Budismo, soro antifilosofídico Padma Dorje

Budismo e academia

Frequentemente surge essa questão sobre a natureza filosófica, ou religiosa, ou até científica do budismo.

A tentativa de “enquadrar o budismo” é algo como querer voltar no tempo e explicar um software moderno de Digital Audio Workstation – onde se grava, mixa, masteriza e produz música – para alguém no período barroco, como Johann Sebastian Bach.

Bach não é nada estúpido – muito pelo contrário, é claro –, mas ele não sabe sequer o que é um gravador. Aí você começa: “bem, há uma tela – uma espécie de espelho negro em que coisas se movem – e em que você tem a música representada…” Ah, ótimo, é uma espécie de partitura! “Não exatamente, há outros modos de representação das ondas de som no tempo, e também há esse cone de papelão ligado a um circuito elétrico que produz som”. Ah, mas é um instrumento, então! “Hm. É como vários instrumentos que você organiza no tempo com essa caixinha que fica ao lado da tela e que você arrasta, mas que no fundo são apenas números armazenados em estados quânticos excitados em semicondutores.” Pobre do Bach! Talvez, se levássemos o equipamento conosco e o demonstrássemos a ele, aos poucos ele entenderia, e ficaria bastante interessado naquilo, talvez até produzindo grande música. Quem sabe?

Agora, quando certos elementos iconográficos mostram fitas, disquetes, sintetizadores vintage e outros equipamentos e instrumentos que Bach nunca viu, a cada instância poderíamos até explicar de onde vem aquilo na história da tecnologia de música e computadores, mas, por outro lado, se Bach conseguir usar a ferramenta, ele não precisa saber exatamente de onde veio o ícone do disquete.

Com o budismo é bastante parecido.

Quando se fala em budismo geralmente nos vemos tendo que convencer as pessoas de que existe muita coisa interessante para se conhecer além das preconcepções comuns sobre a tradição. Até mesmo, ou talvez particularmente, no contexto acadêmico – dado que este é um setor em que a sistematização ela própria cria marcas e formas de ver mais sólidas, mesmo porque mais “precisas”. A institucionalização do conhecimento o torna mais sério, e mais resistente a visões que podem ser muito diferentes.

Estas preconcepções e marcas mais e menos sólidas são nossos maiores obstáculos em entender do que o budismo se trata. Logo queremos dizer algo como “ah, budismo não é uma religião”, ou dizer que é uma filosofia, algo assim. De forma geral, isso tem mais a ver com marketing do que propriamente com uma avaliação criteriosa do que é o budismo e do que são essas coisas em comparação com o que o budismo apresenta.

Da mesma forma que Bach tentaria entender a DAW de acordo com certas preconcepções de sua época, muitas pessoas ao primeiro se depararem com a imensidão que é a expressão da força da bênção do Buda em todas as dimensões (mesmo “mundanas”: literária, artística, civilizatória), muitas vezes começam essa tentativa de caracterizar o budismo como uma religião, ou uma filosofia, e às vezes, uma ciência. E, como com o software onde se faz produção digital de música, estes conceitos que nos são mais familiares (instrumento, partituras, andamento, compasso, tempo, notas), etc. até “existem”, mas nenhum deles descreve o fenômeno adequadamente. Da mesma forma, os termos religião, filosofia ou ciência – publicidade, economia, psicologia, etiqueta, poesia, política – não conseguem aproximar o que é próprio do Budismo. E há elementos que parecem simples no budismo, como “treinamento da mente”, que implicam várias coisas que muitas vezes não nos são óbvias, como o fato de sermos regidos por hábitos, e o fato da mente ser flexível e poder ser moldada – além do que “meditação” é visto apenas como sentar imóvel, e algo como montar um altar é chamado de “prática religiosa”, assim por diante.

De fato, quando falamos de religião, ciência, filosofia, etc. existe confusão quanto a esses sentidos até mesmo no uso tradicional deles em nossa história de ocidentais, sem sequer entrar no budismo. A discussão sobre essa nomenclatura e essas perspectivas não está encerrada de modo algum.

Por exemplo, a filosofia é, sem dúvida, universal em certo sentido: no mesmo sentido em que o cristianismo, ou o budismo, são universais. Isto é, qualquer um pode acreditar em Jesus e seguir aqueles procedimentos cristãos, com essa ou aquela variedade. O cristianismo pode ser praticado por qualquer um. Da mesma forma, os problemas, estruturas e preocupações da filosofia podem ser apropriados por qualquer um. Nesse sentido se pode dizer que a filosofia tem uma clara pretensão de universalidade.

Porém, essa pretensão só faz sentido de dentro das preocupações estritamente filosóficas. Ela, em si, não é universal – em outras palavras, é uma proposição filosófica dizer que a filosofia é uma atividade humana, e não grega ou europeia. Faz parte de certo corporativismo filosófico ver a filosofia como essa coisa consagrada a uma ausência de viés – o que efetivamente pode tornar seus viezes ainda mais perigosos!

Sabem-se lá quantas pressuposições próprias dessa forma de vida são agregadas, inconscientemente, quando alguém assume a tradição filosófica europeia como parte de uma atividade pessoal de pensar sistematicamente. E os resultados encontrados ali, embora, concordemos, sejam “universais” em certo sentido, tal como a aritmética, por exemplo, não os tornam necessariamente essenciais como a aritmética. (Se é que a aritmética é essencial: para os Pirahã não é.) Boa parte dessas questões, como de fato é tratado em algumas tradições específicas, são próprias ao uso da linguagem, e em certo sentido, próprias à língua natal de alguém. Como um filósofo comentou: um político francês certa vez afirmou que a língua francesa devia ser a melhor de todas, uma vez que apenas nela se escreve na mesma ordem em que se pensa. Deus tinha sido realmente generoso em fazer o mundo se conformar tão bem à língua francesa!

A filosofia se pretende universal, mas embora não reconheça isto, no fundo age de uma forma não essencialmente diferente ao trabalho missionário do cristianismo. Ela apenas não reconhece a alteridade, qualquer forma de pensar sistemático leva, segundo a filosofia, às mesmas preocupações e problemas dos gregos, alemães, ingleses e franceses.

A própria noção da “secularidade” é uma invenção filosófica. Os gregos tiveram esse momento de superação ou desconfiança quanto aos mitos, e esse momento se repete no revival ou cosplay da filosofia grega, perpetrado desde a renascença e culminando no iluminismo. O jogo colonial é sempre tríplice: conversão religiosa, conversão “civilizatória” e exploração, um aspecto do qual é a apropriação cultural. E hoje há grande tensão no mundo quando queremos aceitar o multiculturalismo, e ao mesmo tempo negar certos aspectos, digamos do islã, que não são compatíveis com o convívio no mundo moderno (infibulação, ou o apedrejamento de homossexuais, etc). Isso ocorre porque queremos ser imparciais, mas, ao mesmo tempo, sabemos que a imparcialidade é muitas vezes cega, e tem pontos de impacto com a parcialidade.

Não queremos ser tolerantes com a intolerância, é óbvio.

Nossa tradição legal, constitucional, e nosso modo de lidar com a coisa pública, e com as outras culturas, para o bem e para o mal, vem dessa perspectiva filosófica grega. Sem dúvida que dentro disso há coisas ótimas – talvez as melhores já desenvolvidas – mas sempre há pontos de aperfeiçoamento, e problemas graves. Coisas como o profundo problema ambiental que a revolução industrial e os valores liberais nos deixaram – mas, sem dúvida, não apenas isso.

De todo modo, há um enorme estranhamento no contato com a força alienígena de um modo fundamentalmente diverso de pensar. Espero, por exemplo, que a analogia com o DAW que fiz acima não implique na mente de ninguém a superioridade seja de um compositor consagrado ou das ferramentas modernas de fazer música. Uma pessoa que prefere Bach pode dizer “só fazem música ruim ao computador mesmo”, enquanto que outra pode achar incompreensível haver pessoas ainda interessadas nas mesmas duas dezenas de timbres e nos maneirismos próprios da música da câmara barroca. O ponto aqui não é dar a preferência para nenhum modo, mas reconhecer que há uma incomunicabilidade, embora as duas coisas possam ser rotuladas de “fazer música”.

Diferentemente da filosofia, o budismo, por exemplo, não descobriu apenas no séc. XX que não existe isenção possível ao examinar algo. Que qualquer coisa que observamos, se altera por nossa observação. Isso podia ser desconfiado na visão Europeia, antes da descoberta de certos experimentos de nicho no séc. XX, mas de forma geral, sempre, devido aos gregos, acreditamos numa espécie de independência radical, que possibilitaria alguma espécie de imparcialidade total.

O pensamento asiático, no entanto, sempre foi muito desconfiado dessa separação, mesmo antes do Buda.

No limite, hoje, quando o budismo é observado no laboratório da academia, ele é em certos sentidos, como um panda. Ele não se “reproduz em cativeiro”.

O budismo examinado pela academia se torna necessariamente uma espécie de “budismo de museu”, um rato de laboratório ou animal a ser dissecado. Porém, muitas vezes essa apropriação cultural é vista com benevolência, uma vez que a academia é a forma de justificação por excelência da relevância de algo. E o budismo parece ter tanto apelo exatamente porque ele é peculiar, até mesmo no contexto da Ásia. O que o torna interessante possivelmente é essa mesma qualidade diáfana que fenece sobre observação num laboratório estéril. Mas essa constante dissecação e experimentação com o budismo (metaforicamente falando, cursos de filosofia ou sociologia não tem “laboratórios” de verdade, é claro), feita com essa ótima intenção e com essa ideia de “olha só como o budismo de vocês está sendo bem recebido em nossos maiores centros de aprendizado”, no fundo pode ser uma grande degradação para o darma. Repetidas vezes, de fato, se mostrou assim.

E com isso não estou dizendo que a polinização cruzada das culturas não seja enriquecedora. Claro que é. Nem todos os estudos de budismo são feitos com um viés dominador ou subserviente (as duas coisas são comuns, o mito do “bom selvagem” a ser salvo e do “oriental sábio” capaz de nos ensinar algo se misturam), nem todos eles são feitos “de fora”, uma vez que há departamentos em universidades importantes com professores que confessam seu refúgio nos ensinamentos – que não são meros estudiosos, mas participantes do modo de vida budista. No entanto, no Brasil, em particular, isso ainda inexiste.

O que temos aqui, e em muitos lugares, é mesmo exatamente como o exame distanciado de um cadáver. Uma tentativa de apropriar (usurpar, plagiar) ou expor em museu artefatos do passado. A tentativa de apropriar vem principalmente da psicologia, da maioria das formas de “mindfulness”, enquanto que o “budismo empalhado” é mais comum na filosofia, que dialoga com Nagarjuna, por exemplo, sem contato algum com a tradição viva que estuda e prática de acordo com a linhagem de Nagarjuna – sem sequer reconhecer sua existência. De fato, sem nem mesmo dialogar com outros trabalhos acadêmicos feitos na área, por departamentos em que há budistas confessionais.

Ademais, a posição do que seria chamado de “pensamento sistemático” no budismo não é muito entendida. Num extremo, o budismo parece irracionalista e incapaz de diálogo, e em outro extremo, apenas mais um sistema de ideias. Porém, o uso do pensamento sistemático no budismo tem seu lugar. Em primeiro lugar, quando refletimos sobre os ensinamentos, aprendemos a pensar no contexto de prática formal, que é diferente do pensar desordenado cotidiano, ou mesmo do pensar sistemático que visa a construção de conhecimento. A reflexão sobre os quatro pensamentos, por exemplo, uma prática fundamental em todas as escolas do budismo tibetano, nos leva a considerar nossa condição, e a pensar até o fim sobre ela. O objetivo não é construir conhecimento, saber mais sobre isso ou aquilo, e dominar um assunto, mas produzir uma certeza sobre a necessidade de refúgio e prática.

Outro sentido em que o pensamento sistemático é usado no budismo é como “soro antifilosofídico”. O budismo reconhece certos aspectos do que chamamos de filosofia – uma pessoa mais cínica diria todos – como obstáculos à prática do darma. Assim, os ensinamentos sistemáticos são estabelecidos, até certo ponto, com base no “veneno” que combatem. Isto é, embora se pareçam com filosofia, visam somente destruir qualquer reificação conceitual ou camadas secundárias ou terciárias de engano. O objetivo de refutar as visões todas é produzir um “vaqueiro”, isto é, uma pessoa comum, que tem os problemas comuns de qualquer ser humano – porque esse é o praticante potencial, já que não está enganado por uma série de noções intelectuais estapafúrdias. É essa pessoa que vai conseguir refletir sobre os quatro pensamentos sem ficar engajado em intelectualismos tais como religião comparada e metafísica. O filósofo tem menos mérito, porque além de praticar tudo que o vaqueiro vai praticar, ele precisa chegar na posição do vaqueiro para ser capaz de praticar. Ele precisa se desfazer da filosofia!

Para a pessoa que tem esses problemas, então há vasta literatura budista que a princípio parece dialogar nesse nível, mas que, na descrição claramente apresentada pelo próprio Nagarjuna e muitos outros, é apenas antídoto para a filosofia: apenas superficialmente se parece com seu veneno.

O que acontece no fundo é que nesse choque do oceano do darma com os rios (nem sempre limpos) do pensamento ocidental, nesta transição do darma para a modernidade, certas coisas boas até se formam, mas também distorções.

Ainda assim, a tecnologia espiritual do budismo permanece até hoje intacta, e pode ser vivenciada em seu modo tradicional, ou em miríades de tentativas de adaptação de qualidades variadas.

Digamos que você seja um jovem acadêmico interessado em fazer trabalhos sobre o budismo – seja em termos de medicina, psicologia, sociologia, religião comparada ou filosofia. Quais são os principais cuidados que você deve tomar?

Primeiro você deve examinar sua motivação. A pergunta é: meu interesse é o budismo, e eu gostaria de me aprofundar nele? Ou meu interesse é a academia, e o budismo é uma conexão positiva que eu posso fazer?

Caso sua motivação seja conhecer e praticar o budismo, minha recomendação é deixar a academia para depois. Digo, você até pode continuar fazendo seu trabalho acadêmico, mas evite a todo custo misturar o darma. Se você quer praticar, não estude o darma no contexto da academia, isso só vai complicar sua vida nos dois âmbitos. São necessários vários anos de prática e estudo para se estabelecer uma fundação adequada para poder se começar a fazer qualquer estudo comparativo. Também a tendência de fazer do budismo um trampolim promocional ou espantalho para exibir em museu vai diminuir com o tempo; se você começa metido nisso é mais fácil cair nessas tentações. Mesmo que você não deseje explicitamente agir assim, na medida em que as fundações não estão estabelecidas, é quase certo que, ao misturar o darma com seus objetos de estudo, você objetifique o darma.

A visão acadêmica não é a melhor ou mais adequada forma de conhecer o budismo. Mesmo em se tratando das melhores universidades, com departamentos chefiados por budistas confessionais. A melhor forma de conhecer e estudar o budismo é justamente no contexto budista, fazendo retiros, viajando e conhecendo professores budistas, acadêmicos ou não.

Caso seu interesse prioritário, no entanto, seja a academia, e o budismo para você seja apenas um adicional positivo que você reconhece, neste caso a recomendação segue sendo procurar budistas confessionais. Isto é, não se deve estudar, mesmo de uma forma puramente acadêmica, o budismo com alguém que trata o darma como um objeto externo. A noção de uma imparcialidade na separação do objeto de estudo pode valer para algumas áreas de conhecimento, mas no caso do darma, a forma de vida budista é a base do conhecimento budista, e não o contrário.

Lembre, não estamos lidando com a filosofia, que se propõe neutra, sem verdadeiramente ser. O darma se reconhece como uma peculiaridade. Isso é muito difícil das pessoas entenderem, porque aprendemos a valorizar aquilo que se propõe universal num sentido imparcial ou neutro, sem ponto de referência. Mas o darma só não tem ponto de referência enquanto realização! Enquanto modo de apontar a realização, ele é o primeiro a dizer: olha, sou apenas um dedo apontando para a lua. Achar que o darma pode não ter nenhuma cara específica, como no darma da realização, é confundir os aspectos e tender para um extremo em que a peculiaridade ela mesma não pode nos ensinar algo. É porque o budismo não mente quanto a ser algo limitado e expediente – que aponta para algo ilimitado e não expediente – que o budismo é realmente diferente com relação a qualquer outro sistema de pensamento e força civilizatória que se manifestou neste mundo.

Neste segundo caso, em que a academia é seu foco, e o budismo é uma curiosidade, muitas vezes, especialmente na área de psicologia e sociologia, acontecem investigações etnográficas de retiros budistas. Ou seja, o estudioso vai e participa, como curioso, de algumas atividades.

Parece até que ele está imerso no objeto de estudo, não é?

Mesmo aqui há problemas muito difíceis. Conversei com uma pesquisadora na área de psicologia que fez um Seshin – um retiro no Zen, uma forma de budismo japonês em que se frisa muito a meditação em silêncio, em imobilidade do corpo, por várias horas durante o dia. Essa pessoa afirmou não ter a menor intenção de tomar refúgio antes do Seshin, e seguiu da mesma forma até hoje.

Embora os retiros no Zen sejam, em geral, abertos para quem quiser participar, sem requerimento de qualquer filiação formal ou informal com o budismo, o que ocorre é que alguém participando de um evento em que se fica cerca de dez horas por dia imóvel, sem a perspectiva fundacional do budismo – refúgio no Buda, ânsia pela superação do samsara – vai sofrer um bocado. Quer dizer, muitos iniciantes também sofrem, mas eles sofrem pelas suas mais elevadas aspirações espirituais – não para obter subsídios acadêmicos.

É claro que a pesquisadora fugiu de várias sessões, e me confessou ficar sabotando a própria prática de meditação “para ajudar a passar o tempo” (por exemplo, cantando internamente, ou mapeando a parede à frente com os olhos). Evidentemente, se você não tem a perspectiva correta, meditar esse tempo todo por uma semana ou mais é apenas nada mais do que tortura. Os organizadores desses eventos nunca vão impedir alguém de participar, porém essa pessoa vivenciou mesmo um Seshin? Não! Ela ficou perto de outras pessoas fazendo prática e, algumas vezes, fingiu fazer prática. Que tipo de validade tem isso? E se a pessoa não tem uma capacidade reflexiva mais aguçada, ela pode até sair dali xingando retiros Zen! Ora, são tão desconfortáveis e entediantes!

A motivação correta para fazer um Seshin é o refúgio no Buda. É querer sentar como um buda. É de fato sentar como um buda. Não é “observar como é o budismo”. Se a pessoa participa de um Seshin com essa motivação, ela estar ali no meio ou a 3000 km de distância não vai fazer a menor diferença.

Outras atividades em certas formas de budismo são evidentemente fechadas a curiosos. O retiro funciona melhor quando só há gente bastante comprometida. Qualquer pessoa cheia de dúvidas e com outros objetivos ao nosso redor só pode dificultar a prática de todos. Então, mesmo que os centros de darma sejam abertos a serem estudados, estes estudos são de fato muitas vezes invasivos e no fundo não tão positivos nem para o grupo sendo estudado, nem para a pessoa que estuda o grupo.

É possível desenhar um estudo menos invasivo? Sim, porém qualquer estudo “feito de fora” estará cheio de viés e não vai descrever o budismo. Embora na sociologia se trate muito dessa questão, o que ocorre muitas vezes é que o sociólogo se “disfarça” bem, o que é ainda mais problemático. Isto é, não só ele pode esconder que é um sociólogo, mas ele finge, até para ele mesmo, que é um budista. Essa tentativa de aproximação só pode produzir ainda mais estranhamento.

Os melhores trabalhos acadêmicos sobre o budismo são, sem dúvida, os feitos por budistas. Porém, segue valendo aquela advertência, de que começar pelo trabalho acadêmico não é o melhor.

Muitas vezes a metáfora que me surge para falar da aproximação com o budismo é a do relacionamento romântico.

Você não se aproxima da pessoa querendo algo, ou não apenas querendo algo, mas oferecendo algo. E não é apenas uma oferta mútua de prazer ou de bons momentos “por um tempo”. É uma perspectiva de compromisso definitivo que vai se formando. O budismo é “para casar”, se vamos levar essa metáfora para uma expressão infame do machismo.

Não que o budismo não sirva para outros tipos de relacionamento – mas nesse caso, você obtém do budismo o que você espera dele.

Se você espera dele dados de pesquisa, ele dá dados de pesquisa. Se você espera um trabalho legal, que outros vão ler e achar bom, talvez você consiga isso. Porém, há muitas coisas que o budismo não vai revelar se a motivação for essa; a sua melhor parte, para ser sincero.

Caso alguém queira conhecer o darma de verdade, o deve “tratar direito”, com compromisso, sem colocar nenhuma limitação no que esse contato pode prover. Sem esperar nada específico, mas com aspirações vastas sobre benefícios para si próprio e para os outros.

O seu objetivo é ser um só com o darma, um só com o Buda. Você quer corporificar essa sabedoria, para benefício seu e de todos os outros. Você não quer apenas contar para os amigos que ficou com aquele darma supercobiçado, ou usar o budismo para parecer espiritualizado, profundo e na moda. Muito menos para supostamente tornar seu estudo acadêmico menos chato, para ver se acha algum sentido no que está fazendo na academia, e muito menos para tirar proveito mundano do darma.

 

A perspectiva do compromisso com a natureza desnuda do sentido último é alegre, imparcial, amorosa e interessada. O darma não é como os sistemas de pensamento que se tornam moldes e limitações, mas é a própria expressão da liberdade perante fixações. Ao nos aproximarmos mesmo de algumas palavras sobre impermanência ou sobre a raridade e a profundidade dos ensinamentos do Buda, nossa atitude não é estratégica, não é no sentido de “como posso usar isso para aquilo”. Nossa atitude é integrativa, “como posso me tornar isso”. Nossa atitude é cuidadosa, “embora eu entenda as palavras, reconheço que ainda não opero naturalmente de acordo elas”. Nossa atitude é final, “enquanto eu não integrar isso, não vou perder tempo com qualquer outra coisa”.

Que o mérito do contato com o darma, fruto de ações positivas e aspirações exercidas sistematicamente por milhares de vidas, não seja desperdiçado em frivolidade. Que não usemos ouro para adornar excrementos.

eduardo-pinheiro-1Padma Dorje é praticante budista e autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos.  Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org.

Comentarios:

comments

  • Gratidão pelo texto 🙂

    Quando o livro for publicado por “editoras budistas” como Wisdom Publications, Shambhala Publications ou Snow Lion Publications podemos considerá-lo “seguro” (mesmo que o autor não tenha nome budista)? ^^

    • Se vc é praticante, estritamente o livro é seguro se o seu professor o recomenda publicamente ou, melhor ainda, direta e especificamente para você. De outra forma, melhor não ficar estudando qualquer coisa, mesmo que de fonte confiável. Você precisa usar o pouco tempo que vc tem nessa forma humana de forma coerente.

      Se vc é um estudioso mais do que um praticante, o que em termos de budismo vai implicar que vc não entende bem o que lê ou tem algum problema com seu refúgio, daí é ok ler aquilo que pelo seu critério e pelo seu nível de refúgio não vai ser contraproducente.

      Se você é um estudioso, não é um praticante, mas se interessa no budismo e considera um dia tomar refúgio, então é bom verificar as credenciais do autor, dando valor tanto a credenciais acadêmicas mundanas quanto a credenciais dentro da tradição budista, com preferência às últimas.

      Se você é um estudioso, não é um praticante e não pretende tomar refúgio, então observe bem as credenciais mundanas dos autores.

      O selo editorial não garante nada, a não ser que seja um selo ligado a um só professor, que seja confiável. No caso da Shambhala (Snow Lion é um selo da Shambhala hoje em dia) e da Wisdom, a maioria dos livros é ok, mas eles são mais uma empresa do que uma editora de sangha ou de um professor, e há títulos ruins tb.