O Monge e o Filósofo sobre a natureza do “eu” e a verdadeira força pessoal.

Trechos do livro “O Monge e o Filósofo” e comentários do site Brain Pickings | Tradução dos trechos do site, Luís Oliveira.

“Primeiramente, é preciso antes de tudo ter um ego, para se dar conta de que ele não existe.”

Nos últimos séculos, a filosofia ocidental tem mantido a visão de que seres humanos são movidos por auto-interesse — uma visão baseada nas necessidades e desejos de um sólido “eu” ou “self”.  Enquanto isso, filosofias, tradições contemplativas e espirituais orientais têm considerado por muito tempo o “eu” como uma ilusão — uma visão na qual a ciência moderna tem começado a parear.

Essas concepções contraditórias do “eu” como uma peça central da identidade e sucesso no ponto de vista ocidental, e como uma ilusão, no ponto de vista oriental, são o que o filosofo francês Jean François Revel e seu filho Matthieu Ricard, exploram nessa conversa extraordinária, publicado no livro “O Monge e o Filósofo”.

O que torna a conversa particularmente atraente é o pareamento incomum de perspectivas — não é apenas um diálogo entre de gerações entre um pai e filho intelectuais, mas um diálogo entre a filosofia ocidental e espiritualidade oriental com uma forte ênfase na ciência. A perspectiva científica, de fato, não vem de Revel mas de Ricard, que abriu mão de uma promissora carreira como biólogo molecular – ele já havia trabalhado com o Prêmio Nobel Jacques Monod – para mudar-se para o Nepal e estudar o budismo tibetano.

Um dos momentos mais marcantes do dialogo entre os dois, narrado no livro, refere-se a noção de “eu” e sua natureza ilusória. Quando Revel aponta que tem problema com o conceito budista de renascimento, apontando suas suposições místicas e não verificadas cientificamente, Ricard aponta:

“Antes de mais nada, é preciso entender bem que, no budismo, o que se chama de reencarnação não tem nada a ver com a transmigração de uma ‘entidade’ qualquer… Enquanto se raciocinar em termos de entidades e não de função, de continuidade, o conceito budista de renascimento não poderá ser compreendido.

[…]

Uma vez que o budismo nega a existência de um ‘eu’ individual, concebido como uma entidade separada que transmigraria de existência em existência e passaria de corpo para corpo, podemos nos perguntar o que é que liga esses estados sucessivos de existência… Trata-se de um continuum, um fluxo de consciência que se perpetua, sem que exista uma entidade fixa e autônoma que o percorra. Pode-se comparar isso a um rio sem nenhuma barca que desce o curso ou à chama de uma lamparina que acende uma segunda lamparina, a qual acende uma terceira lamparina e assim por diante: no fim dessa cadeia, a chama não é nem a mesma nem diferente.”

Ricard compara este conceito a “um rio sem um barco descendo ao longo do seu curso” e tem o cuidado de salientar um equívoco comum: Embora o budismo negue a existência do eu individual, ele não nega a consciência individual. Ele explica:

“Pode-se falar de consciência ‘individual’ mesmo que o indivíduo não exista como entidade isolada. Porque a ausência de transferência de uma entidade descontínua não se opõe à continuação de uma função. O fato de o eu não ter existência não impede que um fluxo de consciência particular tenha qualidades que o distingam de um outro. O fato de não existir barca flutuando no rio não o impede de estar carregando de sedimentos, poluído por uma fábrica de papel ou então claro e límpido. O estado do rio em um dado momento é a imagem, o resultado de sua história. De igual modo, os fluxos individuais de consciência estão carregados do resultado dos pensamentos positivos ou negativos, assim como das marcas deixadas na consciência pelos atos e palavras originados desses pensamentos. O objetivo da prática espiritual é purificar esse rio pouco a pouco. O estado último de limpidez é aquilo que se chama de realização espiritual. Todas as emoções negativas, todos os véus que mascaram o conhecimento são então dissolvidos.”

Fazendo eco a afirmação do grande mestre Zen D.T. Suzuki que “a “casca do ego” em que vivemos é a coisa mais difícil de libertar-se”, Ricard argumenta que esse reconhecimento da consciência individual é central para a dissolução da “casca do ego”:

“Não se trata de aniquilar o ‘eu’, o qual nunca existiu de verdade, mas simplesmente de desmascarar a impostura dele. Na realidade, se esse ‘eu’ tivesse uma existência intrínseca, jamais se poderia fazê-lo passar da existência à não-existência.

[…]

Não se pode “abolir” verdadeiramente um eu inexistente, mas pode-se reconhecer sua inexistência. O que se quer abolir é uma ilusão. O erro não tem existência própria. Costuma-se dar o seguinte exemplo: quando uma pessoa percebe no escuro uma corda multicolorida e a toma por uma cobra, o sentimento experimentado é de pavor. A pessoa talvez tente fugir ou afastar essa cobra com um pedaço de pau. Mas, se alguém acender a luz, imediatamente verá que aquilo não era de jeito nenhum uma cobra. Na verdade, nada aconteceu: ninguém ‘destruiu’ a cobra, porque nunca existiu. Simplesmente uma ilusão dissipada. Enquanto o ‘eu’ é percebido como uma entidade bem real, tende-se a atrair para si tudo o que se julga agradável, benéfico, e a repelir tudo o que se julga desagradável ou nocivo. Quando se reconhece que o ‘eu’ não tem existência real, todas essas atrações e repulsas se diluem, assim como desaparece o medo da corda tomada por cobra. O ‘eu’ não possui nem origem nem fim e, consequentemente, não tem outra existência no presente senão aquela que a mente lhe atribui.”

[…]

“Existe um sentimento natural do eu, que nos faz pensar: eu estou com frio, eu estou com fome, eu estou andando etc. Em si mesmo, esse sentimento é neutro. Não concorre especificamente nem para a felicidade nem para o sofrimento. Mas, em seguida, vem a ideia de que nosso eu é uma espécie de constante que perdura a vida inteira, apesar das mudanças físicas e intelectuais pelas quais passamos. Nós nos apegamos a essa noção de eu, de nossa ‘pessoa’, pensamos ‘meu’ corpo, ‘meu’ nome, ‘meu’ espírito etc. O budismo fala de um continuum de consciência, mas nega a existência de um ‘eu’ sólido, permanente e autônomo no seio desse continuum. A essência da prática do budismo, portanto, é dissipar a ilusão de um ‘eu’ que falseia nossa visão do mundo.”
Quando seu pai questiona como se espera que uma mudança positiva no mundo sem um senso de “agência pessoal” – outra crítica comum por aqueles que não compreendem as filosofias fundamentais do budismo – Ricard responde:

“O desejo de aliviar o sofrimento dos outros – que pode inspirar toda uma vida – é uma ambição admirável. Convém distinguir entre as emoções negativas – que, como o desejo, o ódio e o orgulho, solidificam mais ainda nossos conceitos auto-centrados– e as emoções positivas – que, como o amor altruísta, a compaixão e a fé, permitem libertar-nos pouco a pouco dessas tendências negativas e auto-centradas. Este último de emoções não perturba nossa mente: reforça-a e o estabiliza.”

 

Em um sentido que nos lembra a fala de David Foster Wallace sobre o lado obscuro da ambição. Ricard faz uma importante distinção entre dois tipos de ambição:

“Uma ambição positiva – a procura do bem de outrem por todos os meios possíveis, o desejo ardente de transformar a si mesmo – faz parte das virtudes cardeais do budismo. Na verdade, o budista alimenta uma ambição ilimitada: aliviar o sofrimento de todos os seres de todo universo! Ser desprovido desse tipo de ambição é sucumbir à inércia, é não ter força de vontade. Portanto, é preciso distinguir os aspectos positivos e negativos, altruístas e egoístas, da ambição. Diz-se que uma ambição  é positiva se visar a trazer o bem aos outros. É a definição mais simples. Em contrapartida, uma ambição é negativa se tiver de ser concretizada em detrimento de outrem, uma emoção é negativa se destruir nossa paz interior e a de outrem.”

Ele ilustra isso com um verso do sábio budista Shantideva:

“Toda a alegria que o mundo tem

Vem através do desejo de felicidade para os outros.

Toda a miséria do mundo tem

Vem por querer prazer para si mesmo.

É preciso maiores explicações?

O tolo (Childish beings) está preso ao seu próprio interesse

E o Buda se dedica ao interesse de outrem:

Vê por ti mesmo a diferença entre eles!”

 

Ricard mostra que numa primeira etapa é preciso estabilizar esse sentimento do “eu”:

“O empenho do budismo no sentido de desmarcar ‘a impostura do ego’, esse ego que parece tão poderoso e nos causa tantos tormentos, mesmo não possuindo qualquer existência em si. Contudo, num primeiro momento, é preciso estabilizar esse sentimento do ‘eu’, a fim de delimitar todas as suas características. Poderíamos dizer, paradoxalmente, que é preciso antes de tudo ter um ego, para se dar conta de que ele não existe. O dono de uma personalidade instável, fragmentada, inapreensível, tem poucas chances de poder identificar esse sentimento do ‘eu’, a fim de reconhecer, em uma segunda etapa, que esse sentimento não corresponde a nenhuma entidade real. É preciso, portanto, partir de um ‘eu’ são e coerente para poder analisá-lo. Pode-se atirar em um alvo, mas não em uma névoa.

[…]

Mas tampouco se deve achar que, uma vez desmascarada a impostura do ego, nós nos vemos em um nada interior, a ponto de a destruição da personalidade nos tornar incapazes de agir ou de nos comunicar!  A pessoa não se torna uma caixa vazia. Muito pelo contrário: ao deixarmos de ser joguetes de um déspota ilusório, semelhante às sombras da caverna de Platão, nossa sabedoria, nosso amor a outrem e nossa compaixão podem se expressar livremente. Trata-se de uma libertação das limitações impostas pelo apego ao ‘eu’ e não de uma anestesia da vontade, de jeito nenhum. Essa abertura dos ‘olhos da sabedoria’ aumenta nossa força de vontade, nossa diligência e nossa aptidão para agir de modo justo e altruísta.”

“Primeiramente, é preciso antes de tudo ter um ego, para se dar conta de que ele não existe.”
“Primeiramente, é preciso antes de tudo ter um ego, para se dar conta de que ele não existe.”

 

Revel contrapõe isso e cita o “culto ao ego” do Ocidente e nossa ênfase civilizacional em “personalidade forte” como uma marca de sucesso, questionando se não pode haver um terreno comum entre as tradições culturais e filosóficas tão diametralmente opostas a este respeito. Mas Ricard, mais uma vez, contempla o problema com uma lucidez semântica que derrete e soluciona o aparente conflito:

“Se entendermos por personalidade a exacerbação do ego, o simples fato de ter uma personalidade forte me parece, infelizmente, um critério de sucesso bastante duvidoso. Hitler e Mao Tsé-tung tinham personalidades fortíssimas!

[…]

Não se deve confundir individualidade forte e força de vontade e força mental. Os sábios que conheci tinham uma força de vontade indomável, pode-se dizer que eram dotados de uma personalidade muito impressionante, irradiavam um poder natural perceptível por todos os que os encontravam. Mas a enorme diferença é que, não se distinguia o menor vestígio de ego, aqui entendido como o ego que inspira o egoísmo e o auto-centramento. A força de vontade deles vinha de um conhecimento, de uma serenidade,de uma liberdade interior que se manifestavam externamente por uma certeza inabalável. Um abismo os separa de Hitler, de Mao Tsé-tung e de outros do mesmo gênero, cujas personalidade poderosas nascem do desejo desenfreado de dominar, nascem do orgulho, da avidez ou do ódio. Nos dois casos, estamos na presença de um imenso poder; mas, no primeiro, esse poder é um fluxo de altruísmo construtivo e, no segundo, é negativo, destruidor.”


PAR93007O Monge e o Filósofo – J.-F. Revel & M. Ricard

Por que o budismo faz hoje tantos adeptos e suscita tanta curiosidade no Ocidente? Isso revelaria uma lacuna, uma necessidade insatisfeita, na civilização ocidental, científica e técnica?

Para tratar essa questão reuniram-se Matthieu Ricard, intelectual ocidental e monge budista, e seu pai, Jean-François Revel, grande filósofo agnóstico, para confrontar suas interrogações e curiosidades recíprocas. As considerações de Jean-François Revel, embora comportem sérias reservas ou objeções, contêm a parte do budismo que ele considera aceitável e universal: a sabedoria na condução da vida. Elas trazem à luz os fracassos do pensamento ocidental – especificamente a falência dos grandes sistemas filosóficos e das grandes utopias políticas – que podem explicar a presente atração dos ocidentais por uma forma de sabedoria muito antiga e ao mesmo tempo muito nova.

Jean-François Revel, nascido em 1924, é um filósofo que considera vã toda metafísica. Expôs seu agnosticismo em várias obras. A recente difusão do budismo no Ocidente, porém, fez com que pai e filho expusessem suas idéias em diálogos ao mesmo tempo espontâneos e estruturados. Jean faleceu em 2006 e era o pai de Matthieu Ricard. 

Matthieu Ricard, nasceu em 1946 e depois de seguir estudos científicos de biologia molecular que o levaram até o doutorado adere ao budismo e, em 1972, instala-se definitivamente na Ásia, para acompanhar os ensinamentos de seus mestres tibetanos.

Esse encontro entre pai e filho, realizado em maio de 1996, em Hatiban, no Nepal, no isolamento de um sítio no alto da montanha que domina Kathmandu, revelou o pensamento de duas pessoas particularmente importantes com entendimentos bastante diferentes sobre assuntos sérios e atuais e conseguiu mostrar ao leitor como pode ser fantástico o intercâmbio entre um monge e um filósofo.

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