Muitas terapias e formas de ver o mundo parecem ensinar que precisamos reconhecer e fazer amizade com o que seria nosso “lado negativo”, e que isso seria parte da cura e de se tornar uma pessoa “inteira”. Para o budismo, no entanto, toda a negatividade é aparente, e, portanto, inerentemente falsa. Como podemos evitar cair no extremo de acatar o engano, ao mesmo tempo sem desenvolver uma visão “poliana”, que esconde a sujeira para debaixo do tapete?
O budismo é um sistema bastante flexível, uma vez que as necessidades dos seres são bastante diferentes. De fato, nossas próprias necessidades podem variar bastante num só dia.
Os ensinamentos são classificados de várias formas de acordo com os contextos em que são empregados. Uma classificação inicial que se pode fazer é a entre perspectivas duais e perspectivas não duais, ou, o que algumas vezes se pode chamar de “de baixo para cima” e “de cima para baixo”, respectivamente.
Na primeira abordagem, olhamos para nossa realidade atual, reconhecemos o sofrimento ubíquo da experiência condicionada e cíclica (a que chamamos de samsara), e buscamos refúgio no Buda pelo treinamento da mente, que essencialmente é a acumulação de méritos e sabedoria. Nossa condição é a ignorância, nosso potencial é o estado de buda, e a prática é o que revela esse estado.
Nesta perspectiva, não há possibilidade de confusão entre nosso lado dito “positivo” e nosso lado dito “negativo”. Os aspectos ligados ao sofrimento e as causas do sofrimento são negativos e devem ser evitados. Assim, evitamos ações negativas, e treinamos a mente para que ela tenha menos visões errôneas da realidade, que projetam confusão sobre os outros, e nos fazem agir negativamente.
Na segunda perspectiva, porém, reconhecemos que, para a ignorância ser dissipável, é necessário que a realidade seja livre de ignorância em primeiro lugar; isto é, que a ignorância não seja algo real, mas uma característica adventícia, temporária. Então entendemos tudo, do samsara até o caminho que nos liberta do samsara, como fazendo parte de uma ilusão. Mas nem mesmo “ilusão” se torna aqui um termo pejorativo, uma vez que a realidade está sempre presente, quer a reconheçamos, quer não a reconheçamos. Então falamos em “ilusão pura” e “ilusão impura”, as duas não fazendo diferença nenhuma em termos da realidade – a natureza de buda – mas fazendo diferença em termos de haver ou não reconhecimento e usufruto dessa natureza.
Num sentido mais profundo, para o caminho dual ser verdadeiro, ele precisa se embasar no caminho não dual, e, por outro lado, o caminho não dual não poderia ter nenhuma má vontade ou a menor rejeição quanto a qualquer dualidade, fosse ela pura ou impura. Apenas usamos esses conceitos de forma a nos relacionarmos com nossa prática, bem como com nossa própria mente, que oscila entre o reconhecimento quase fortuito de certas verdades, hábitos que nos prejudicam e aos outros, e visões errôneas. Quando estabelecemos a ilusão pura do caminho budista, treinamos sistematicamente no reconhecimento do que realmente há, e os hábitos, visões errôneas e as oscilações no reconhecimento da realidade começam a paulatina e naturalmente se dissipar.
É esse aspecto não dual que muitas vezes é confundido com uma “reconciliação” com nosso lado negativo, ou uma integração, uma totalidade, em que positivo e negativo coexistem ou são mesclados. No entanto, essa é uma infeliz tentativa da visão dual se imiscuir no que seria a visão não dual propriamente dita. Na visão não dual, não existe negatividade alguma, ela é uma posição de uma positividade que está além da dualidade, e não projeta nenhum tipo de sombra em lugar algum.
Assim, embora na não dualidade não faça diferença alguma se estamos iluminados ou não, para nós e para os seres que nos rodeiam dentro dessa ilusão temporária, isso faz bastante diferença. E se, agindo de acordo com esse não reconhecimento da natureza inalterada da realidade, acrescentamos camadas de dissociação dela, isso é o que eventualmente rotulamos de “sofrimento”.
Uma das mais insidiosas formas de sofrimento e causa do sofrimento é exatamente a apropriação de ensinamentos não duais pela mente dual. Isso é bastante comum, todos nós somos culpados disso vez que outra, e assim, isto se torna um motivo para que atentemos a isso, sem novamente jogar essa negatividade para baixo do tapete. E dizer que “já que é assim mesmo, isso é natural, e faz parte”. Abandonamos esse tipo de atitude, sem ficar excessivamente neuróticos, mas também sem achar que as coisas estão resolvidas.
O que fazemos quando cometemos esse erro é assumir um relaxamento na “natureza última”, sem haver de fato um repouso nessa natureza. Essa presunção não só efetivamente impede esse repouso, como cria problemas mundanos também.
Explico melhor. Geramos um conceito, e talvez até algumas sensações, ligadas aos ensinamentos não duais. Eles ocasionalmente nos assustam, mas também nos reconfortam. Afinal de contas, tudo vai dar certo, está tudo correto desde o princípio sem princípio, nada que possamos sofrer ou fazer vai macular em um átimo nossa natureza incorruptível. Então jogamos a conta de nossa negatividade para dentro do saco desse conceito, e dessas sensações boas que vinculamos a essa ideia. Só que, cedo ou tarde, porque isso é um mero conceito sem poder algum perante a realidade. Quando formos inexoravelmente atropelados um pouco mais intensamente pelas causas e condições, nessa hora, podemos nem mesmo nos lembrar desse conceito. Ou, pior ainda, podemos lembrar, e imediatamente reconhecer o quanto ele era fajuto – só que nessa hora não pensamos “esse conceito é fajuto porque eu não o realizei, eu tinha só uma ideia dele”, o que pensamos é “isso não existe, estava tudo errado, e esses ensinamentos não servem de nada”.
Nesse momento projetamos nossa negatividade sobre os ensinamentos, e assim encobrimos nossa única possibilidade de um método sistemático para ir além dos conceitos na direção da experiência.
Quando somos assim desleixados com esses ensinamentos, os usando de desculpa, e os diminuindo a conceitos e umas poucas sensações momentâneas, o que ocorre é que perdemos aos poucos o grande mérito que nos colocou em contato com essas ideias. Começamos a corroer esse mérito como um filho pródigo, e quando vemos, o darma inteiro se torna alguma outra bobagem qualquer que passa pelo Facebook.
O que acontece, nesse caso, é que nosso ego se apropriou dos ensinamentos, como lhe é natural. Ele pegou essas ideias todas de não dualidade e, com sua “esperteza” costumeira, as usou para seu proveito. Ele justificou ações errôneas, dizendo que estava tudo bem, porque carma é um ensinamento expediente. Ele justificou não fazer prática, ou não seguir a receita cuidadosa dos budas, que prescrevem extensivas práticas preliminares. Ele justificou o prazer e o sofrimento até onde foi possível, sem nenhuma preocupação em transformar essas ideias em experiência, e sem nem pensar em cultivar a pouca experiência momentânea que porventura nosso mérito produzisse numa experiência estável. O que ele obteve, ele fixou, e usou até onde deu. E agora, acabou. E a culpa é dos ensinamentos. Claro que a culpa não é do ego.
É aqui que precisamos parar com o jogo de Dr. Jekyl e Mr. Hide que temos jogado. Estamos sendo levados pelas experiências, porque geramos conceitos sobre elas, e então, em nossa confusão, achamos esses conceitos suficientes. Mas eles são remendos. Logo depois a poção mágica do nosso carma nos agita, e de praticantes bonzinhos novamente nos transformamos em monstros.
Caso tenhamos um obstáculo realmente pernicioso, depois disso acontecer algumas vezes, e ainda em contato com o darma, justificamos toda essa bipolaridade novamente com alguma ideia tosca de não dualidade. Agora o Mr. Hide tomou conta dos ensinamentos, o ego se torna o discurso da ausência de ego, em que se pode ferir a todos, porque se está sendo “compassivo”. Fazer os outros sofrer é ensinar a eles sobre o samsara, não é mesmo? No limite, nos tornamos mestres falsos, sádicos.
É como alguém que olha para as deidades iradas e pensa que é ok cultivar a raiva. Então ela veste o ego com a imagem irada, e sai por aí cometendo ações não virtuosas. Enquanto que o budismo ensina o oposto: essa deidade é inerentemente boa, ela manifesta a intensidade porque está “vestida com as roupas do ego”. Então, não há raiva nenhuma, trata-se de uma expressão de compaixão. Porém, solidificamos a aparência da deidade, atribuímos alguns conceitos errôneos a essa aparência, e nos tornamos exatamente o que chamaríamos de “demônios”.
Como corrigir esse tipo de confusão, antes que saia de controle? A atitude de um praticante é sempre respeitar a dualidade. “Embora minha visão seja ampla como o céu, meu discernimento se mantém com a precisão necessária para identificar os grãos separados da farinha”, essa é uma paráfrase explicativa do que foi dito por Guru Rinpoche. No mundo dual, entregamos as rédeas para Dr. Jenkyl, e usamos o darma para evitar Mr. Hide. Reconhecemo-lo, mas não nos identificamos com ele, e muito menos usamos a não dualidade como desculpa para sua existência ou para suas ações.
Historicamente, muitas visões falam desse não dual que é uma espécie de mistura de bem e mal. A deidade gnóstica Abraxas algumas vezes é entendida assim. Depois temos aquela visão nietzschiana, em que se deveria estar “além do bem e do mal”, no sentido de não estar preso a uma “moralidade covarde” ou “fraca”, de obediência e caridade, digamos. Porém, a visão budista não é nem um pouco assim. Ela não joga as coisas duais na não dualidade como uma desculpa para a dualidade: é basicamente o contrário disso. Nós não salvamos Mr. Hide, porque, no fundo, ele é não dual. O que fazemos é reconhecer que a dualidade não está em contradição com a não dualidade; afinal de contas, se assim fosse, a não dualidade ainda seria ainda sutilmente dual – como no caso das visões gnóstica e nietzschiana. Assim é correto sistematicamente evitar a negatividade: essa é a expressão da não dualidade em meio ao dual. Na outra perspectiva, haveria ainda um comprometimento com o negativo, como se negativo e positivo fossem apenas igualados ou ignorados, sem reconhecer que no fundo são filtros de uma experiência transcendente e completamente positiva.
A “totalidade perfeitamente boa” não admite a redenção da negatividade, ou sua justificação. Não é como se peguemos a visão dual, passemos cloro, e deixemos as duas coisas de uma cor só, meio sem cor. Não é como se a visão dual possa se apropriar da não dualidade e dizer que está tudo bem, porque sempre esteve tudo bem. Isso só é verdade da perspectiva realmente não dual. Nessa perspectiva não há uma “negatividade” que foi integrada, nunca houve, em nenhum momento, negatividade. A negatividade existe como algo a ser combatido na perspectiva dual, que não é negada. A perspectiva errônea cria uma dualidade entre dual e não dual, dizendo que o que é dual é errôneo, e que praticar moralidade é uma perda de tempo. Sendo realmente não duais, a dualidade é aceita, e assim a moralidade é uma expressão dessa não dualidade no âmbito dual.
A dualidade é assim plenamente integrada como uma expressão de riqueza da não dualidade. Combater hábitos perniciosos, participar de um caminho gradual, praticar ética e seguir o caminho budista no que ele tem de dual, é efetivamente uma expressão dessa positividade íntegra não dual se manifestando na dualidade. A ética transcendente se manifesta no mundo através do treinamento da mente. O treinamento da mente só é possível porque, num sentido fundamental, o fato da mente poder ser treinada indica uma flexibilidade da mente, que em si, é completamente positiva. As práticas com esforço são o próprio regozijo e exercício da visão sem esforço. Quando o darma se torna difícil para nós, podemos ter certeza de que é um abandono dessa perspectiva ampla, e mais um passeio pela experiência alucinante e perdida, cheia de sofrimento e causadora de sofrimento, de Mr. Hide. Uma visão em que o não dual se torna uma desculpa, um conceito, e não participa ativamente do dual como riqueza inerente.
Assim, muitas vezes a cultura vai tentar nos convencer de que é “natural” ter raiva. São imperativos biológicos. Dr. Freud disse que está tudo bem. “No fundo a raiva revela nossas necessidades”. A última onda da autoajuda se torna algo como “desperte seu psicopata interior”, nem que isso não represente atacar alguém fisicamente, mas enchê-lo de “discussão de relação”, até o fim dos tempos, numa passividade agressiva sem fim. Autocompaixão se torna a fonte da compaixão, quando exatamente o oposto é a verdade.
Na perspectiva do darma, onde nossa confusão é adventícia, encontrar a lucidez é uma não dualidade de dualidade e não dualidade, que não nega nada, e abarca tudo numa positividade infalível. Mas quem está se apossando desses conceitos? Mr. Hide vai usar isso como desculpa para não fazer prática, e até mesmo, não fazer nada – ou, no limite, para vender cursos e manipular os outros. Dr. Jenkyl, por outro lado, é ponderado, sensato: ele vai se engajar nos métodos duais até obter uma confiança inquebrantável nesses métodos, que se tornará uma confiança inquebrantável em sua fonte, o Buda, nossa verdadeira natureza.
Sem desculpas, o darma é simples: é encarar nossos obstáculos de frente, e através dos métodos fornecidos pelo maior professor, vencê-los todos, sem nenhum senso de conquista própria. O júbilo dos budas é a certeza não mitigável na própria natureza como perfeitamente boa. Desfrutar essa riqueza é algo maior do que qualquer experiência condicionada que possamos conceber. É maior do que todas elas juntas. Todos os seres podem despertar para esse reconhecimento, mas muitas vezes se enredam numa teia infinita de picuinhas e justificações. Que eles todos encontrem, no meio desses fios todos, o fio deixado pelo Buda, o fio que nunca produz nós, e que leva ao reconhecimento incessante da própria natureza como liberdade espontânea. Que eles não larguem esse fio, e que eles reconheçam seu valor, que eles persistam até o final, mesmo quanto todo resto ainda parece ter algum apelo brilhante, ou parece ser intransponível.
Padma Dorje é praticante budista e autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos. Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org.