Um Coração Destemido Como a coragem de ser compassivo transforma nossas vidas. | Thupten Jinpa

Thupten Jinpa é o tipo raro de erudito que detém titulações de instituições acadêmicas religiosas e seculares de primeira qualidade tanto no ocidente quanto no oriente. Cresceu no ambiente monástico no sul da Índia, e foi educado na tradição tibetana clássica, recebendo o mais elevado título de Geshe La Ram do mosteiro Ganden. Então obteve um bacharelado em filosofia, e um PhD em estudos religiosos da Universidade de Cambridge, no Reino Unido. Jinpa traduziu poemas tibetanos (Songs of Spiritual Experience, [“Canções de Experiência Espiritual”]), escreveu um livro sobre filosofia do Caminho do meio (Self, Reality, and Reason in Tibetan Philosophy, [“Identidade Pessoal, Realidade e Razão na Filosofia Tibetana”]), e editou mais de uma dúzia de livros do Dalai Lama, inclusive “O universo em um átomo: o encontro de ciência e espiritualidade”.

Jinpa é diretor do Instituto de Clássicos Tibetanos, que fundou, e traduz textos para a Biblioteca de Clássicos Tibetanos. Nos últimos anos tem colaborado com cientistas na Faculdade de Ciências Médicas de Stanford em uma pesquisa pioneira sobre características mentais positivas, desenvolvendo um treinamento secularizado de compaixão presentemente sendo testado como tratamento de TEPT (transtorno de estresse pós-traumático) em veteranos de guerra. Ele é hoje Presidente do Conselho do Mind and Life Institute, que por mais de 30 anos tem reunido o Dalai Lama com cientistas de ponta para explorar a natureza da consciência.

Recentemente lançou o livro “Fearless Heart” (ainda sem tradução para o português) onde fala para um público secular sobre a importância da compaixão, como ela pode ser treinada e o que a ciência e as tradições contemplativas tem a dizer sobre ela. Abaixo, traduzimos uma entrevista realizada com David Bullard e um vídeo de uma palestra realizada no Google:

Tradução: Lucas Almeida. Legendas: Luís Oliveira. 

Um coração destemido

David Bullard: Estou muito satisfeito e honrado em conhecê-lo e ter a oportunidade conversar um pouco. Também estou ansioso por vê-lo mês que vem na Bay Area na sua divulgação do livro “A Fearless Heart: How the Courage to Be Compassionate Can Transform Our Lives” (Um Coração Destemido: Como a coragem de ser compassivo transforma nossas vidas), por conversas e por cursos. Acabo de terminar de ler o livro e eu não conseguia parar de ler. É fantástico. E para preparar pra essa entrevista e aprender mais sobre seu trabalho, eu também comprei e estou lendo seu primeiro livro baseado na sua dissertação de doutorado em Cambridge, “Self, Reality and Reason in Tibetan Philosophy (2002)” (Identidade Pessoal, Realidade e Razão na Filosofia Tibetana).

Thupten Jinpa: Ah, sim, esse foi um trabalho desafiador.

DB: Difícil de ler também! É preciso ler mais vagarosamente. Mas o novo livro é bem mais acessível. Até me sinto calmo agora em conversar com uma pessoa reverenciada e realizada como você por conta da compaixão que senti vindo do livro para todos nós.

TJ: Isso é ótimo.

DB: Essas primeiras 100 páginas impactam o leitor ao nível intelectual por toda a pesquisa e por sua busca por utilizar a ciência ocidental. Mas você integrou muito bem sentimentos junto com suas histórias pessoais, várias ótimas citações, e as práticas meditativas indicadas através do treinamento em compaixão que você ajudou a criar em Stanford. Vão ajudar muitas, muitas pessoas.

TJ: Obrigado. Essa foi a motivação para escrevê-lo.

DB: Como você decidiu fazer a compaixão o ponto central do seu trabalho nesse livro?

TJ: Como alguém que cresceu numa comunidade de refugiados com pais refugiados, o impacto da compaixão foi real diariamente. As escolas que íamos, as roupas que recebíamos de doações de todo o mundo. Desde pequeno eu sabia que quase a totalidade do desenvolvimento de nossa comunidade de refugiados foi possível graças à generosidade dos outros. Acho que provavelmente foi um fato muito importante na minha vida.
A segunda coisa é, por ter crescido numa sociedade Tibetana tradicional, a compaixão é provavelmente o valor espiritual mais elevado e está muito presente na consciência espiritual e religiosa do povo tibetano. Começando pelo símbolo tibetano de Dalai Lama sendo um tipo de manifestação da compaixão de Buda… sendo uma personificação da compaixão. Existe também o mantra diário que recitamos, “Om mani padme om”, sendo um símbolo de compaixão. Então, a compaixão está muito, muito presente na vida espiritual e religiosa diária do tibetano.

Além disso, o trabalho que continuo fazendo para Sua Santidade trata muito sobre compaixão. Porque se há uma coisa que Sua Santidade promove em todo lugar, além de paz, é compaixão. O resultado de sua mensagem, por onde ele passa, é esse. Fiz muito esse serviço para ele, que é um serviço de promoção da compaixão.

DB: Você vivenciou a compaixão tanto por experiência, como refugiado e também pelos ensinamentos que estão presentes na cultura tibetana por anos.

TJ: Sim, exatamente. Eu lembro quando estava crescendo e estava num internato, e de vez em quando a escola convidava para ir lá por alguns dias algumas crianças cujos pais estavam trabalhando em construções rodoviárias locais na área de Simla. Meus pais se mudavam de acampamento pra acampamento nessas tendas à medida que a rodovia progredia, e toda manhã, eu me lembro de acordar com a tenda cheia de fumaça e vapor do chá tibetano que era feito, e minha mãe entoando a prece dos Quatro Incomensuráveis: “Que todos os seres se libertem do sofrimento e das causas do sofrimento.”. Essas são as coisas com as quais cresci. Claro que, pra uma criança, palavras são palavras – elas podem não significar muito. Mas o som dessas preces e essas frases foram profundamente gravados em mim.

DB: Eu entendo o que você quer dize com “palavras são palavras” pras crianças, mas tenho que dizer pra você, um amigo tem uma neta maravilhosa que, quando tinha 3 anos e meio ou 4, disse “amar as pessoas é muito divertido!”. Inclusive acho que essa frase poderia ter sido o título do seu livro.

TJ: Poderia!

DB: Você coloca lindas citações no início de cada capítulo, colocando Oriente e Ocidente ao mesmo nível: um provérbio tibetano de W.H.Auden, o primeiro Panchen Lama e Charles Darwin, Gandhi e Aristóteles, e até uma citação de Tsongkhapa (revelando o Canadá como sua pátria adotiva) com uma da escritora Alice Munroe.

O primeiro capítulo “O melhor segredo guardado da felicidade: compaixão” é introduzido por uma fala atribuída a Buda: “Qual é a coisa que, quando você possui, você tem todas as outras virtudes? Compaixão”. Isso pode ser associado com a frase de Jean Jacques Rousseau “Que sabedoria você pode encontrar que seja maior que a bondade?”. Essas frases foram maravilhosamente escolhidas. E você ressalta também que quando estamos sendo compassivos e bondosos, o paradoxo é que isso ajuda a nos sentirmos melhor.

TJ: Definitivamente. Vivemos numa era muito científica, e a ciência carrega um tipo de peso na esfera social. Mas apesar disso tudo, se olharmos pra nossa experiência pessoal, se diariamente tentarmos lembrar do que nos faz feliz, de quando nos sentimos mais completos, a maior parte das vezes encontraremos que isso aconteceu num contexto de um relacionamento saudável – algum lugar onde nos sentimos profundamente conectados; algum lugar onde nos sentimentos profundamente abertos e livres numa interação com alguém. Essas são expressões da compaixão. Um dos pontos chave que tento discutir nesse livro é que compaixão e empatia – e os instintos para eles – são muito naturais e estão profundamente enraizados na nossa psique. Podemos fazer a escolha de viver o quanto quisermos nesse lugar, e se conseguirmos fazer isso, ao final do dia nós temos mais a ganhar. Pode soar paradoxal. É quase como usar uma lógica de auto-interesse para defender a compaixão.

DB: Mas você salienta que é mais como um efeito colateral do que uma motivação.

TJ: Exato.

Treinamento do cultivo da compaixão

DB: Estou lembrando que ao ler o livro eu não estava nem um pouco surpreso ao ver que você é amigo de Paul Gilbert, doutor pela universidade de Derby, Reino Unido, que veio ano passado para conversar conosco em UCSF e Stanford. A primeira coisa que ele nos disse foi “Sabe, seu cérebro é uma bagunça”. Ele esperou e então disse “Porque está severamente programado a agir em luta ou fuga. Raiva ou medo. E você tem que cultivar auto-compaixão”, que é sobre o que se trata seu livro – cultivar auto-compaixão e compaixão pelos outros, entendendo por que isso é tão importante; mas também como aprendendo como fazer isso. O que me leva à próxima questão: Você pode nos dizer mais sobre o programa de treinamento de cultivo da compaixão (CCT, em inglês) no Centro para Pesquisa da Compaixão, Alutrísmo e Educação (CCARE, em inglês) em Stanford?

TJ: Meu trabalho em Stanford me deu a oportunidade de realmente trazer uma estrutura mais sistemática para o que pode ser trazido conscientemente em um ambiente secular. Me inspirei no grande sucesso do movimento mindfulness, onde um grupo de pessoas – individualmente e depois coletivamente – decidiram olhar para as fontes contemplativas budistas para ver quais são os tipos específicos de práticas contemplativas que podem ser retiradas do seu contexto para um contexto mais amplo, para o benefício de auxiliar outras pessoas. O foco estava em superar problemas e sofrimento, promovendo um senso maior de bem-estar. Junto com isso veio a ciência e a pesquisa. Pessoas comuns e com mentes seculares podem começar a olhar pra essas coisas e ver se funcionam para elas.

Pensei que poderíamos fazer algo semelhante com a compaixão. Uma das qualidades do mindfulness é que nos ensina uma atitude de não se engajar com pensamentos. Quando nos identificamos demais com nossos problemas e pensamentos, e começamos a acreditar no conteúdo dos pensamentos como reais, as práticas de mindfulness mostra-nos que podemos realmente desengajar e observar o que está ocorrendo em nós, para que não sejamos arrastados pela história que estamos contando sobre nós mesmos.

DB: Você provavelmente já viu aquela frase de parachoque “Não acredite em tudo que você pensa”.

TJ: Não, nunca vi. É divertida. E verdadeira!

DB: Você tem vários artigos de pesquisa, com Kelly McGonigal e outros, mostrando que o treinamento em compaixão reduziu o medo da compaixão e aumentou a auto-compaixão. Como você conceitua a compaixão propriamente dita?

TJ: Nós identificamos 4 componentes: a consciência do sofrimento que é cognitiva; uma preocupação afetiva compreensiva relacionada com estar emocionalmente movido pelo sofrimento; um desejo de ver o alívio daquele sofrimento, que é uma intenção; e uma responsividade ou disposição para ajudar a aliviar aquele sofrimento – um componente motivacional.
Nosso mais recente artigo no Journal of Positive Psychology, “A wandering mind is a less caring mind: Daily experience sampling during compassion meditation training” (Uma mente dispersa é uma mente menos solidária: Amostragens de experiências diárias durante o treinamento de meditação da compaixão)  verificou uma redução de divagação mental quando exposta a temas neutros e aumento de comportamentos que cuidam de si e dos outros.

Estamos também colaborando com o psicólogo e neurocientista, Dr. Brian Knutson, pesquisando as correlações neurais dos componentes da compaixão em adeptos do budismo e noviços. Junto com outros pesquisadores, há amplas atividades no CCARE aprofundando e alargando nossa consciência dos benefícios da compaixão e como melhor cultivá-la nas pessoas.

E a beleza que eu vejo é que, de alguma forma, o treinamento da compaixão é o próximo capítulo nesse tão interessado fenômeno cultural. […] Compaixão tem um papel poderoso, se permitirmos, como componentes do nosso sistema motivacional.

Compaixão também tem um papel importante em moldar nossa intenção. Se pudermos trazer um cultivo consciente da compaixão para nos ajudar a moldar nossa intenção, trazemos um conteúdo mais iluminado para nossa motivação e intenção. Quando combinado com o mindfulness, isso pode criar algo que pode levar a uma transformação pessoal real.

Essas são as ideias por trás do programa de Stanford, e então eu me concentrei para desenvolver um programa de oito semanas e procurei ajuda de alguns colegas para refiná-lo. Desenvolvemos o programa de um jeito que não se baseia inteiramente em práticas quietas, formais onde se senta sozinho.

DB: Além da meditação solitária, ou “apenas” estar presente…

TJ: Nós temos exercícios interativos. Muitos deles são feitos em dupla. Mas também há educação psicológica que permite às pessoas observarem, baseado em suas próprias experiências, como atitudes e pensamentos modulam o jeito como experenciamos o mundo, e como isso afeta como nos comportamos, e isso tem um tipo de efeito de loop inverso. Então começamos a perceber que há um complexo relacionamento dinâmico entre nossa percepção do mundo, o que trazemos a ele e como sentimos a experiência dele.

E então, claro, temos um dos elementos centrais – a prática contemplativa – que inclui uma série meditações guiadas. Também temos o que chamamos de práticas informais, retirados dos ensinamentos Tibetanos do treinamento da mente, onde a instrução é “O que quer que você encontre, coloque-a agora na sua prática”. É uma bela frase da prática do treinamento da mente.

Ao longo das oito semanas do curso, qualquer que seja o tópico específico em que focamos, nós avisamos aos participantes para usar aquela semana em particular para tentar ver se conseguem encontrar, na sua vida cotidiana, momentos nos quais eles podem utilizar a sua experiência como prática informal.

Nos surpreendemos quando iniciamos o trabalho de cultivo da compaixão que não podíamos começar com as meditações tradicionais budistas de compaixão, pois o primeiro passo é baseado no entendimento de que o auto-cuidado e a auto-compaixão são instintivos. Mas vimos que muitos de nossos praticantes ocidentais precisaram de ajuda adicional para aprender a ter auto-compaixão; eles não conseguiam iniciar sendo esse o primeiro passo!
Talvez uma citação Tibetana do meu livro ilustre isso: “Inveja perante o superior, competitividade perante o igual e desprezo perante o inferior”. Isso frequentemente é onde reside a raiz da insatisfação e a infelicidade.

DB: Tenho ouvido pessoas dizerem “E se você estiver consciênte e presente, mas você está se sentindo realmente mal sobre si mesmo e sua situação?”. É por isso que você está levando isso ao próximo nível, assim quando você estiver consciente, você pode fazer isso sentindo compaixão por si e pelos outros, mesmo que você esteja sofrendo por pensamentos, sentimentos, situações e atitudes dolorosas.

TJ: Sim, exato. Por exemplo, eu não tenho nenhuma especialidade em criação de filhos – além de ter criado minhas duas filhas. E tendo vivido a maior parte da minha vida como monge, eu provavelmente seria a última pessoa a afirmar essa habilidade. Mas por outro lado, eu acredito que uma das dimensões chave da compaixão é um senso de conectividade, que é um ingrediente ativo de um relacionamento. Mais e mais, pesquisas modernas sobre felicidade ressaltam que uma das principais fontes de felicidade para pessoas comuns como nós são nossos relacionamentos íntimos, as relações importantes de nossa vida.

Compaixão e bondade amorosa são emoções muitos sociais; são sentimentos e estados mentais. Minha esperança é que terapeutas como você olharão para o treinamento da compaixão como um recurso a ser incorporada na sua própria prática, assim você pode melhor ajudar pessoas que estão em relacionamentos difíceis, onde algo se quebrou na linha de comunicação e no relacionamento dinâmico. Se ambos os lados são capazes de alguma forma retornar à sua base, ao que os conectou inicialmente, é onde há genuíno reconhecimento do outro como indivíduo, mas também há uma espécie de afinidade compartilhada e identificação com o outro. É aqui onde o treinamento da compaixão e maior consciência dos sentimentos e pensamentos sobre compaixão realmente possuem algum recurso a oferecer.

Apego e desapego

DB: Estou ansioso por entender mais sobre seu livro em como integrar isso com meu próprio trabalho com casais, por exemplo. Você tem seções sobre por que sentimos medo da compaixão, quebrando a resistência à compaixão, transformando intenção em motivação, os benefícios da consciência focada, “escapando da prisão do excessivo auto-envolvimento”, expandindo nosso círculo de interesse, como a compaixão nos faz mais saudáveis e fortes, e o caminho para um mundo mais compassivo.

Então deixe-me perguntar sobre a questão do desapego, que é um conceito muito importante no budismo. No sentido Ocidental, para a criação dos filhos e problemas conjugais e de relacionamento, falamos de “apego seguro”. Tenho algumas ideias sobre as diferenças entre os dois e como na verdade eles são compatíveis, embora superficialmente eles pareçam não ser. Você pode compartilhar alguns pensamentos sobre esse assunto em particular?

TJ: Acho que é uma questão muito importante. Muito frequentemente, as pessoas ficam com a impressão errada sobre os ensinamentos budistas do desapego e sobre equanimidade. Eu tenho conscientemente evitado enfatizar demais o passo da equanimidade no treinamento da compaixão, que é o primeiro passo na tradição Tibetana, no qual você vê três diferentes pessoas, e então você iguala sua reação emocional a elas e continua a prática sob isso.

Algumas vezes as pessoas entendem erroneamente a mensagem e acham que compaixão e equanimidade na perspectiva budista significa que não devemos presentear nossos próprios filhos – que não devemos amá-los mais do que amamos uma outra criança. Não acho que seja a interpretação correta.

Em vez disso a mensagem é que você deve treinar sua mente e coração para um nível em que você esteja capaz de amar a outra criança tanto quanto as suas próprias. Mas algumas vezes a mensagem entendida vai na direção oposta, como uma espécie de licença para ignorar a sua responsabilidade como pai.

Sobre o apego, o que os ensinamentos budistas questionam é na verdade bem sutil. Está nos questionando a ter o tipo de paixão e dedicação que normalmente vem com o apego, envolvimento, foco e compromisso, sem aquela fixação que normalmente vem com o pensamento auto-centrado. Você sabe, “Eu me importo com essa pessoa porque ela é minha esposa”. Apego, no senso budista, tem aquele componente auto-referencial. Mas tentar comunicar isso na palavra “apego” é bastante complicado. Então, é por isso que nesse livro eu tento evitar cair nessa confusão.

DB: Uma coisa que entendo sobre esse livro, mas também entendo da experiência de ter estado na terapia com vários casais que estão focando no perdão e tentativa de reconexão, é a ideia que você pode perceber os sentimentos de outra pessoa seriamente… mas você não precisa sentir esses sentimentos de modo pessoal.

TJ: Está certo. […] Não estar apegado a parte dos sentimentos do outro que você reagiria como se eles estivessem te culpando, mas ao mesmo tempo estar apegado em um sentido de cuidar.

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S. S. o Dalai Lama com Jinpa em Stanford.

A abordagem secular

DB: Seu livro é bastante secular. Você poderia dizer algo sobre o que secular significa pra você? Particularmente para as pessoas que consideram budismo como religião.

TJ: O modo como uso a palavra secular é como Sua Santidade Dalai Lama a usa. É para ser uma perspectiva que inclui todas as possíveis perspectivas, incluindo as religiosas. De certo modo, é uma perspectiva pautada num certo entendimento da natureza humana e da condição humana que não pressupõe uma orientação religiosa particular. Então, por exemplo, introduzir a ideia budista de vidas sucessivas seria trazer uma perspectiva cultural muito específica – mas nós não precisamos mencionar certas crenças. Quando falamos sobre compaixão e seu papel na nossa vida, e como ela é parte da nossa natureza inata, nada disso requer aceitação, nem é contraditório com uma crença no renascimento ou acreditar em alguma forma teísta de entendimento da evolução da vida humana. Essa é a beleza da linguagem secular. É uma linguagem bem mais básica, eu suponho – um jeito básico de falar sobre essas coisas. Porque no final, independente de todas as diferenças culturais, de linguagem e de religião, quando se trata da experiência humana diária e da condição humana, somos todos os mesmo, sabe?

Estamos felizes quando alguém nos ama. Sentimos raiva quando alguém nos ameaça. Estamos amedrontados quando somos confrontados com um perigo. E estamos tristes quando experimentamos uma perda. Nesse nível básico, nada nos diferencia. É só a realidade da condição humana. Deve haver uma perspectiva e um jeito de falar sobre a experiência humana que pode ser relacionada à nossa condição num nível fundamental, e esse é o tipo de linguagem pela qual eu busquei.

DB: Então deixe-me retornar a um problema fundamental que é a resistência à compaixão. No jantar recentemente, um amigo me questionou, “Como você pode ser compassivo quando você está muito irritado com alguém?” E eu disse, “Bom, talvez seja por isso que Jinpa nomeou o livro como ‘Um coração destemido’ “.

TJ: Sim.

Compaixão não é complacência

DB: Nossa raiva é uma das resistências em ser compassivo. Temos dificuldade em ser compassivo porque sentimos raiva. Um erro que cometemos é pensar que compaixão e complacência/submissão são a mesma coisa. “Se eu realmente entender o quão chateado você está, terei que fazer o que você quiser para que você não se chateie”.

Mas se pensarmos em como lidamos com uma criança realmente chateada – “Não quero ir dormir, você é um idiota, papai, por me fazer ir dormir!” Eu posso ser compassivo e dizer, “Eu sei, é difícil ser jovem às vezes… você vê os adultos acordados até tarde e você acha que está sendo deixado de lado. Xingar não é legal, mas você sabe que não quer ir dormir agora. É realmente difícil, mas… você vai dormir agora!”.

TJ: Sim, exatamente. É verdade. Adorei o jeito como você colocou isso. Compaixão e complacência não são a mesma coisa. E há confusão sobre isso pra muita gente. De alguma forma, quando pensam em compaixão, pensam que significa ceder e apenas deixar a outra pessoa fazer o que quiser. Não é isso que é compaixão. Compaixão é estar em uma posição ou em um estado mental que entende a situação da outra pessoa – não da sua própria perspectiva, mas da perspectiva do outro – mas ao mesmo tempo, ser capaz de ter em mente o que é a melhor coisa a se fazer naquela situação para ajudar a outra pessoa. Isso requer firmeza às vezes.

DB: E também frequentemente vivemos numa ilusão ou “paradigma da culpa”, como se fosse um jogo em que um ganha e o outro perde. Então, se não estamos culpando o outro, estamos amedrontados que a culpa será apontada para nós e nos fará ser culpados. As ideias budistas de origem dependente tem algo a dizer sobre isso.

TJ: Também acho que uma das coisas interessantes da cultura ocidental é que – e talvez tenha algo a ver com a herança judaica-cristã – justiça é um conceito muito poderoso, como a “prestação de contas” por algo que aconteceu. Quando você tem necessidades de prestação de contas, você quer alguém que seja responsável. Quando algo aconteceu, alguém tem que ser responsabilizado. E se ninguém é responsabilizado, então você acha que algo está muito errado.

Há quase um medo de que algo vá desmoronar. E isso é onde, até num relacionamento pessoal, você quer culpar alguém, ou você se culpa. Porque é muito difícil pra muitas pessoas tentar entender, “Bem, na verdade somos ambos responsáveis. E houveram certas coisas que estavam além do controle”. Esse tipo de abordagem sutil, pra muitas pessoas, é como se abster da culpa. É quase como não fazer justiça ao problema real, e não levá-lo sério. E essa é uma área onde acho que no ocidente precisamos trabalhar muito mais.

“Nunca conheci um estranho”

DB: Agradeço muito o presente desse tempo junto e lembro o que você estava dizendo mais cedo: A fala de Dalai Lama de que ele nunca conheceu um estranho…

TJ: Sim…

DB: Acho que os leitores dessa entrevista, como eu, sentirão que terão o conhecido. Então, um profundo agradecimento por essa oportunidade.

TJ: Muito obrigado, David, e estou ansioso por vê-lo em São Francisco em maio.


Assista abaixo a palestra de Thupten Jinpa no GoogleAtive a legenda clicando no quadradinho no canto inferior direito do vídeo:

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