Qual a relação do budismo com a noção de terapia? Como práticas terapêuticas podem se coadunar com a prática do darma?
Os textos tibetanos descrevem vários tipos de praticante com relação a como o caminho funciona para eles.
Para alguns, talvez a maioria, um método bastante gradual é o melhor. Isto é, começa-se com reflexões sobre conceitos básicos, e então meditações sobre o sentido do refúgio e o que é o caminho budista, enfim, algum tipo de prática de treinamento da mente em conjunto com prática no cotidiano (generosidade, ética) e estudo. Com algum sucesso nisso, práticas mais avançadas, como instruções específicas de meditação, ou práticas com deidades, e enfim as práticas extremamente sutis, poderosas e rápidas que concluem o caminho e produzem a iluminação.
Para outros, um tanto mais raros – alguns diriam “extremamente raros” – é possível, devido ao mérito de práticas feitas em vidas passadas – ir direto para práticas avançadas, sem focar tanto os métodos comuns. Há o cuidado de frisar que, para estes praticantes, os métodos comuns são extremamente fáceis de serem praticados, e eles assim muitas vezes se engajam neles como reforço e garantia, bem como exemplo benéfico para outros praticantes.
Ainda há um terceiro tipo, que é um pouco mais complicado, que são praticantes com “mérito misto”, isto é, que em alguns momentos parecem efetivamente pular etapas e conseguir praticar algo avançado, para então se depararem com algum obstáculo e passam a seguir métodos mais gerais. Isso pode acontecer diversas vezes ao longo da vida de praticante, então a pessoa nunca está num ponto determinado do caminho, mas o tipo específico de carma dela a faz vivenciar o caminho com “altos e baixos”.
Um bom professor sabe lidar com os três tipos de praticantes, e não força uma estratégia de um determinado tipo sobre um aluno que não vai obter o maior benefício dela. Ele sabe identificar o que o praticante consegue, e adapta a instrução de acordo.
Já praticantes, há de todos os tipos.
É muito comum, eu diria mais comum, praticantes ansiarem métodos mais famosos, sobre os quais há muita “publicidade” – isto é, não que seja uma publicidade mentirosa, mas métodos que são anunciados como os melhores, ou mais rápidos. Esses métodos de fato algumas vezes são os melhores. Claro, para quem consegue praticar.
O praticante normalmente não sabe aferir. E normalmente alguns aspectos importantes são, devido ao materialismo espiritual, simplesmente ignorados. Algumas vezes temos essa atitude de “ah, sim, reflexões nos quatro pensamentos que transformam a mente, conheço bem” ou “ah, refúgio, sei bem o que é” – mas um pouco como um aluno que vai mal na prova de matemática, nossa atitude diante da prática se mostra em desacordo com o entendimento que proclamamos.
Isto é, essa é uma experiência normal, entendemos perfeitamente o que está exposto no quadro. Mas não fazemos exercícios, e aquilo não é internalizado. Chega no dia da prova e os problemas são apresentados, e alguns nós até temos alguma ideia de como os resolver – mas sem ter treinado os hábitos através dos exercícios, levamos muito tempo, ou nos confundimos, ou caímos em armadilhas que nos seriam óbvias com a experiência. Então tiramos meio ponto, por “participar” e colocar o nome no papel.
Estou falando de experiência própria, porque embora eu tenha chegado a derivar integrais na faculdade, rodei em matemática na sétima série do ensino fundamental. E o motivo foi unicamente esse – arrogância misturada com preguiça, e a total desconsideração por fazer exercícios ou estudar, porque eu “entendia tudo que estava no quadro”.
As motivações para a prática do darma são variadas, mas motivações corretas caem sob duas classes: 1) buscar evitar o sofrimento, no sentido de “sofrimento” que é a insatisfatoriedade de dukkha, o sofrimento inerente tanto das experiências “boas” quanto “ruins”, e em que há entendimento e repulsa pelo samsara; 2) ansiar pela iluminação dos outros seres, e praticar o darma para reconhecer e exercer as qualidades inatas que ajudam os outros seres a atingir o mesmo estado e sustentar a mesma motivação.
Dentre essas duas, a primeira é dita inferior ou pequena, e a segunda grandiosa. Para o budismo tibetano e muitas outras formas de budismo, a primeira motivação é também ativamente evitada.
Depois temos várias motivações mundanas, isto é, “incorretas” no sentido de incorretas para praticar o darma. Entre elas, há as motivações incorretas relativamente boas, e as motivações incorretas relativamente ruins. As boas são consideradas dessa forma porque elas são positivas num sentido mundano, e podem levar, pouco a pouco, ao refino da motivação até ela se retificar totalmente na direção do darma. Já as ruins não servem de nada, e praticar algo que se assemelha com o darma com elas é até pior do que não fazer nada.
Podemos pensar: “eu já refleti sobre esse assunto, e eu escolhi e ate tomei votos pela motivação grandiosa, então não preciso mais considerar essas coisas.” Porém, é mais do que claro que todos nós que não temos realização espiritual oscilamos por todas elas, boas e ruins, corretas e incorretas.
Quanto a exemplos, as motivações incorretas mas boas são, por exemplo, praticar o darma como terapia – buscando acalmar a mente e atingir um estado de felicidade. Isso não é muito diferente de praticar o darma buscando saúde, longevidade e sucesso financeiro e pessoal. Frequentemente caímos nesse tipo de motivação porque não entendemos o conceito de samsara, e muito menos desenvolvemos renúncia por ele.
Em certo sentido, um aspecto infeliz dessa motivação é que ela às vezes funciona. Nem sempre, mas em alguns casos, a pessoa desperta certos méritos com a prática do darma, e a vida dela fica mais fácil e feliz. E isso pode se tornar um obstáculo, porque então a pessoa tende a não desenvolver a motivação grandiosa – e tudo que ela conquistou ela vai sem dúvida perder cedo ou tarde, nem que seja na hora da morte. Na verdade, após um tempo, algumas pessoas tendem até mesmo a esquecer do darma e simplesmente usufruir de boas condições.
É por isso que grandes mestres fazem aspirações – para eles mesmos, principalmente – de encontrarem certas dificuldades em vidas futuras. Quanto mais corajoso o mestre, mais dificuldades ele pede para si mesmo. Então, se temos muitas dificuldades, podemos até pensar “vai ver eu aspirei por isso em vidas passadas”. Esse é um método muito poderoso de gerar verdadeira espiritualidade. As dificuldades vão aparecer de qualquer modo, e o melhor é reconhecê-las como uma oportunidade espiritual. E para haver esse reconhecimento, você treina esse reconhecimento.
Por outro lado, algumas vezes o darma não funciona – devido ao carma particular da pessoa – para produzir essa felicidade temporária e boas condições, e se a pessoa manteve essa motivação, ela tende a desconsiderar o darma como algo sem grande importância. Isto é, ela facilmente abandona o darma, porque o darma não fornece o que ela queria – que, se ela pensasse bem, não é bem o que o darma promete. Porém, como bem sabemos, muita gente não pensa exatamente bem ou suficientemente.
Depois há motivações equivocadas piores. Essas envolvem, de modo geral, usar o darma como instrumento direto de satisfação. Por exemplo, buscar o darma para ter mais amigos, arranjar boas oportunidades na sanga – ou até vendendo o darma ou se promovendo com o darma. Nesse caso a pessoa não usa a prática para atingir felicidade, ela usa o budismo para pagar as contas, achar namorados e namoradas, e se autopromover.
Devido ao grande mérito do Darma do Buda, algumas vezes mesmo pessoas com essa motivação a purificam e se tornam praticantes. Por pior que seja a conexão, ela ainda é uma conexão. E todos nós temos momentos desse tipo de conexão, porque todo mundo se sente sozinho e com dificuldades, e no samsara naturalmente temos a tendência de manipular as situações e coisas para servirem a nossa conveniência – e algumas vezes, infelizmente, temos a tendência de fazer isso até mesmo com a coisa mais preciosa e importante que já encontramos. É preciso reconhecer que essa tendência existe e a evitar, é melhor não desenvolver a ideia de que você está e sempre esteve totalmente imune a isso – a tendência nesse caso seria fortalecer o autoengano.
Enfim, há algumas motivações equivocadas e ruins que são mais neutras, ou menos fortes, que são a curiosidade intelectual e o turismo espiritual. Algumas vezes essas atitudes também podem frutificar em motivações verdadeiras, mas muitas vezes isso não acontece nessa vida.
…
Finalmente há um aspecto ligado a atividade de um praticante que sustenta, digamos, um tantinho da motivação grandiosa. Ele quer aprender métodos para ajudar os outros.
Algumas pessoas também pulam etapas, ou praticam além do mérito, quanto a esse aspecto. De modo geral, ajudar mesmo os seres, numa perspectiva budista, não é tão usual. É uma coisa que aspiramos e fazemos de modo muito tímido – enquanto ajudamos como podemos de forma mundana. Mas algumas vezes confundimos essas duas ajudas, a ajuda mundana e a ajuda no contexto do darma, que só um professor qualificado pode dar.
Ajuda mundana pode ser prover condições para aquele ser encontrar alguma pequena ou grande felicidade, ou ajudar a conectá-lo com o darma. Nada disso é garantido, porque depende mais do mérito daquele ser em particular, já que nossa capacidade de ajuda, nesse momento, como já reconhecemos, é bastante limitada.
Algumas vezes já queremos que a pessoa pratique meditação, por exemplo. Mas meditação – como toda prática mais específica do budismo – requer mérito.
Mérito é o elemento mais escondido na popularização do budismo, porque a maioria das práticas formais que geram mérito nos soam, a princípio, se não entendemos o que é treinamento da mente, religiosas num mal sentido. Então as pessoas realmente pulam essa parte sobre “méritos”.
O que é mérito? Mérito é uma “energia mental positiva”, mas se isso soa muito new age, é um hábito mental ou propensão mental cultivados na direção da virtude, isto é, do benefício próprio e dos outros. A pessoa vive de um jeito e age de um jeito – o seu caráter é tal – que ela é mais ou menos receptiva a certos ensinamentos e práticas, e pode aproveitá-los ou não.
Para muitas pessoas não adianta sentar em posição de meditação. Muitas vezes se evita falar isso porque não se quer desencorajar as pessoas, já que todo mundo, com ou sem méritos, começa com obstáculos na meditação. Bom, ao menos se pode dizer que, sem dúvida para a grande maioria das pessoas sentar por longos períodos, dia após dia, frequentemente não é benévolo, podendo ser até prejudicial. Algo como três ou cinco minutos por dia talvez seja seguramente recomendável para todos, mas duas ou três horas é uma recomendação temerária – exige méritos para transformar essa prática em algo extremamente positivo que talvez a pessoa não possua.
O que requer mais mérito é sentar por mais de uma hora por dia, digamos 3h ou 4h por dia – todo dia. Algumas pessoas começam no budismo e com uma ânsia por resultado fazem esse tipo de coisa. Mas é o mesmo que uma pessoa querer, por algum motivo estranho, ser alcoolista, e começar tomando porres monumentais. Ela vai passar mal e começar a ficar com nojo da bebida. Se ela quer mesmo ser um alcoolista, ela tem que encontrar alguém experiente em beber devagar e consistentemente, e aprender com ele, gole após gole. Então, após alguns anos ela poderá beber grandes quantidades e atingir a realização da cirrose hepática.
Esse exemplo pode parecer esquisito, mas ele é tradicional!
No caso, nós praticamos sem ânsia, e sem tentar praticar além do nosso mérito. O fato é que temos que manter uma prática mínima e consistente, corrigir a motivação frequentemente, e seguir orientações de um professor. Aí o darma será benéfico no seu sentido próprio, e até no sentido mundano também.
Caso, no entanto, tentemos nos colocar na posição de um praticante excelente, o nosso materialismo espiritual vai certamente nos devorar. Como a pessoa que tenta ser alcoolista começando com porres, vamos ficar com nojo do darma. Esse é o caso também das pessoas que tentam o que os terapeutas chamam de “bypass espiritual”. A solução dos terapeutas é, claro, terapia. Mas a solução do darma é gerar méritos.
O bypass espiritual é deixar os problemas da vida para trás, como problemas de relacionamento, contas a pagar, dependências psicológicas ou químicas, e começar a recitar mantras e meditar – sem mérito algum – como uma forma de simplesmente abafar os problemas. Na sua forma mais bem-sucedida, que não é muito feliz mesmo assim, é como um botão de pause na vida. Depois da prática formal, tudo retorna como estava, só cada vez pior, porque não há integração entre os problemas da pessoa e sua prática espiritual.
Caso a pessoa tente praticar além de sua capacidade, ou além do que sua vida cotidiana permite em termos de disponibilidade de tempo e recursos, a solução do darma é retificar a motivação e buscar gerar méritos. Além disso, em todas as etapas, prática formal e prática na vida cotidiana (o que inclui ética, pacificar relações e tudo mais) precisam estar sempre presentes, sem ênfase maior de uma ou outra.
Não que a pessoa deva evitar terapeutas. Ela apenas precisa saber que o darma não é uma terapia, e a terapia não é a melhor preparação para o darma – independente do que os terapeutas tentem vender. É bem possível que terapia seja o que ela está buscando, se ela não tem uma perspectiva verdadeiramente espiritual e não esta disposta a gerar méritos.
E é claro, se temos um problema no carro, levamos num mecânico. Caso tenhamos dificuldades interpessoais, resolvemos isso na psicoterapia ou conversando com as pessoas. Não tentamos, de princípio, usar o darma como panaceia universal. Embora, lá adiante, devido ao mérito, ele possa ter esse valor, de princípio ele não conserta carros nem resolve dificuldades com sua esposa ou com seu pai.
Algumas vezes os professores budistas ajudam nisso também, da mesma forma que lamas também trocam fraldas e, se forem mecânicos, consertam carros. Mas se reduzimos o professor a esse papel, perdemos o professor e ganhamos um mero mecânico ou terapeuta.
Padma Dorje é praticante budista e autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos. Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org.