Sabedoria, Ciência e Política | Matthieu Ricard e Jean-François Revel.

revel-ricard_jpg_336x9999_q85O Monge e o Filósofo – J.-F. Revel & M. Ricard

Por que o budismo faz hoje tantos adeptos e suscita tanta curiosidade no Ocidente? Isso revelaria uma lacuna, uma necessidade insatisfeita, na civilização ocidental, científica e técnica?

Para tratar essa questão reuniram-se Matthieu Ricard, intelectual ocidental e monge budista, e seu pai, Jean-François Revel, grande filósofo agnóstico, para confrontar suas interrogações e curiosidades recíprocas. As considerações de Jean-François Revel, embora comportem sérias reservas ou objeções, contêm a parte do budismo que ele considera aceitável e universal: a sabedoria na condução da vida. Elas trazem à luz os fracassos do pensamento ocidental – especificamente a falência dos grandes sistemas filosóficos e das grandes utopias políticas – que podem explicar a presente atração dos ocidentais por uma forma de sabedoria muito antiga e ao mesmo tempo muito nova.

Jean-François Revel, nascido em 1924, é um filósofo que considera vã toda metafísica. Expôs seu agnosticismo em várias obras. A recente difusão do budismo no Ocidente, porém, fez com que pai e filho expusessem suas idéias em diálogos ao mesmo tempo espontâneos e estruturados. Jean faleceu em 2006 e era o pai de Matthieu Ricard. 

Matthieu Ricard, nasceu em 1946 e depois de seguir estudos científicos de biologia molecular que o levaram até o doutorado adere ao budismo e, em 1972, instala-se definitivamente na Ásia, para acompanhar os ensinamentos de seus mestres tibetanos.

Esse encontro entre pai e filho, realizado em maio de 1996, em Hatiban, no Nepal, no isolamento de um sítio no alto da montanha que domina Kathmandu, revelou o pensamento de duas pessoas particularmente importantes com entendimentos bastante diferentes sobre assuntos sérios e atuais e conseguiu mostrar ao leitor como pode ser fantástico o intercâmbio entre um monge e um filósofo.


 

 

O MONGE E O FILÓSOFO –O BUDISMO HOJE

SABEDORIA, CIÊNCIA E POLÍTICA

MATTHIEU – Quero saber o que você acha desta citação de Erwin Schrodinger, o grande físico que ganhou o Nobel em 1933: “A imagem que a ciência dá sobre o mundo ao meu redor é muito deficiente. Ela fornece muitas informações factuais, põe toda a nossa experiência em uma magnífica ordem coerente, mas permanece assustadoramente silenciosa em relação a tudo o que está verdadeiramente perto de nosso coração, tudo o que verdadeiramente conta para nós”.

JEAN-FRANÇOIS – Eu diria que isso ai é uma banalidade. A idéia de que a ciência não fala ao coração de cada um de nós na busca individual da felicidade não é muito original! De resto, a ciência nunca pretendeu responder a essa questão – exceto, talvez, as ciências humanas. O fracasso do Ocidente não está na ciência. Ao contrário, a ciência é o sucesso do Ocidente. O problema é saber se a ciência basta. Ora, existe um domínio em que, com toda a evidência, ela não basta. Assim, o fracasso do Ocidente é sobretudo o fracasso da cultura ocidental não-científica, em particular o fracasso de sua filosofia. Em que sentido essa filosofia fracassou? Digamos que, no geral, até o século XVII, até Descartes e Spinoza, subsistia a dupla dimensão da filosofia, tal como esta se praticava desde a origem. De uma lado, a dimensão científica – ou a intenção científica. E, de outro, a segunda dimensão, a conquista da sabedoria, a descoberta de um sentido dado à vida humana e, eventualmente, a uma vida além da vida humana. Em Descartes, ainda encontramos essa dupla dimensão da filosofia, embora Descartes fale de uma moral ‘provisória’. Mas, nele, a filosofia ainda é ao mesmo tempo ciência e sabedoria. Contudo, a última filosofia em que os dois aspectos são encarados simultaneamente e se encontram é a de Spinoza. Nesta, apresenta-se pela última vez a idéia de que o conhecimento supremo se identifica à alegria do sábio, o qual, havendo compreendido como funciona o real, por isso mesmo conhece a felicidade, o soberano bem.

M. – Mas por que a filosofia deixou de fornecer modelos de vida?

J.F. – Ao longo dos três últimos séculos, a filosofia abandona sua função de sabedoria e passa a limitar-se ao conhecimento. Mas, ao mesmo tempo, é progressivamente destronada de sua função científica pela própria ciência. À medida que aparecem e de desenvolvem, ciências como a astronomia, a física, a química ou a biologia se tornam autônomas e seguem critérios que não têm nada a ver com os métodos de pensamento dos filósofos. A partir desse momento – como Kant disse muito bem, na Crítica da razão pura -, a função científica da filosofia se esvazia de seu objeto, digamos assim. No fundo, ela morre em decorrência do próprio sucesso, uma vez que seu alvo tinha sido o de dar origem a essas diversas ciências. Quanto ao outro aspecto, o da sabedoria, que comporta ao mesmo tempo a busca da justiça e a busca da felicidade, ele já não é afirmado no plano pessoal, o da conquista de uma sabedoria individual, como ainda era o caso em Montaigne ou Spinoza.

M. – Não estaria nisso o principal problema do Ocidente?

J.F. – Não necessariamente, pois no século XVIII esse segundo aspecto se desloca para o terreno político. A conquista da justiça e a conquista da felicidade vão transformar-se na arte de organizar uma sociedade justa, que faça felizes os seus membros por meio da justiça coletiva. Em outras palavras, a conquista simultânea do bem, da justiça e da felicidade será a revolução – social, cultural e política. Nesse momento, todo o ramo moral da filosofia se encarna nos sistemas políticos. No século XIX, entramos na era das grandes utopias, que querem reconstruir a sociedade dos pés à cabeça.

Dessas utopias, a principal é o socialismo, mais particularmente o marxismo, que dominará o pensamento político quase até o fim do século XX. Nessa perspectiva, a função moral da filosofia tem como alvo a construção, a partir do zero, de uma sociedade integralmente justa. A primeira grande tentativa nesse sentido é a Revolução Francesa, da qual emerge o conceito moderno de revolução. A partir do momento em que têm em vista um modelo de sociedade que consideram perfeito, os autores de uma revolução acreditam estar no direito de impor esse modelo e, segundo o caso, no de suprimir os que resistem a essa tentativa. Isso ficará ainda mais claro quando o marxismo-leninismo puder obter uma realização concreta com a revolução bolchevista e mais tarde com a China de Mao. Todos esses sistemas têm em comum uma idéia central, a saber: a busca do bem, a construção do ‘homem novo’ passam pela utopia do poder da transformação revolucionária da sociedade.

M. – Em que consiste a mora, se o sentido da liberdade e da responsabilidade pessoais está oblitrado pelo sistema político?

J.F. – Ela consiste em servir a esse ideal, em fazer com que se possa realizar a revolução absoluta. Portanto, já não existem moral individual nem busca da sabedoria pessoal. A moral individual passa a ser a participação em uma moral coletiva. No fascismo e no nazismo também se vê essa idéia da regeneração do homem. Para Mussolini, assim como para Hitler, a sociedade burguesa, capitalista, com o sistema parlamentar subordinado ao dinheiro, à plutocracia, aos judeus, é imoral. Trata-se de regenerar o home, construindo dos pés à cabeça, do zero ao infinito, uma sociedade inteiramente nova, e ‘liquidando’ tudo o que é suspeito de se opor a ela. A ação revolucionária substituiu a filosofia e até a religião.

M. – E isso como o ‘sucesso’ que se conhece na Rússia e, infelizmente, ainda hoje na China. O problema das utopias que não repousam sobre o desenvolvimento das qualidades humanas é que, mesmo quando elas pregam o igualitarismo – por exemplo, a divisão dos bens – , esses ideais são logo deturpados, e os que detêm as rédeas do poder fazem deles um instrumento de opressão e exploração de seus ‘camaradas’.

J.F. – Todos esses grandes sistemas fracassaram, despedaçaram-se no mal absoluto. E as últimas manifestações dessa ambição até mesmo revelaram as mais desmedidas personalidades – por exemplo, no Camboja, onde Pol Pot levou a extremos a lógica do sistema. Para criar um homem novo, erradicar o passado e fabricar uma sociedade que será enfim absolutamente justa, é preciso começar por destruir todos os homens que existem atualmente e estão mais ou menos corrompidos pelas sociedades precedentes. Sem chegar, na totalidade, a tais excessos caricaturais e mortíferos, a maioria dos intelectuais, há trezentos anos, admite que a moralização do homem e concretização da justiça passam pela criação de uma nova sociedade, mais justa, mais equilibrada, mais igualitária.

O fracasso prático e o descrédito moral dos sistemas político-utópicos, que constituem o fato principal deste fim de século XX, são o que eu chamo de fracasso da civilização ocidental, em sua parte não científica. A reforma social deveria substituir a reforma moral, mas a levou ao desastre, de modo que hoje nos encontramos completamente desamparados, diante de um vazio. Daí o recrudescimento do interesse pelas filosofias mais modestas, que consistem em dar alguns conselhos práticos, empíricos, espirituais, morais, sobre a maneira de conduzir a existência cotidiana; e daí o aumento da curiosidade pelas doutrinas de sabedoria que, como o budismo, falam do homem e da compaixão e não pretendem refazer o mundo destruindo-o nem regenerar a humanidade assassinando-a. Esse recrudescimento se explica pela fantástica falência dos grandes sistemas políticos, das grandes utopias que descrevi sumariamente. A ciência não tem a menor responsabilidade nessa catástrofe, causada por um fanatismo que lhe era exterior.

M. – Acho que nenhum budista contestaria essa sua análise. Eu me permito acrescentar uma ou duas idéias não para criticar a ciência em si mesma, mas para compreender as razões pelas quais a ciência, apressadamente considerada como uma panacéia, também pode eclipsar a busca da sabedoria. A ciência é essencialmente analítica e, portanto, tende a se perder na complexidade inesgotável dos fenômenos. Ela aborda um campo de descobertas tão vasto que absorveu o interesse e a curiosidade dos mais brilhantes cérebros de nossa época. Isso faz pensar em uma interminável corrida ao ouro. Já a espiritualidade tem uma abordagem muito diferente: preza os princípios que fundamentam o conhecimento e a ignorância, a felicidade e a infelicidade dos seres. A ciência só considera as provas materiais ou matemáticas, enquanto que a espiritualidade reconhece a validade da convicção íntima que nasce da vida contemplativa.

J.F. – Um momento! Convém distinguir ciência e cientismo. O exemplo dos sucessos da ciência teve como efeito a suposição de que era possível abordar tudo de uma maneira científica. Lembro que o fenômeno da utopia radical, de que fiz à pouco um breve resumo, se chamava socialismo ‘científico’. Evidentemente nada havia de científico, muito pelo contrário. Mas o interessante é que se pretendia aplicar critérios científicos à reforma das sociedades humanas. E isso é uma deturpação perversa – que causou muitos prejuízos – da noção da ciência.

M. – O risco que a ciência corre, a verdadeira ciência, é o de ir longe demais em seu afã analítico e desembocar em uma dispersão horizontal dos conhecimentos. Um provérbio árabe diz que, quando a gente começa a contar, não consegue parar. Quando estudei geologia na faculdade de ciências, fizemos trabalhos práticos sobre a morfologia dos grãos de areia. Havia os ‘redondos polidos’, os ‘redondos brilhantes’ etc. Disso se podia deduzir a idade dos rios ou a origem dos grãos, se eles provinham de um rio ou do oceano. Esse estudo pode ser apaixonante, mas será que realmente vale a pena?

J.F. – Acontece que o estudo dos grãos de areia é muito esclarecedor para reconstituir a história da Terra e do clima, a alternância dos períodos de aquecimento e de glaciação. Além disso, conhecer as leis da natureza é incontestavelmente uma das aspirações do homem. A filosofia nasceu daí.

M. – Não acho que esses estudos, por mais interessantes que sejam, devam se sobrepor à busca da sabedoria.

J.F. – A ciência, a boa ciência, quando totalmente desinteressada, é uma forma de sabedoria. Muitas vezes, as grandes descobertas científicas foram feitas por pesquisadores a quem se dizia: o domínio no qual você se empenha não serve para nada. Ocorre que a pesquisa obedece primeiro ao desejo de conhecer e só depois ao de ser útil. Além disso, a história da ciência mostra que foi sempre nos momentos em que só obedeciam à curiosidade intelectual que os pesquisadores fizeram as descobertas mais úteis. Mas, no ponto de partida, eles não estavam buscando a utilidade. Portanto, na investigação científica existe uma espécie de desprendimento que é uma forma de sabedoria.

M. – Ainda assim é preciso que esse desejo de conhecer se aplique a algo digno de que alguém lhe consagre a existência, e que essa ‘sabedoria’ leve os pesquisadores a fazerem, de si mesmos e dos outros, melhores seres humanos. Do contrário, de que sabedoria se trata? A curiosidade, mesmo desinteressada, é um fim em si?

J.F. – Isso é o que Pascal perguntava… Em minha opinião, os limites da cultura científica em nossa sociedade ocidental resultam mais do fato de que todos podem se beneficiar dela, mas muito poucos participam. Somente uma minoria muito pequena sabe como funcionam o universo, a matéria, a vida. Diariamente, milhões de pessoas – inclusive eu – tomam comprimidos de aspirina sem saber porque a aspirina atua sobre suas indisposições passageiras. Quando se diz que a humanidade vive a era científica, isso absolutamente não é verdade! Ela vive paralelamente à era científica. Um completo analfabeto se beneficia de todas as conquistas da ciência tanto quanto um grande cientista. Mas, considerando que mesmo a maioria das populações ocidentais, berço da ciência clássica e moderna, não participa do interior do pensamento científico, é preciso oferecer-lhe outra coisa. Essa coisa foram as religiões, até muito recentemente, e as utopias políticas. As religiões já não cumprem essa função, exceto o islamismo, e as utopias desmoronam no sangue e no ridículo. Ficou, portanto, um vazio.

M. – Eu queria mencionar a definição budista da preguiça, porque ela vem ao encontro de nossa discussão sobre a ciência e sabedoria. Fala-se de três formas de preguiça. A primeira consiste em simplesmente passar o tempo comendo e dormindo. A segunda é dizer para si mesmo: “Uma pessoa como eu jamais conseguirá se aperfeiçoar”. No caso do budismo, essa preguiça faz pensar: “É inútil tentar, nunca alcançarei a realização espiritual”. O desânimo nos leva a preferir não começar a fazer esforços. E a terceira, a mais interessante em nosso caso, consiste em esgotar a vida em tarefas de importância secundária, sem nunca chegar ao essencial. A pessoa passa o tempo tentando resolver problemas menores, que se encadeiam interminavelmente, como as ondulações na superfície de um lago. E se diz: “Quando tiver terminado este ou aquele projeto, buscarei dar um sentido à minha existência”. Acho que a dispersão horizontal dos conhecimentos tem a ver com essa preguiça, ainda que a pessoa se conduza diligentemente durante toda uma vida.

J.F. – Você fala de problemas ‘menores’. Em minha opinião, não é essa a distinção correta. Melhor seria falar de problemas relacionados com a realização espiritual e de problemas não relacionado com ela. Mas o problema pode ser dos maiores e não ter a ver com a realização espiritual.

M. – Tudo depende de como a pessoa o considera. A ruína financeira para um banqueiro ambicioso é um problema maior, e, para quem está cansado dos assuntos do mundo, um problema menor. Mas voltemos à preguiça. O antídoto contra a primeira forma de preguiça – só querer comer e dormir – é refletir sobre a morte e a impermanência. Não se pode prever o momento da morte nem as circunstâncias que a provocarão. Portanto, quanto a se voltar para o essencial, não há um instante a perder. O antídoto contra a segunda preguiça – a que nos faz desistir de ingressar em uma busca espiritual – é refletir sobre os benefícios que essa transformação interior traz. E o antídoto contra a terceira – priorizar o detalhe, em detrimento do essencial – é conscientizar-se de que a única maneira de concluir nosso intermináveis projetos é deixá-los de lado e, sem mais delongas, voltar-se para aquilo que dá um sentido à existência. A vida é curta e, se a pessoa quer desenvolver qualidades interiores, nunca é cedo demais para consagrar-se a isso.

J.F. – Você retomou a definição que Blaise Pascal dava do ‘divertimento’, o qual nos ‘desvia’ do essencial. Também ele classificava como divertimento a busca científica, libido sciendi, na qual, no entanto, se havia destacado. Isso é um erro. Assim como não convém esperar da ciência a realização espiritual, não se deve acreditar que a realização espiritual substitui a ciência. A ciência e a tecnologia respondem a um certo número de perguntas. Primeiro, elas satisfazem o apetite de conhecimento que, afinal, é uma dimensão fundamental do ser humano. É, por suas aplicações práticas, resolvem um grande número de problemas humanos. EM relação a isso, sou filho do século XVIII. Acredito na melhoria da condição humana pelo progresso técnico, quando bem dirigido. Mas ele deixa um vazio naquele que, no geral, chamaremos de domínio moral, domínio da sabedoria, no domínio da busca do equilíbrio pessoal e da salvação.

Esse vazio, em meu entender, pode ser preenchido em dois níveis. O primeiro é aquele de que o budismo constitui um dos exemplos. E isso explica sua difusão atual no Ocidente, que é tanto mais interessante quanto, contrariamente ao islamismo integrista, ele não faz qualquer propaganda militante. O budismo são vai a algum lugar quando o chamam ou então quando – lamentavelmente – o obrigam a ir, por ter sido expulso de outro. E o segundo instrumento para preencher esse vazio acho que continua sendo a reorganização da sociedade política. Penso que a intuição fundamental do século XVIII continua certa. Só que foi mal resolvida. Acredito no valor da sociedade democrática – aliás, nisso o Dalai-Lama está de acordo – , na profunda moralidade do ato de encaminhar cada indivíduo à capacidade de participar da responsabilidade democrática, à possibilidade de exigir contas dos que ele elegeu para exercer o poder, isto é, de seus mandatários. A deturpação socialista e, o desmoronamento dos sistemas totalitários não nos devem fazer crer que temos de abandonar a hipótese da construção de uma sociedade mundial justa, mas, muito pelo contrário, nos lembrar de que, ao deixarmos os totalitarismos usurparem a ambição democrática, sofremos um considerável atraso nessa construção.

M. – Nesse domínio, o que nos falta é uma visão mais ampla, aquilo que o Dalai-Lama chama de senso da ‘responsabilidade universal’. Porque é inaceitável que certas partes do mundo se desenvolvam em detrimento de outras.

J.F. – Sim, mas cada parte do mundo faz o que quer, inclusive tolices.

M. – Voltando ao fracasso da filosofia moderna, o que mais me impressiona nas filosofias a partir do século XVII é o pouco uso que podem fazer delas aqueles que buscam pontos de referência, princípios que dêem um sentido às suas vidas. Isoladas das aplicações práticas requeridas por todo caminho espiritual – cujo objetivo é operar uma verdadeira transformação interior -, essas filosofias podem ser permitir uma proliferação desenfreada de idéias, de jogos intelectuais de extrema complicação e ínfima utilidade. É tal a separação entre o mundo das idéias e o do ser, que os promulgadores desses sistemas filosóficos já não precisam ser a ilustração viva deles. Hoje em dia, admite-se perfeitamente que alguém possa ser um grande filósofo mesmo se revelando, no plano individual, uma pessoa que ninguém pensaria em tomar como exemplo. Já assinalamos que o principal atrativo do sábio é o fato de Le ser a ilustração em carne e osso da perfeição que ensina. E essa perfeição não se limita à coerência de um sistema de idéias, ela deve transparecer e se manifestar em todos os aspectos de sua pessoa. Um filósofo pode muito bem se perder em seus problemas pessoais ou um sábio, em suas emoções, enquanto que um discípulo ingressado em uma via espiritual saberá que está no caminho errado se constatar que, ao longo dos meses e dos anos, suas qualidades humanas – bondade, tolerância, paz consigo mesmo e com outrem – declinam em vez de crescer. Portanto, explico esse fracasso da filosofia pelo fato de que as idéias podem ser inoperantes e não ter repercussão alguma sobre a pessoa.

J.F. – Creio que os exemplos que você está dando, e que são superabundantes nas sociedades ocidentais, vêm justamente ilustrar o vazio deixado pela conquista científica, por outro lado extraordinariamente preciosa. Só conheci um único pensador cuja maneira de viver, no século XX, correspondia totalmente ao que ele escrevia. Foi Cioran, o moralista francês de origem romena. Autor muito pessimista, com aguda consciência dos limites da existência humana – da finitude, como dizem os filósofos do homem – , Cioran vivia inteiramente de acordo com seus princípios. Que eu sabia, nunca exerceu qualquer atividade profissional específica e sempre recusou as honrarias. Certa vez, telefonei a ele para lhe propor que recebesse um prêmio literário que, aliás, era muito bem pago. Como o sabia bastante necessitado, eu achava que ele ficaria feliz em recebê-lo. Ele recusou terminantemente, dizendo que não queria de modo algum receber recompensa oficial, qualquer que fosse ela. Ai está um caso de intelectual que viveu de acordo com seus princípios ou, pelo menos, com a análise que fazia da condição humana.

O quadro que você traçou resume aquilo a que poderíamos chamar a ferida essencial da civilização ocidental, isto é, no fundo, a discordância, o contraste, a contradição entre as proezas intelectuais ou artísticas que um indivíduo pode realizar e, por outro lado, a pobreza freqüente de sua vida moral ou mesmo, em uma palavra, de sua moral. E isso efetivamente traduz o vazio resultante do abandono, pela filosofia, da busca da sabedoria pessoal. Do século XVII para cá, esse lugar foi tradicionalmente ocupado por aqueles a que chamamos moralistas. Os tesouros de La Rochefoucauld, La Bruyère ou Chamfort trazem o que há de mais correto no conhecimento da psicologia humana. Mas eles também não traçam um caminho muito preciso quanto à maneira de se comportar. Eles desembocam em uma certa moral da retirada. Constatam que os homens são todos loucos. Só existem ambiciosos, políticos com uma demencial vontade de poder, cortesãos servis que seguem esses políticos para daí tirar vantagens, tartufos vaidosos que se imaginam geniais ou que se deixariam despedaçar para obter honrarias ridículas. Por conseguinte, não nos misturemos a nada disso, observemos esse espetáculo com espírito de troça e evitemos cuidadosamente cair nesse gênero de viés. Bem… pode-se dizer que esse é o começo da sabedoria, mas, infelizmente, não é uma moral que possa ser proveitosa a todos. A única moral que pode ser proveitosa a todos é que consiste em construir uma sociedade justa.

O desmoronamento dos sistemas utópicos e totalitários – que constituíam uma doença do pensamento político moderno – e o vazio deixado pelas filosofias modernas conduzem hoje a uma moral muito vaga, que é chamada de direitos humanos, humanitarismo… Isso já é de alguma coisa, mas continua mal definido… O humanitarismo que consiste em cuidar dos infelizes e dar-lhes alimento é muito elogiável, e tenho a maior admiração pelos que realizam essas tarefas. Só que não adianta enxugar o sangue de uma ferida se nada for feito para fechá-la. Não adianta enviar médicos à Libéria se se continua a deixá-los agir – e até a armar – os miseráveis bandidos que são os chefes de quadrilha das diversas facções da Libéria. Por conseguinte, só uma reforma política pode pegar as coisas pela raiz e agir para valer. E, sob esse ponto de vista, a política de direitos humanos das democracias – que se resume a fazer, da boca para fora, algumas vagas declarações a cada vez que se recebe ou se visita um dirigente chinês ou vietnamita, enquanto quem as faz se prosterna aos pés deles para obter contratos – não basta!

M. – Você cita o exemplo de Cioran, um filósofo pessimista que vivia em concordância com seu pensamento. Acho que existe aí uma diferença importante em relação ao sábio. Não basta viver em concordância com o que se pensa para ser um sábio. É preciso também que esse pensamento corresponda a uma sabedoria verdadeira, um conhecimento que liberte o espírito de toda confusão e de todo sofrimento, uma sabedoria que se reflita em uma perfeição humana. Do contrário, levando a coisa a extremos, um assaltante ou, pior ainda, um ditador também podem viver em concordância com o que pensam. No que se refere aos sistemas políticos, ninguém, exceto os que estão interessados em achincalhar os valores democráticos, contesta que em nossa época a democracia é o sistema político mais saudável. Mas a democracia lembra um pouco uma casa vazia… É preciso saber o que os habitantes farão nessa casa: vão conservá-la, embelezá-la ou deixá-la desabar aos poucos?

J.F. – Exato.

M. – O que é negligenciado, no conceito dos direitos humanos, é a responsabilidade do indivíduo perante a sociedade. O Dalai-Lama sempre frisa a noção de responsabilidade universal, que é particularmente necessária em nosso mundo hoje ‘encolhido’, já que se pode facilmente ir de um lado a outro da Terra em um só dia. É bastante evidente que, se não se desenvolver um senso de responsabilidade em todos os indivíduos que compartilham desta Terra, será muito difícil aplicar os ideais democráticos.

J.F. – O que você está descrevendo se chama simplesmente civismo.

M. – As coisas que recordo das aulas de educação cívica que tinha na escola comunitária não eram nada inspiradoras! Então voltamos, fatalmente, à necessidade do aperfeiçoamento do indivíduo por ele mesmo, por valores ligados à sabedoria ou ao caminho espiritual, deixando-se claro que aqui se está falando de uma espiritualidade não necessariamente religiosa.

J.F. – Como definir essa espiritualidade?

M. – Isso nos leva a noção de altruísmo, que com freqüência é muito mal compreendida. O altruísmo não consiste em fazer algumas boas ações de vez em quando, mas em estar constantemente preocupado, interessado pelo bem-estar de outrem. Em nossa sociedade, essa atitude é muito rara. Em um sistema realmente democrático, uma sociedade deve manter uma espécie de equilíbrio entre o desejo dos indivíduos de obter um máximo para si mesmos e o consenso geral, que define o limite além do qual esses desejos não são mais toleráveis. Mas muito poucos estão sinceramente interessados no bem de outrem. Essa mentalidade afeta igualmente o domínio d apolítica, pois muitas vezes aqueles cuja tarefa é velar pelo bem-estar geral encaram sua missão como uma carreira, em cujo centro a pessoa deles ocupa o lugar principal. Em tais condições, para eles é muito difícil abstrair o imediato – especialmente sua popularidade – e considerar o que é desejável a longo prazo para o bem de todos.

J.F. – Realmente, isso é muito raro entre os políticos!

M. – O objetivo de qualquer pessoa que ingresse na vida política e social não deveria ser o de ganhar louvores e reconhecimento, mas o de procurar sinceramente melhorar a sorte dos outros. Em relação a isso, o exemplo da proteção do ambiente é muito revelador de uma falta de senso de responsabilidade. Embora sejam incontestáveis – e, na maioria dos casos, incontestadas – as conseqüências nocivas da poluição, do extermínio das espécies animais, da destruição das florestas e dos sítios naturais, os indivíduos, em sua maioria, não reagem enquanto a situação não se tornar pessoalmente intolerável para eles. Provavelmente, só se tomarão medidas sérias para deter a redução da camada de ozônio quando já não for possível ao cidadão médio tomar banhos de sol, o que começa a ser o caso na Austrália, e quando as crianças forem proibidas de olhar para o céu porque os raios ultravioletas serão muito perigosos para os olhos, o que também começa a ser o caso na Patagônia. Esse efeitos eram previsíveis há muito tempo, mas ainda não tinham apresentado um perigo imediato para o conforto egoísta de cada um. Por conseguinte, acho que essa falta de responsabilidade é uma das grandes fraquezas de nossa época. E é também nesse sentido que uma sabedoria pessoal e uma prática espiritual podem ser úteis.

J.F. – Estou inteiramente de acordo… No entanto, o que se chama hoje no Ocidente, com alguma ironia, o ‘direito-do-homismo’, assim como, por outro lado, o ecologismo, de certa forma é o substituto dos ideais políticos socialistas que falharam. Como já não dispõem de uma doutrina coerente de transformação da sociedade, os que durante muito tempo foram de esquerda se apoderam do humanitarismo e da ecologia para continuar a tiranizar seus semelhantes.

M. – Também não vamos matar a ecologia ainda na fase embrionária! Ela bem que precisa crescer em força e em eficácia. Lembro-me da publicação, quando eu tinha quinze anos, do livro de Rachel Carson Printemps silencieux (Primavera silenciosa), em uma época em que os poucos que se envolviam apaixonadamente com a proteção da natureza eram considerados uns excêntricos ‘homens dos bosques’.

J.F. – Sou a favor dos direitos do homem e da proteção à natureza. Só que – e isso é trágico – o peso das ideologias falidas continua a se fazer sentir sobre essas novas causas. Constata-se que, em gera, os que se ocupam da defesa dos direitos humanos e do ambiente têm dois pesos e duas medidas. Por exemplo, a maioria dos humanitaristas é de esquerda. Portanto, eles estarão a postos para denunciar a existência de prisioneiros políticos no Marrocos. Por quê? Porque o Marrocos é uma monarquia tradicional, no campo americano, no campo ocidental, e é um país capitalista. Em contrapartida, levaram um tempão para denunciar as violações dos direitos humanos cometidas na Argélia, muito mais graves.

M. – Ou no Tibete…

J.F. – Ou no Tibete… Falo da Argélia porque ela era tida como um país progressista, o que evidentemente era uma amarga brincadeira. E o Tibete está ocupado pela China, outro país ‘progressista’. Pois bem, dois terços da intelligentsia francesa se lançaram alegremente aos pés insensíveis e ensanguentados de Mao Tsé-tung durante dez anos. O mesmo acontece em relação ao ambiente: o Greenpeace, por ocasião da catástrofe de Chernobyl, fez manifestações contra quais centrais nucleares? As do Ocidente! Que eram muito mais seguras! Mas o Greenpeace não organizou a menor mobilização contra a URSS!… Que o Greenpeace se tenha agitado contra as experiências nucleares francesas no oceano Pacífico, em 1995, isso é um direito dele… Mas que essa organização se mostre no mínimo discreta quanto a poluições consideravelmente mais graves, as dos detritos nucleares russo, ‘ex-soviéticos’, no oceano Ártico, onde além disso se derramam não sei quantos milhões de toneladas de barris de petróleo vindos dos oleodutos russos que vazam… aí não dá! Aí já não posso mais acreditar na honestidade do Greenpeace. Enquanto a luta pelos direitos humanos, ou contra a poluição, for desequilibrada pelas velhas ideologias, pelas velhas idéias preconcebidas que, no geral, fazem dos chamados ‘ecologistas’ uns esquerdistas, não se chegará a resultado nenhum! Essas lutas só podem ser respeitadas se forem conduzidas em função das realidades e não dos preconceitos dos que as conduzem.

M. – Eu queria também abrir um parêntese para assinalar que sempre se fala de direitos do ‘homem’, mas o fato de limitar esses direitos ao homem reflete, nas democracias que se dizem laicas, os valores judaico-cristãos, que permanecem como o fundamento da civilização ocidental. Segundo esse ponto de vista, os animais não têm alma e só existem para o consumo dos humanos. É uma idéia própria de certas religiões, mas que já não é aceitável em termos mundiais. Nossos genes são noventa e nove por cento idênticos aos dos grandes símios. Será que o um por cento de diferença justifica o tratamento a que submetemos os animais, quando não hesitamos, nos laboratórios ou nos abatedouros, em tratá-los como simples objetos?

J.F. – No Ocidente existe uma associação de defesa dos direitos dos animais.

M. – Não me parece que ela tenha o poder de modificar as leis que considera os animais ‘produtos agrícolas’ ou ‘material de laboratório’. Eu gostaria de citar aqui uma frase de Leonardo da Vinci, que escreveu em seus cadernos: “Chegará o tempo em que as pessoas como eu considerarão o assassinato de um animal como consideram hoje o assassinato de um homem.” E George Bernard Shaw dizia: “Os animais são meus amigos… e eu não devoro meus amigos”. Não se trata de negar que existam diferenças de inteligência entre animais e seres humanos nem que, de um ponto de vista relativo, a vida de um ser humano tenha mais valor que a de um animal. Mas por que o direito de viver seria apanágio somente dos humanos? Todos os seres vivos aspiram à felicidade e tentam escapar ao sofrimento. Portanto, arrogar-se o direito de matar milhões de animais, ao longo de uma no inteiro, é simplesmente exercer o direito do mais forte. Não há muitos séculos, considerava-se aceitável o tráfico da ‘madeira de ébano’ – os escravos da África negra. Em nossos dias, a escravidão subsiste na Índia, no Paquistão, no Sudão… onde se vendem crianças para trabalharem na indústria ou no campo e meninas para a prostituição. Mas em outros lugares, de modo geral, a escravidão é considerada uma abominação. O que fazem as pessoas, os povos, quando são explorados ou oprimidos? Organizam-se, sindicalizam-se, revoltam-se… Os animais são incapazes disso e, então, são exterminados. Acho que esse problema deva ser inteiramente reavaliado. E queria apenas acrescentar que essa cegueira foi particularmente chocante por ocasião da crise da ‘vaca louca’. O ministro britânico da Agricultura e seus homólogos no continente declararam de início que estavam prontos para ‘destruir’, como eles dizem, milhões de vacas! Se quinze milhões de vacas tivessem ocupado as ruas de Londres para cobrar seus direito à vida, o governo certamente teria revisto sua posição.

J.F. – Não tenho tanta certeza assim!

M. – Naquele momento, nem mesmo se tinha certeza de que as quinze ou vinte pessoas mortas da doença nervosa imputada ao consumo de boi realmente haviam sido contaminadas pela carne desses animais. Se tiver sido esse o caso, o erro não foi das vacas, mas dos criadores que alimentaram seus bovinos com rações contra a natureza. Calculando grosso modo, avaliou-se a vida de uma vaca em quinze milionésimos do valor da vida humana.

J.F. – Você raciocina como se o homem fosse o único a matar animais. Mas os animais matam uns aos outros! Basta ver qualquer filme sobre a vida submarina para constatar que eles se empanturram todos entre si. Cada um vive o tempo todo no terror de ser devorado pelo outro! Então, do ponto de vista budista, como é que você explica isso?

M. – O sofrimento vivido por todos os seres prisioneiros deste mundo é a primeira das quatro verdades ensinadas pelo Buda. Os textos, aliás, mencionam isso que você está falando. Um deles diz: “Os grandes animais devoram um número incalculável de pequenos animais, enquanto numerosos animais e pequenos se reúnem para devorar os grandes”. Já que se fala o tempo todo de ‘progresso do mundo dito civilizado, nesse progresso, em minha opinião, poderia ser incluída a redução global do sofrimento infligido, em nosso proveito, a outros seres vivos. Existem outros meios de se alimentar que não o de trucidar sistematicamente a espécie animal.

J.F. – Mas, enquanto esperamos que o conjunto dos ocidentais se torne vegetariano, o que não parece estar para acontecer, pode-se pelo menos lutar – e isso já se começa a fazer – para que os animais domésticos sejam criados em condições menos bárbaras que as dominantes na criação industrial moderna. Porque a sorte desses animais se agravou muito, em relação à criação tradicional, a que conheci na infância, no Franche-Comté… Eles pastavam tranquilamente nos campos. No inverno, no estábulo, recebiam feno, nunca alimentos artificiais, químicos – ou dejetos de carneiro, o que provocou a doença da vaca louca. Agora, os infelizes bichos são criados, parqueados e transportados em condições abomináveis…

M. – Nesse ponto, o pseudoprogresso técnico piorou os sofrimentos dos animais e ao mesmo tempo, me parece, criou novas causas de doenças para o homem. Triste progresso.

J.F. – Admito.


 

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