Opiniões: você se apega as suas? Pema Chodron

Quando nos apegamos obstinadamente as nossas opiniões por mais legítima que seja nossa causa, estamos simplesmente adicionando mais agressividade ao planeta e com isso aumentando a violência e o sofrimento. Cultivar a não agressão é cultivar a paz.

Uma das melhores práticas para a vida cotidiana, quando não temos muito tempo para meditar, é perceber nossas próprias opiniões. Quando estamos praticando meditação sentada, faz parte da técnica estar consciente dos próprios pensamentos. Então, sem julgamentos, sem classificá-los como certos ou errados, simplesmente reconhecemos que estamos pensando. Esse é um exercício de não agressão em relação a si mesmo e é também uma prática que traz à tona nossa inteligência – ver que estamos apenas pensando, sem acrescentar qualquer tipo de esperança ou medo, louvor ou culpa. No entanto, quando sentamos para meditar, nem sempre nos saímos tão bem. Perceber que estamos pensando, mesmo quando isso acontece apenas por um quarto de segundo durante uma hora inteira, frequentemente vem acompanhado de culpa ou louvor. É bom ou mau. Seja como for, outros aspectos estão envolvidos, além de simplesmente rotularmos esse processo como ”pensando”.

 Entretanto, após praticarmos meditação por algum tempo, vai se aquietando pelo simples fato de estarmos conosco sem qualquer outra atividade além de estar atento a própria expiração e perceber os pensamentos. Como consequência, aprofundamos cada vez mais nossa percepção. Quer sintamos ou não esse processo, a verdade é que ele está ocorrendo. Na meditação, nós nos permitimos mais espaço, e começamos a ver o que surge com clareza e intensidade crescentes. Vemos que, o tempo todo, produzimos muitos pensamentos e também que surgem lacunas em toda essa tagarelice. Podemos ainda perceber nossas atitudes diante do que está acontecendo. Com isso, entramos em sintonia com nossos padrões habituais e vemos o que fazemos e quem somos no momento em que usamos ideias e opiniões para impedir nossa própria desintegração.

 Quando não estamos meditando, também podemos começar a perceber nossas opiniões, da mesma forma que percebemos nossos pensamentos durante a meditação. Essa prática é extremamente útil, pois temos muitas convicções e uma tendência a achar que elas representam a verdade. No entanto, não é bem assim. Elas são apenas nossas opiniões. Nós as sustentamos com grande apoio emocional. Frequentemente, exprimem julgamentos e críticas. As vezes, refletem nossa apreciação ou elogio. De qualquer modo, temos muitas opiniões.

 Opiniões são opiniões, nada mais, nada menos. Podemos começar a percebê-las e rotulá-las como tal, assim como rotulamos nossos pensamentos. Por meio desse exercício simples, entramos em contato com a noção de ausência de ego. O ego nada mais é que o conjunto de nossas opiniões, mas nós o consideramos solido e real – uma verdade absoluta. Ter ao menos alguns segundos de dúvida sobre a solidez e verdade absoluta de nossas próprias opiniões, ao menos começar a ver que elas existem, leva-nos a conhecer a possibilidade de ausência de ego. Não temos de nos livrar delas, nem nos criticarmos por tê-las. Podemos apenas observar o que dizemos a nós mesmos e perceber que grande parte disso só reflete nossa visão particular da realidade, que pode ou não ser compartilhada pelos demais.

 É possível simplesmente deixar que nossas opiniões passem e voltar ao momento presente. Voltamos a olhar o rosto de quem está a nossa frente, a saborear nosso café, a escovar os dentes, ou ao que quer que estejamos fazendo. Quando, ao menos por um instante, conseguimos perceber nossas opiniões como opiniões, permitindo que elas se dissipem e voltando a qualidade imediata de nossa experiência, descobrimos que estamos em um mundo novinho em folha, que temos olhos e ouvidos novos.

 Quando falo em perceber nossas opiniões, estou me referindo a um método simples para começar a prestar atenção no que pensamos e fazemos, e na grande quantidade de energia que acompanha esse processo. Então, é possível também começar a observar como tornarmos as coisas sólidas e como é fácil iniciar uma guerra para que nosso ponto de vista prevaleça sore o dos demais. Somos especialmente tentados a fazer isso quando estamos envolvidos em algum tipo de causa social.

 Vamos utilizar o exemplo da camada de ozônio. Estamos certos, quando afirmamos que sua diminuição é um fato cientifico não uma mera opinião. Entretanto, se tentarmos impedir essa destruição tornando sólidas nossas opiniões contra aqueles que consideramos culpado, nunca mudaremos nada. Negatividade gera negatividade. Em outras palavras, mesmo quando nossa causa é nore ou tem um bom fundamento, nós não a estamos defendendo quando alimentamos sentimentos agressivos pelos opressores ou por aqueles que criam situações de perigo. Nunca mudaremos nada com a agressividade.

 Poderíamos argumentar que a não agressão também não traz muitas mudanças. Ela, entretanto, beneficia imensamente a Terra. A agressividade é a raiz da fome, da miséria e da crueldade no nível pessoal. Quando nos apegamos obstinadamente as nossas próprias opiniões, por mais legítima que seja nossa causa, estamos simplesmente adicionando mais agressividade ao planeta e, com isso, aumentando a violência e o sofrimento. Cultivar a não agressão é cultivar a paz. Para pôr um fim as guerras é preciso deixar de odiar o inimigo. Esse processo começa quando percebemos que nossas opiniões sobre nós mesmos e sobre os demais são apenas uma visão da realidade, sem transformá-las em um motivo para aumentar a negatividade no mundo.

A chave está em perceber a diferença entre uma opinião e a inteligência límpida. Inteligência é ver os pensamentos como tal, sem classifica-los como certos ou errados. No contexto da ação social, vemos quando governos, empresas e pessoas obviamente estão poluindo os rios ou prejudicando pessoas e animais. Podemos tirar fotos. Podemos documentar os fatos. Vemos que o sofrimento é real. Isso é possível porque temos inteligência e não nos deixamos levar por conceitos de bem e mal, esperança e medo.

Cabe a nós separar o que é opinião e o que é fato. Só assim poderemos enxergar com inteligência. Quanto mais pudermos ver com clareza, mais poderosos serão o nosso discurso e as nossas ações. Quanto menos eles estiverem obscurecidos pela opinião, melhor será nossa comunicação, não apenas com os que estão poluindo rios, mas também com aqueles a quem cabe pressionar essas pessoas.

Como ensinou Buda, é importante ver o sofrimento como sofrimento. Não estou falando em ignorar ou calar-se, mas quando não acreditamos tanto em nossas opiniões nem solidificamos o conceito de inimigo, estamos conquistando algo. Quando não nos deixamos levar por nossa indignação, vemos a causa do sofrimento com mais clareza e disso decorre o seu fim.

Esse processo exige enorme paciência. É importante lembrar que, quando estamos lá fora, lutando por reformas sem agressividade, estamos trazendo paz ao mundo, mesmo se não atingirmos nosso objetivo específico. Temos de dar o melhor de nós mesmos e, ao mesmo tempo, desistir de qualquer esperança de realização. Don Juan aconselhou Carlos Castañeda a agir como se suas atitudes fossem a única coisa importante do mundo, sabendo, o tempo todo, que elas não têm importância nenhuma. Isso nos leva a uma maior apreciação e menor desgaste, pois passamos a trabalhar com entusiasmo e carinho. Por outro lado, cada dia é um dia novo. Deixamos de estar tão excessivamente voltados para o futuro. Embora estejamos caminhando com uma direção e nosso objetivo seja diminuir o sofrimento, é preciso lembrar que manter nossa clareza mental, manter nossa mente e coração abertos faz parte dessa ajuda. Quando as circunstancias nos fazem desejar fechar os olhos, tapar os ouvidos e transformar os outros em inimigos, uma causa social pode ser a prática mais avançada. Como continuar a falar e agir sem agressividade representa um enorme desafio. Para isso, o passo inicial é perceber nossas próprias opiniões.

Não há ninguém no planeta, nem os que consideramos opressores nem os que vemos como oprimidos, que não possua o que é necessário para despertar. Todos nós precisamos de apoio e encorajamento para tomar consciência do que pensamos, falamos e fazemos. Se elas o tornam não agressivo, perceba isso também. Cultivando uma mente que não se apega ao certo e errado, encontraremos um novo modo de ser. Dessa atitude decorre a definitiva interrupção da instatisfação. E finalmente, nunca desista de si mesmo, pois só assim nunca desistirá dos outros. Dedicadamente, procure fazer o que é preciso para despertar sua inteligência límpida, mas faça isso aos poucos, dia após dia, momento após momento. Se vivermos assim, estaremos beneficiando nosso planeta.

A riqueza fundamental está disponível a cada momento. A chave está em relaxar: relaxar diante de uma nuvem no céu, de um passarinho com asas cinzentas, do som do telefone que está tocando. Podemos ver a simplicidade nas coisas como elas são. Podemos experimentar os cheiros e sabores, sentir as emoções e ter lembranças. Quando somos capazes de estar bem ali sem dizer: ‘’Eu definitivamente concordo com isso’’ ou ‘’eu definitivamente não concordo com isso’’, mas apenas estando ali muito diretamente, encontramos a riqueza fundamental por toda parte. Ela não é nossa nem de ninguém, ela está sempre disponível para todos. Nas gotas de chuva e nas gotas de sangue, na melancolia e no prazer, essa riqueza é a natureza de todas as coisas. Ela é como o sol que brilha para todos sem discriminação. É como um espelho, já que está disposta a refletir qualquer coisa sem aceitar ou rejeitar.

 Texto de Pema Chodron, no livro ‘’Quando tudo se desfaz’’.

Pema Chödrön é uma monja, que pratica na tradição do budismo tibetano. Foi uma discípula de Chögyam Trungpa Rinpoche, cujos ensinamentos ela continua a disseminar entre estudantes ocidentais do mundo inteiro. Nascida na cidade de Nova York, em 1936, Pema tem 2 filhos adultos e 2 netos. Formada pela Universidade da Califórnia, em Berkeley, foi professora primária por muitos anos, no Novo México e na Califórnia. Pema já havia passado dos 30 anos quando se ligou pela primeira vez aos ensinamentos budistas. Em 1971, ela viajou para os Alpes franceses, onde encontrou o Lama Chime Rinpoche, com quem estudou por muitos anos. Tornou-se uma noviça em 1974, enquanto estudava com Lama Chime, na Inglaterra.

O primeiro encontro de Pema com seu guru-raiz, Chögyam Trungpa Rinpoche, foi em fevereiro de 1972. Lama Chime encorajou-a a trabalhar com Trungpa Rinpoche e foi com ele que Pema, finalmente, se ligou mais profundamente. Pema estudou com Trungpa Rinpoche de 1974 até a morte de dele, em 1987, recebendo dele sua ordenação plena em 1981. Pema continuou a estudar com grandes mestres das linhagens Kagyü e Nyingma do budismo tibetano.

Atualmente, Pema é professora residente na abadia Gampo, um centro monástico situado em uma área de duzentos acres, à beira-mar, sobre as falésias do cabo Breton, na Nova Escócia, no Canadá. Pema é uma Acharya (professor senior) de Shambhala International e, quando não está em retiro fechado, na abadia Gampo, viaja pela Europa, Austrália e América do Norte, ensinando a grandes audiências.

Pema Chödrön é a autora de  “Comece onde você está“, Editora Sextante, “Os lugares que nos assustam” e “Quando tudo se desfaz”, Editora Gryphus.

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