passou – eles tiveram é claro, crises, mas de outro tipo. (Nosso eurocentrismo segue nos cutucando e sussurrando em nosso ouvido: “eles são é atrasados, uma hora eles iam passar pelo iluminismo”)
Uma atitude de respeito pela cultura e pelo darma era natural, mesmo a não praticantes e pessoas não tão religiosas, e assim não precisava ser enfatizada. Outras coisas precisavam de ênfase, é claro. Mas em nosso caso aqui, nossa transvaloração (com bons e maus motivos, deturpada ou genuína) torna necessário frisar esse ponto. Faz parte da prática desenvolver certa formalidade respeitosa – interdependência com a auspiciosidade – pelos aspectos institucionais, culturais e aparentemente religiosos.
Solenidade e respeito soam caretas. Morremos de tédio um dia que fomos na missa católica e agora não queremos que nossa nova religião tenha qualquer coisa a ver com isso. Conhecemos bem a hipocrisia das tradições moribundas. Não queremos repetir erros passados.
Ainda assim, exatamente como nos relacionamentos amorosos, precisamos olhar essa nova oportunidade com toda abertura que ela oferece. Não vai ajudar achar que sempre vai dar errado, e já de cara partir para o cinismo. E talvez, apenas talvez, o tédio não seja uma experiência com causas externas.
Portanto, existe esse esforço deliberado em instaurar uma interdependência auspiciosa. Em desenvolver respeito pela tradição budista e suas idiossincrasias. Ou pelo menos, com o que nos parece idiossincrático à primeira vista.
Alguém olhando de fora pode nos chamar de carola, até fanático. Mas se entendemos bem a teoria que está por trás do treinamento da mente – se sabemos que a mente pode ser trabalhada, e se entendemos um pouco do que é auspiciosidade e interdependência –, sabemos que não é assim. Após algum tempo nessa atitude nós também reconhecemos como já fomos mais fechados a certos aspectos, e conseguimos inferir causas para os resultados que experimentamos. E então se torna mais fácil se abrir para a interdependência com o que é auspicioso.
Esplendor
Este termo primeiro me chamou atenção no fantástico livro de Tulku Urgyen, “Blazing Splendor”, que é um registro caloroso de várias de suas experiências com muitos grandes professores budistas. A princípio, a palavra “dignidade” me pareceu suficiente. O que eu queria dizer com esse texto, a princípio, é que não podemos tratar o darma de qualquer jeito, desrespeitá-lo ou misturá-lo com palavrões, irreverência ou piadas bobas. Essa era a mensagem básica.
É óbvio, eu sei. Mas é tortuoso entender as causas da mediocridade que acredita natural se envolver com o que é baixo, que acha bom o que é ruim e vice-versa. As causas são justamente nosso histórico enquanto civilização, mais esse olhar superior eurocêntrico. É por isso que, como cultura, gostamos tanto de entretenimento que glorifica drogas ou o crime, ou assemelhados. Não é que a arte não possa ser livre para mostrar o que for, é mais que as forças de mercado tentam suprir certo gosto coletivo pelo sensacionalismo, pelo schadenfreude, e pelo frisson sexual ou violento. Não é uma questão de liberdade, é uma questão de tendência.
Decidi escrever este texto um pouco inspirado por acontecimentos recentes no Facebook, e também reconhecendo que, como brasileiros, nós algumas vezes temos uma tendência a um tipo de irreverência cínica – quase carnavalesca – que não se coaduna com a geração de interdependência auspiciosa com o darma.
Quando não isso, estamos ansiosos em despir o darma desses aspectos que, em nossa grande “compaixão”, consideramos “obstáculos” para os outros. Queremos oferecer o darma despido de interdependência auspiciosa com o Buda e sua cor dourada, e seu trono de elefantes. Se pudermos fazer um logo semelhante ao de uma padaria, e um slogan semelhante ao de crédito pessoal rápido, é o que fazemos. O quanto pudermos degradar o darma, na perspectiva de o oferecer a estes seres necessitados que só supostamente respondem a essa pobreza de perspectiva, é o que vamos fazer.
Essa atitude de Viridiana é infelizmente muito comum.
Em vez de elevar os seres, e os reconhecer na mandala do Buda, criamos nosso próprio simulacro e vendemos um sistema próprio, desvinculado de tudo que é esplêndido. Vai que o brilho assusta esse ser que reificamos como medíocre, incapaz de ver valor no que tem valor? Melhor mediocrizar ao máximo o darma (esse simulacro de darma), ao ponto de não haver mais nenhum darma no darma, e daí o ser que eu estou diminuindo com minha perspectiva vai ser capaz de se conectar com isso. Mas, de que vai adiantar?
Quando estavam construindo o primeiro mosteiro budista no Tibete, Samyê, alguns trabalhadores repararam que a obra às vezes parecia andar para trás. Curiosos com o fato, colocaram um guarda e repararam que, à noite, criaturas semelhantes a pé-grandes vinham e imitavam os seres humanos no uso das ferramentas. Como elas não sabiam o que estavam fazendo, estragavam toda a obra. Da mesma forma, o mundo moderno está cheio de pé-grandes do darma, que destroem todo o trabalho cuidadoso dos professores, se apropriando da terminologia, práticas e métodos sem realmente saber o que estão fazendo.
(E eu tomaria cuidado com relação a esse próprio texto, porque embora eu não tenha sido reconhecido como pé-grande, tampouco sou alguém qualificado para falar dessas coisas! O que você mesmo está fazendo aqui e não se engajando em algo realmente autêntico? Aumentando a interdependência dessa auspiciosidade de que você tanto carece? Ache algo digno de sua maior aspiração, não fique lendo um autor de quinta categoria em site de internet!)
A dificuldade que surge em falar nesse aspecto protetor da interdependência auspiciosa e do esplendor é que todos queremos já imediatamente saltar para os entendimentos não duais: mal e mal geramos algum mérito, achamos que tudo tem um só sabor, e então, para nós, é a mesma coisa ver um seriado de TV ou ouvir um ensinamento. A sabedoria do taxista é a mesma do lama – e não é que estamos vendo o taxista como um lama, na verdade estamos reduzindo o lama à “sabedoria” do taxista!
Como estamos treinados no que é medíocre, nossa tendência é mediocrizar ainda mais.
Ou qual é a diferença entre comprar uma segunda ou terceira guitarra e fazer um retiro? Então se torna comum uma visão errônea em abusar da não dualidade dessa forma.
Além disso, existe uma verdadeira motivação democrática em não transformar o darma numa coisa muito inacessível. O darma pode parecer inacessível porque é muito complicado, ou porque é muito difícil de praticar, ou porque está em desacordo com as prerrogativas da modernidade, ou porque não parece atraente num sentido publicitário. Então muitos praticantes vão dizer que é por compaixão que colocam textos sobre o Dalai Lama na revista Hustler ou na Contigo. Ora, bundas e fofocas de celebridades são tão sagradas quanto Sua Santidade, ou algo assim, e estamos fazendo um grande favor aos seres ao colocar a figura do Dalai Lama ali. Vamos deixar de ser puritanos… Mas, novamente, estamos elevando a revista, ou estamos rebaixando Sua Santidade?
Mais ainda, quando os mestres se mostram “gente como a gente” e fazem irreverências, achamos adequado agir da mesma forma. Porém essas irreverências são adoráveis justamente porque sabemos que elas vêm de um lugar inesperado. É uma coisa absolutamente diferente um monge ser irreverente com você e você ser irreverente com ele. Nós estamos treinando interdependência com o que é auspicioso: é totalmente correto, para nós, nos sentirmos hesitantes, e um tanto reservados, na presença de representações do darma – tais como centros de darma, praticantes ordenados, textos e objetos consagrados.
Você deve buscar ser uma pessoa adorável, e se você não é alguém que sabe dosar muito bem a irreverência, muito cuidado! Melhor não.
Este é o momento de criar um assombro interior, cultivar compostura e delicadeza. Cultivar fineza, elegância, distinção, civilidade, deferência, decoro, desafetação. Não é o momento de mostrar como você é esperto, e jogar o monge nessa poça de cocô que você chama de ambrosia, porque afinal de contas é tudo tão não dual e além dos extremos! Talvez, apenas talvez, seja bom desconfiar se você não apregoou seu conceito de não dualidade a algo que lhe parece conveniente. Quem sabe? Mais seguro seguir o mais estrito dualismo de tratar o outro como superior, ou, no mínimo dentro de uma civilidade cuidadosa.
Ao fazer isso, você garante interdependência auspiciosa. Quanto mais auspiciosa, melhor, embora é claro, os grandes praticantes conseguem transformar qualquer interdependência numa circunstância auspiciosa. Para nós, melhor cuidado.
Aprenda a reconhecer o que não é esplendor. Ser chato e sem noção é falta de empatia, causada por aflições mentais. Desenvolva amor-próprio e compaixão pelos outros e aja com um mínimo de cuidado!
E claro, essas coisas não são valores inerentes. Elas são parte do treinamento da mente que está revelando a Terra Pura onde os ensinamentos são proferidos e ouvidos. Onde o darma é praticado. Estamos só pouco a pouco, coletando os materiais necessários para esse ninho, onde podemos alimentar nossa natureza de buda para ela um dia voar perfeitamente livre.
Este é o campo de mérito esplêndido que a linhagem de incontáveis praticantes do passado depositou generosamente em nossa confiança. Honrar esse mérito acumulado é fazer fulgurar o esplendor dos ensinamentos – não entregar o darma como um folheto para ser pisoteado na sarjeta. Não tratar o darma como produto. Não tratar o darma como qualquer coisa. Não tratar o darma como bailão. Não tratar o darma como área de comentário na internet. Não destruir uma floresta de plantas medicinais para vender um ou dois princípios ativos, e ainda fazer uma patente em seu nome e esconder como segredo industrial a linhagem do Buda.
É verdade que na paz última além dos extremos, não há diferença alguma entre alto e baixo, e o próprio budismo é só mais um obstáculo. Repare, no entanto, que isto é claramente dito pelos próprios ensinamentos budistas. Como é que o budismo diz algo assim sobre si próprio, e ainda mantém seu esplendor? Aquele aspecto de compaixão, quando não é distorcido com a parcialidade das mentes medíocres, quando é verdadeiro, não produz nada além do esplendor, a dignidade suntuosa e brilhante da Terra Pura espontaneamente presente.
Cultura, classe e darma como expressão relativa
Tamanha é a ênfase em ensinamentos não duais e de topo, que algumas pessoas se surpreendem com o fato de existirem estruturas tradicionais no budismo. Porém, o fato é que a expressão relativa do darma é tudo que o darma poder “ser”, num modo de existência e manifestação compreensível para seres que não superaram a força da reificação de seus hábitos e não seguiram para além dos extremos.
Isto é, nós.
Que sentido existe em louvar o que está além da dualidade? Corremos ainda o risco de reificar estes aspectos como conceitos e nos perdermos numa mera aparência de sofisticação. O que é a coisa mais comum de acontecer, diga-se de passagem.
Portanto, o que é miraculoso e deve ser louvado é o aspecto do darma que surge com esplendor, e justamente em meio à cultura. Isto é, o aspecto relativo, que é uma expressão natural do aspecto último. Não há verdadeira separação, o que nós queremos é uma dualidade que tenha mau humor com a dualidade, e isso não serve de nada.
Além disso, nossa pretensão etnocêntrica é achar que conseguimos separar do darma como um objeto intelectual aquele sabor de Índia antiga, e algumas vezes, até a própria figura do Buda.
No entanto, todos estamos no mesmo planeta, e aquela história também é nossa história. Isso só é difícil de entender porque ao reificar a diferença no outro, reificamos a diferença em nós mesmos. O aclamado psicólogo Carl Jung, tão adorado pela maioria das pessoas que também simpatiza com o pensamento asiático e o budismo, é um exemplo consumado desse tipo de atitude divisória. Em várias de suas introduções a traduções de textos asiáticos ele disse que “o budismo (ou a meditação, ou o taoísmo – variava de texto para texto) não é para o temperamento do ocidental”. E da mesma forma, muitas vezes consideramos que o que parece tradicional não é para o temperamento moderno.
Temos muitos preconceitos. E o pior não é que isso elimina muitas oportunidades de prática e de uma vida melhor e com mais sentido, mas que isso impede que sequer consigamos vislumbrar bem o que está sendo dito. Fazemos do que consideramos exótico uma barreira ou um fetiche, e as duas atitudes justamente impedem o reconhecimento da Terra Pura.
Em vez de nos elevarmos a uma dignidade atemporal, nos rebaixamos a um tempo ou outro. Nossa experiência de “um só sabor” é do achocolatado mais barato. E, quando por vezes vislumbramos a excelência e grandiosidade escancaradas nas atividades inconcebíveis de mestres realizados tão próximos no tempo e no espaço que alguns de nós os puderam tocar – e que sem dúvida seguem sem oscilação na atualidade mais presente – algumas vezes nos recolhemos porque esse esplendor é simplesmente demais para nós.
Preferimos comprar mais um livro qualquer e seguir lendo aleatoriamente sobre mais alguma coisa remotamente conectada com os ensinamentos libertadores.
Shariputra pergunta no Sutra do Coração como um “filho ou filha de nobre família” poderia praticar. Embora já aí tenhamos uma boa igualação de gênero, algumas vezes essa história de arya, nobre, nos incomoda. E não só porque seres malévolos no passado usurparam o termo para algum tipo de “supremacia da raça branca”. No mundo moderno, como já explicado, nos desfizemos da “nobreza”. Ela deu problema e jogamos fora.
Então generalizamos isso para todas as ocorrências de nobreza. E aí parece haver um erro.
Ainda assim, é verdade que há dificuldades. Como uma criança oprimida pela desigualdade pode se sentir um “filho de nobre família”, alguém capaz de praticar o darma, segundo Shariputra?
Embora o Buda tenha abolido o sistema de castas em sua comunidade monástica, será que essa expressão não implica um traço rançoso da aristocracia brâmane, tão preocupada com aquela pureza de que estivemos falando?
Como nós, almofadinhas ou desvairados, acadêmicos ou iletrados, pobres ou ricos – que não nos sentimos “puros” e “nobres”, muito longe disso – podemos praticar o darma? Nós nos sentimos esse consumidor que a publicidade nos ensinou a ser. Esse indivíduo separado, que sabe o que quer (que piada!), e que está no controle (na verdade, sob o controle) de suas compras. Não é surpresa que muita gente diga “ah, é impossível praticar o budismo na sociedade de consumo”. Será?
A resposta é, novamente, mérito e sabedoria, o esplendor da interdependência auspiciosa. Caso alguém se sinta digno dos ensinamentos, não importa a que classe pertença, os ensinamentos se aplicam. Isso é particularmente verdade com as disposições grosseiras da classe média e alta que conhecemos. Dinheiro e status não significam mais educação ou finura – muitas vezes pelo contrário. Em todas as classes existe uma decadência generalizada da nobreza e da dignidade.
No entanto, para praticar o darma é preciso reconhecer essa nobreza que é herança da pureza inata da realidade tal como ela é. Não é possível praticar o darma a partir da perspectiva velhaca das aflições mentais e do samsara. É óbvio que estas aflições estarão presentes, e as vivenciaremos por muito tempo ainda durante nossa prática – a prática visa trabalhar com elas e as suprimir ou transformar. Porém, nos colocar na posição de talvez um dia praticantes é por si só romper definitivamente com a perspectiva básica de falta de dignidade e pobreza moral que elas implicam.
Portanto, precisamos tentar viver e agir de acordo com isso. As pessoas associam, por preconceito cultural, até um tanto positivo, muitas qualidades aos budistas, por exemplo, calma e paciência. Pouca gente associa o aspecto esplêndido da deferência, e uma compostura totalmente idônea, ainda que desembaraçada. Embora, ao conhecermos mestres, é exatamente isso que primeiro reparamos neles. Um mestre é alguém que reconhece o que é natural, e assim, é alguém que consumou a interdependência com o que é auspicioso. Ele manifesta o esplendor. Acima de tudo, é isso que ele ensina, as palavras, que qualquer charlatão pode imitar, são secundárias.
E o riso e a irreverência?
Como qualquer um hoje em dia está percebendo, o humor pode ser positivo ou não. As pessoas vis regozijam com não virtude. Elas se divertem com a opressão dos outros, e com a manutenção de estereótipos. Até quando alguém sofre. Então, rir, por si só, é neutro. Não há um valor moral intrínseco em se divertir com algo.
Algumas pessoas podem ver seu senso de humor sendo desafiado pela prática. E isso ocorre porque havia algum problema com o senso de humor que a pessoa tinha. Outras pessoas acham perfeitamente natural o humor que existe dentro da atitude do esplendor.
Em particular, nossas próprias dificuldades são muito engraçadas. Não que os outros vão rir delas, mas o choque de nossa grosseria remanescente com o refinamento da Terra Pura é algo deleitável. E não há um juízo moral, porque nossa tentativa é sincera.
Particularmente no Tibete há muito humor em que o camponês ignorante comete uma série de gafes terríveis dentro do mosteiro – por exemplo, numa história famosa o sujeito deixa suas botas sujas no colo de uma estátua de Buda, e usa a manteiga das lamparinas para comer seus biscoitos – o que provoca muitas risadas. Mas, invariavelmente, o bom coração do sem noção acaba louvado em detrimento de sua falta de jeito.
Muitas pessoas ficam nervosas em centros budistas, porque elas temem se portar mal de alguma forma. Essa preocupação é até certo ponto boa e razoável, na medida em que ela revela uma percepção aguda sobre o esplendor. Ela só é ruim no caso da pessoa não conseguir superar suas inquietações e vir a se relacionar com suas potenciais gafes – que vão inevitavelmente acontecer. Esse refinamento, até em saber quando abrir a boca ou como se mover dentro de um centro de darma, é parte do aprendizado. Quanto mais reconhecemos a Terra Pura, mais esse cuidado se torna uma oferenda.
E esse cuidado vai além do centro de darma, é claro. Essa compostura e cuidado com o momento presente na circunstância que se apresenta, qualquer que seja, e a empatia com todos os envolvidos, bem como a interdependência com o que auspicioso e o esplendor, são elementos cruciais da prática. É nesse espaço livre de galhofa que surge o refúgio. A bodicita. As perfeições e as qualidades incomensuráveis: amor, alegria, compaixão, equanimidade, generosidade, ética, paciência, empenho, meditação, sabedoria. É aí que também surge a prática formal.
E os mestres são muito irreverentes. Eles quebram o nosso fascínio e nossa reificação – eles destroem nosso fetichismo para com o Buda, o Darma e a Sanga, de forma a efetivamente nos apresentar às três joias além de nossos preconceitos. E algumas vezes, historicamente, eles agiram de forma iconoclasta, quando as estruturas estavam se tornando prisões – o que inevitavelmente pode ocorrer.
Além dos extremos de iconoclastia e instituição, existe uma homeostase natural no darma que garante que ele não se torne um obstáculo para a realização. Não precisamos nos preocupar com isso. O que acontece mais é nos portarmos como bobos ao tentar dissolver o que nem mesmo começamos a mal e mal reconhecer ou produzir. Isso porque a irreverência é mais um produto cultural da ideologia moderna a que nos aferramos.
Mal vemos a estátua do Buda e começamos a gerar alguma interdependência com ela, e já a jogamos na lareira: “na não dualidade, esse lindo Buda é só madeira”. Uau, como somos profundos! Enquanto que o ato dos mestres do passado de usarem a estátua do Buda para se aquecer se deu num contexto auspicioso, apenas imitar a irreverência e iconoclastia é o cúmulo da deselegância.
O Campo de Mérito está disposto, a prática pode ser feita. Aspiramos além dos extremos, mantendo delicada compostura. Que sejamos capazes de respeitar os ensinamentos que produzem liberação, e gerar uma interdependência auspiciosa com todos os aspectos, culturais ou não, que fortifiquem nossa conexão. Que abandonemos as atitudes pueris, e que sejamos despertos pela gargalhada atemporal no deadpan do samadi. Que venhamos a manifestar o esplendor fulgurante da linhagem em que a mediocridade do samsara é extirpada pela raiz. Que eu e todos que veem algum sentido nisso possamos um dia nos tornar praticantes autênticos.
Padma Dorje é praticante budista e autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos. Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org.
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